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No final de julho, a poucos dias do arranque da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) de Lisboa, o porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, anunciou que o Papa Francisco iria falar em espanhol nas várias intervenções que estavam programadas para a viagem de cinco dias a Portugal. Além de ter obrigado rádios e televisões a repensarem o modo como iriam transmitir os discursos e homilias do Papa em solo português, o anúncio trouxe também outra certeza: o Papa Francisco queria estar à vontade para improvisar. É sabido que o domínio de línguas do Papa é relativamente limitado e que só em italiano ou espanhol se sentiria à vontade para ter um discurso mais natural perante os muitos jovens de todo o mundo esperados na JMJ; falar em português obrigaria o Papa a restringir-se estritamente aos discursos escritos.
Ainda assim, nada faria prever que Francisco improvisaria tanto, ignorando sistematicamente os papéis que trazia com os seus discursos e reduzindo consideravelmente o tempo usado: algumas intervenções duraram pouco mais de cinco minutos. Gerando o caos em redações, salas de imprensa, estúdios de rádio e cabinas de tradução, o Papa Francisco preferiu uma catequese simples e breve, marcada pelo diálogo com a multidão de jovens, aos textos mais densos que trazia preparados. Também aqui, o porta-voz do Vaticano já tinha anunciado que o Papa Francisco pretendia, em Portugal, fazer uma “grande catequese”, na qual haveria uma atenção especial aos “medos e sonhos” dos jovens e ao modo como as novas gerações são vítimas de todo o tipo de exploração — incluindo no mundo digital.
No final, é justamente como uma “grande catequese” que se pode sintetizar a passagem de Francisco por Portugal para a JMJ. Nas nove intervenções principais, o Papa Francisco apresentou, na prática, um projeto de Igreja para o futuro. Falou aos jovens para lhes pedir que não tenham medo de dar testemunho de fé e que não desistam de caminhar, mesmo perante as quedas que vão inevitavelmente sofrer pelo caminho, e pediu-lhes que não julguem ninguém pelas quedas. E falou para dentro, para pedir a todos os católicos que evitem a tentação de olhar para a Igreja a que pertencem como uma instituição composta por gente perfeita, que exclui quem considera imperfeito: pelo contrário, a Igreja tem lugar para “todos, todos, todos”, a expressão que se tornou num slogan desta JMJ, repetida dezenas de vezes pelo Papa e por milhares de jovens, e que poderá muito bem tornar-se num dos slogans principais do pontificado de Francisco.
Durante o voo que o levou de regresso a Roma após a JMJ, o Papa Francisco explicou o que o levou a improvisar tanto em Lisboa, entrando em diálogo com a multidão, fazendo discursos breves e pedindo aos jovens que repetissem com ele as ideias centrais das intervenções. “Com os jovens, os discursos longos tinham o essencial da mensagem e eu apresentei-os segundo senti a comunicação. Viram que eu fiz algumas perguntas e, imediatamente, o eco mostrou-me para onde é que eu estava a ir, se estava errado ou não”, disse o Papa, lembrando que já escreveu muito sobre a “tortura” em que algumas homilias mais “académicas” se convertem. “Se fizer um discurso claro, com uma ideia, uma imagem, um afeto, oito minutos podem chegar.”
As muitas reportagens que o Observador publicou esta semana mostram que a decisão terá sido eficaz. Muitos foram os jovens a garantir que Francisco é o homem certo para abrir a Igreja ao mundo, os que não vacilaram perante o calor e até correram para ter um lugar mais perto do Papa, os que identificaram as suas próprias tragédias pessoais na Via-Sacra, os que encontraram sentidos de vida e os que dormiram pouco para aproveitar cada segundo. Afinal, o que deixou Francisco em Portugal? E que lições tem a Igreja em Portugal de tirar deste acontecimento que reuniu 1,5 milhões de pessoas na capital?
“Todos, todos, todos”
Foi da cerimónia de acolhimento, perante meio milhão de jovens reunidos no Parque Eduardo VII, no segundo dia da passagem de Francisco por Portugal, que saiu aquela que, provavelmente, será a expressão com a qual a JMJ de Lisboa vai ser recordada: “Todos, todos, todos.”
Francisco dirigiu-se aos jovens “alérgicos às falsidades e a palavras vazias” — as palavras dos responsáveis eclesiásticos que, ainda hoje, perpetuam a ideia de que a Igreja Católica é uma instituição composta por pessoas perfeitas, na qual a imperfeição moral não pode entrar. “Na Igreja há espaço para todos. Para todos. Na Igreja, ninguém fica de fora, ninguém está a mais. Há espaço para todos, assim como somos. Todos.”
As palavras de Francisco arrancaram aplausos calorosos à multidão reunida no Parque Eduardo VII — e deixaram em absoluta evidência as tensões e contradições ainda hoje existentes no interior da Igreja Católica. No mesmo dia, um grupo de participantes da JMJ tinha confrontado uma outra jovem participante por esta ter erguido no recinto uma bandeira trans. Pouco depois, veio a notícia de que um conjunto de católicos ultraconservadores tinha invadido uma igreja em Lisboa onde decorria uma celebração litúrgica organizada por um grupo de católicos LGBT.
Na sala de imprensa, confrontados com estes episódios, os responsáveis de comunicação da JMJ responderam apontando para as palavras do Papa Francisco — que, no mesmo dia em que aqueles incidentes tinham lugar, era claro para a multidão.
“Jovens e velhos, saudáveis e doentes, justos e pecadores. Todos, todos, todos. Na Igreja há lugar para todos”, disse o Papa Francisco, que falava já de improviso perante a multidão apoteótica, depois de ter abandonado a leitura do discurso que tinha preparado. “Mas padre, sou um desgraçado, uma desgraçada, há lugar para mim? Há lugar para todos. Todos juntos, cada um na sua língua, repitam comigo: todos, todos, todos. Não se ouve! Outra vez. Todos, todos, todos. Esta é a Igreja. A mãe de todos. Há lugar para todos.”
A mensagem resume-se à luz do evangelho — quem tem ouvidos oiça — e o Papa Francisco sabia bem que falava simultaneamente para empolgar e incentivar a multidão de jovens que pensa daquela forma e para alertar e corrigir os setores mais conservadores da Igreja, que ainda a olham como uma instituição rodeada de muros morais.
Caminhar, assumir as quedas e não julgar as quedas dos outros
A mensagem do “todos, todos, todos” voltaria várias vezes a surgir nas intervenções de Francisco em Portugal. Quando visitou o bairro da Serafina, uma das zonas mais empobrecidas da cidade de Lisboa, para ver com os próprios olhos a obra feita pelo Centro Paroquial da Serafina junto dos marginalizados, Francisco pediu à Igreja que saiba fazer o bem no mundo real — e não apenas nas ideias. Ou seja, a sujar as mãos, para incluir todos.
“Para um cristão, não há preferências face a quem, necessitado, bate à nossa porta: compatriotas ou estrangeiros, pertencentes a este ou àquele grupo, jovens ou idosos, simpáticos ou antipáticos”, mencionou, numa mensagem a que voltaria na missa final para denunciar os “egoísmos disfarçados de amor”. Com uma única frase, o Papa Francisco fez uma dura chamada de atenção a todos os que se dizem cristãos, mas não sujam as mãos: os muito devotos que excluem quem tem outra orientação sexual (e ignoram as suas falhas morais), os políticos cristãos que não abrem as portas aos refugiados e aqueles que se encastelam no pensamento teológico abstrato e são incapazes de “sujar as mãos” para ajudar os mais pobres.
“O amor concreto é aquele que suja as mãos. E podemos perguntar-nos: e o amor que eu sinto por todos? É concreto ou abstrato? Quando dou a mão a um necessitado, a um doente, a um marginal, depois faço assim, de seguida [enquanto esfrega a mão na batina, simulando a limpeza da mão], para que não me contagie? Tenho nojo da pobreza? Da pobreza dos outros? Estou sempre a procurar uma vida destilada, essa que existe na minha fantasia, mas que não é real? Quantas vidas destiladas e inúteis que vivem sem deixar marca porque a vida destilada não tem peso?”, perguntou à Igreja e ao mundo, a partir daquele pequeno centro paroquial que transformou a vida a centenas de pessoas marginalizadas, numa das declarações mais fortes da sua passagem por Lisboa.
A propósito desta abertura radical da Igreja a todos, o Papa Francisco insistiu com frequência na imagem do “caminho”, defendendo que qualquer cristão deve estar a caminho da perfeição, mas não é perfeito. Nesse caminho, há quedas inevitáveis — e ninguém está imune a elas: nem os jovens, nem os velhos, nem os padres, nem os bispos, nem o Papa. De resto, no avião que o levou de regresso a Roma, o Papa Francisco criticou aqueles que, na Igreja, se queixam de que os jovens não levam uma vida totalmente segundo as normas da moral cristã e perguntou: quem nunca cometeu uma falha moral na vida? Os jovens podem fazer “brincadeiras de criança”, mas são o futuro e têm de ser acompanhados. Mas se é verdade que as quedas podem ser falhas morais, não são essas as que mais preocupam o Papa.
Pelo contrário, Francisco, que já denunciam a “obsessão” da Igreja com dois ou três assuntos da esfera da moral sexual, quis nesta JMJ vincar as muitas dificuldades que a juventude contemporânea atravessa. Isto ficou especialmente evidente na Via-Sacra, a arrepiante celebração realizada na noite de sexta-feira no Parque Eduardo VII, em que o Papa Francisco encurtou o discurso para dar protagonismo aos testemunhos dos jovens — deixando “o desejo de que a alma volte a sorrir” a cada um que enfrenta as próprias angústias.
Na celebração, através de um conjunto de testemunhos e de atuações musicais e de dança, foram evocadas as “lágrimas” dos jovens de hoje, incluindo a falta de saúde mental, a guerra, o desânimo, a preocupação com as alterações climáticas, o desemprego ou a pobreza. Perante tudo isto, o Papa incentivou os jovens a não terem medo e a “abraçarem o risco de amar”.
O Papa Francisco tem observado com preocupação o risco que a geração dos jovens de hoje corre de perder a esperança e de se deixar vencer pelo desânimo. Perante as dificuldades económicas, as desigualdades galopantes ou a crise climática, os jovens de hoje podem deixar-se abater. Na vigília que celebrou com 1,5 milhões de jovens no Parque Tejo, Francisco lembrou aos jovens um ditado típico dos alpinistas: na arte de subir a montanha, o que importa não é não cair, mas não permanecer caído. Com a catequese deixada em Lisboa, Francisco quis dar aos jovens razões de esperança para se levantarem depois das inevitáveis quedas — mas também convidou os jovens católicos a serem, no plano mais global da sua geração, aqueles que ajudam a geração a levantar-se.
“Quem permanece caído, jubilou-se da vida, encerrou a esperança, fechou a ilusão, e fica caído. Quando vemos algum amigo nosso caído, o que temos de fazer? Levantá-lo! Forte! [‘Levantá-lo!’, responderam os jovens.] Quando alguém tem de levantar, ou ajudar a levantar uma pessoa, o que faz? Olha-o de cima. O único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima é para ajudá-la a levantar-se”, disse o Papa, voltando a pedir aos jovens que repetissem com ele o grito de ordem.
No dia seguinte, na missa final, Francisco retomaria a ideia, para pedir aos jovens que “resplandecessem”, ou seja, que fossem luz e iluminassem quem cai na escuridão. Sem julgamentos e sem exclusões, mas apenas com luz. Uma mensagem direta, mais uma vez, para aqueles setores da Igreja que, perante as diferenças, excluem em vez de incluir.
Em Fátima, numa curta passagem pelo santuário para rezar pela paz, Francisco voltou a falar da Igreja aberta a todos. Sentado na Capelinha das Aparições, o Papa usou a imagem da grande estrutura que envolve o espaço litúrgico para apresentar o seu projeto de Igreja: “A pequena capela em que nos encontramos é como uma bela imagem da Igreja: acolhedora, sem portas. A Igreja não tem portas, para que todos possam entrar. E aqui também podemos insistir para que todos possam entrar, porque esta é a casa da mãe, e uma mãe tem sempre o coração aberto para todos os seus filhos, todos, todos, todos, sem exceção.”
No mesmo sentido, numa passagem pela Universidade Católica Portuguesa, Francisco deixou uma mensagem semelhante, pedindo que a ciência esteja ao serviço da humanidade e condenando o elitismo académico, que agrava as desigualdades. “À universidade que se comprometeu a formar as novas gerações, seria um desperdício pensá-la apenas para perpetuar o atual sistema elitista e desigual do mundo com o ensino superior que continua a ser um privilégio de poucos”, disse o Papa.
A interpelação de Francisco aos jovens: “Não tenham medo”
Muitas foram, também, as interpelações diretas do Papa Francisco aos jovens de todo o mundo. Na cerimónia de abertura, lembrou que ninguém é “cristão por acaso” — mas que cada um é chamado pelo próprio nome, por Deus, a ser uma “obra-prima única e original”. Mais: cada um é amado por Deus tal como é, “sem maquilhagem”, disse o Papa, reforçando a singularidade de cada pessoa. É a partir desta singularidade de cada um que se podem estabelecer não só as relações interpessoais e humanas entre cada um, mas também a relação pessoal com a figura de Jesus que está no centro da fé cristã, defendeu o Papa perante meio milhão de jovens.
A partir dessa perspetiva teológica de que cada um é chamado pelo próprio nome, o Papa deixou um alerta às novas gerações para que tenham cuidado com as “ilusões do mundo virtual”.
“Muitos, hoje, sabem o teu nome, mas não te chamam pelo nome. Com efeito, o teu nome é conhecido, aparece nas redes sociais, é processado por algoritmos que lhe associam gostos e preferências. Mas tudo isso não interpela a tua singularidade, mas a tua utilidade para pesquisas de mercado. Quantos lobos se escondem por trás de sorrisos de falsa bondade, dizendo que conhecem quem és, mas sem te querer bem, insinuando que creem em ti e prometendo que serás alguém, para depois te deixarem sozinho, quando já não lhes fores útil. São as ilusões do mundo virtual e devemos estar atentos para não nos deixarmos enganar, porque muitas realidades que nos atraem e prometem felicidade mostram-se depois pelo que são: coisas vãs, supérfluas, substitutos que deixam o vazio interior”, sustentou o Papa Francisco na cerimónia de abertura.
Numa reação ao discurso do Papa aos microfones da Rádio Observador, um grupo de jovens de 15 anos interpretou as palavras de Francisco com especial acuidade: a mensagem de Jesus não é como a das “influentes do Instagram”, que dizem falar “para cada um” dos seus seguidores, fingindo que os conhecem. A mensagem cristã, pelo contrário, fala efetivamente ao coração de cada um — de uma forma transcendente, que extravasa os limites da comunicação humana.
Mas a grande interpelação deixada aos jovens na JMJ de Lisboa foi a da coragem. “Não tenham medo” — assim terminaram praticamente todos os discursos feitos pelo Papa Francisco em Portugal. Uma interpelação dirigida simultaneamente a vários grupos: aos jovens católicos desanimados pelo facto de serem uma minoria por vezes ridicularizada numa Europa crescentemente secular, aos crentes que são perseguidos violentamente em países onde a fé cristã é uma minoria (a este propósito, Francisco ouviu o testemunho de uma jovem natural de Cabo Delgado, região moçambicana massacrada pelo terrorismo), mas também à globalidade da geração dos jovens de hoje, que vê os seus sonhos “ofuscados pelo medo de não os realizar”.
Papa Francisco saiu de Lisboa “rejuvenescido”
Durante o voo entre Roma e Lisboa, na quarta-feira, o Papa Francisco já tinha deixado no ar a esperança de regressar a Roma, depois da JMJ, “rejuvenescido”. Durante os últimos meses, a saúde do Papa tem sido objeto de preocupação: só este ano, já esteve internado em dois momentos, por uma infeção respiratória e para uma operação a uma hérnia. Na comunicação social, chegou mesmo a levantar-se a pergunta: haveria JMJ na mesma caso Francisco não estivesse em condições de vir?
As duas hospitalizações somavam-se a um longo historial de fragilidades físicas de Francisco: os problemas no joelho têm-no obrigado a mover-se quase sempre de cadeira de rodas, tal como aconteceu na passagem por Portugal. Mas o Papa Francisco já disse que não é com o joelho que governa a Igreja Católica — e que, para já, a cabeça está em condições. Aliás, no voo de regresso a Roma, respondendo explicitamente a uma pergunta sobre a sua saúde, Francisco referiu que já tinha retirado os pontos da sua última cirurgia abdominal, mas que tinha de continuar a usar uma cinta durante os próximos dois ou três meses, de modo a evitar roturas no músculo. E garantiu: de saúde, está tudo bem.
Esta questão será, por isso, apenas um pormenor numa história maior: o Papa Francisco sai de Lisboa rejuvenescido, não apenas no que toca à saúde física, mas sobretudo no que diz respeito à vida da Igreja. Em Portugal, o chefe da Igreja Católica encontrou mais de 1,5 milhões de jovens católicos de todo o mundo a dar testemunho visível e audível da sua fé. Regressou a Roma impressionado pela qualidade da JMJ de Lisboa, que considerou “a mais bem preparada” das quatro que já viveu (Rio de Janeiro, Cracóvia, Panamá e Lisboa).
A passagem de Francisco parece também afastar definitivamente uma grande parte dos rumores em torno de uma possível renúncia papal nos próximos tempos. No final da JMJ, o Papa Francisco anunciou não apenas a realização da próxima JMJ em Seul, na Coreia do Sul, em 2027, mas fez também um convite a todos os jovens para que se juntem a ele em Roma no ano de 2025, para uma grande celebração do Jubileu dos Jovens integrada no ano jubilar que se vai viver. Juntando a este convite o facto de o Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade — um dos grandes projetos eclesiais que o Papa Francisco tem em curso — só terminar formalmente em outubro de 2024, fica aparentemente posta de lado a possibilidade de Francisco renunciar antes destes acontecimentos.
Mas, de Portugal, Francisco leva também o testemunho de uma Igreja mergulhada na crise dos abusos sexuais de menores. Os últimos anos foram negros para a Igreja em Portugal, com múltiplos pronunciamentos polémicos de bispos sobre a realidade dos abusos — e a situação intensificou-se em fevereiro deste ano, quando a comissão independente liderada pelo psiquiatra Pedro Strecht publicou o seu relatório final, dando conta de 4.815 vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja em Portugal desde a década de 1950 até hoje.
Em Lisboa, o Papa Francisco recebeu um grupo de vítimas portuguesas, acompanhadas pela psicóloga Rute Agulhas (que lidera o Grupo VITA, organismo da Conferência Episcopal para o apoio às vítimas), e, na conferência de imprensa a bordo do avião que o levou de regresso a Roma, Francisco lembrou a experiência “dolorosa” de ouvir os seus testemunhos e garantiu que estes encontros o ajudam a ganhar consciência da dimensão do problema. O Papa assegurou também que está ao corrente do que se está a passar em Portugal, nomeadamente do estudo realizado pela comissão independente, e disse que os bispos portugueses estão no bom caminho na resolução do problema — procurando abordá-lo com “serenidade” e “seriedade”.
Agora, um desafio para a Igreja: propor mais do que a missa das 11h
Cerca de um mês antes do arranque da JMJ, o bispo auxiliar de Lisboa Américo Aguiar e presidente da Fundação JMJ, que organizou o evento, tinha falado sobre as suas expectativas para o “dia seguinte” após a JMJ. Numa entrevista à Agência Ecclesia, Américo Aguiar sublinhou que, depois da JMJ, a Igreja em Portugal deveria estar pronta para responder ao desafio “muito exigente” de apresentar novas propostas à juventude. E deixou um alerta: se, depois da JMJ, a “única proposta” da Igreja fosse dizer aos jovens que “aos domingos há missa às 11h00”, então “isso é curto, muito curto”.
“A partir de dia 7, temos de rasgar o costume, apagar isso, e ter a coragem de desenhar, com os jovens, aquilo que o futuro nos apresenta”, dizia Américo Aguiar, que foi recentemente nomeado cardeal pelo Papa Francisco, estando a criação cardinalícia apontada para o dia 30 de setembro, no Vaticano.
Em Lisboa, o Papa Francisco deixou uma mensagem muito clara ao clero português nesse sentido: a Igreja tem de saber comunicar para o mundo real e concreto onde vive, sob pena de ficar a falar sozinha. Fê-lo durante a oração de vésperas com o clero português, no Mosteiro dos Jerónimos, logo no primeiro dia da sua visita, num discurso com uma mensagem poderosa: a Igreja tem de vencer a nostalgia dos tempos antigos.
Na celebração, Francisco reconheceu que existe, hoje em dia, uma grande “desilusão e aversão” da parte de muita gente em relação à Igreja. “Devido, às vezes, ao nosso mau testemunho e aos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que nos chamam a uma humilde e constante purificação, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar”, apontou Francisco perante os bispos e os padre portugueses — naquela que seria a sua primeira referência em solo português à crise dos abusos sexuais de menores, ainda antes do encontro com as vítimas.
Mas o Papa foi além disso e considerou que, por vezes, a Igreja fica presa “nas redes da resignação e do pessimismo”, por achar que a sua mensagem não passa para a sociedade. Para Francisco, esse é um problema cuja resolução cabe à Igreja — e não à sociedade. É necessário, disse o Papa, “abertura de coração para experimentar novos caminhos a seguir”, e isso significa abandonar o medo, evidenciado por tantos setores mais tradicionalistas da Igreja Católica, de dialogar com as culturas contemporâneas, com o mundo real e concreto onde a Igreja se move. Tal como no amor desinteressado, que não se fica na teoria mas suja as mãos, também a Igreja tem de arregaçar as mangas e aprender a falar a língua das comunidades atuais.
Numa JMJ em que houve espaço para o fado e a música tecno, a oração e a festa, o ruído e o silêncio, a dança, o teatro e a tecnologia, o Papa Francisco pediu ao clero português que lutasse contra a “tentação de continuar com uma ‘pastoral nostálgica feita de lamentações’” e que ganhasse coragem para se fazer “ao largo, sem ideologias nem mundanismos, animados por um único desejo: que chegue a todos o evangelho”. Francisco foi claro: os padres e bispos não podem ter medo de dialogar com o mundo contemporâneo. É isso que os jovens exigem e é isso que o anúncio da mensagem cristã implica, como sempre em cada momento da história.
“Também nós somos chamados a mergulhar as nossas redes no tempo em que vivemos, a dialogar com todos, a tornar compreensível o evangelho, mesmo que para isso tenhamos de correr o risco de alguma tempestade”, afirmou o Papa, dando aos membros do clero o mesmo conselho que deu aos jovens: que não tenham medo e não se fechem em fórmulas antigas que não só já não funcionam como afastam os jovens da fé. “Como os jovens que aqui vêm de todo o mundo para desafiar as ondas gigantes da Nazaré, façamo-nos ao largo também nós sem medo.”
A Jornada Mundial da Juventude reuniu em Lisboa mais de 1,5 milhões de jovens de todos os países do mundo (a única exceção terão sido as Maldivas). A língua mais ouvida era o espanhol, não só pela óbvia proximidade de Espanha, que facilitou o acesso dos espanhóis ao evento, mas também pela significativa presença de latino-americanos. A América do Sul é o continente com mais católicos em todo o mundo: mais de 40% dos católicos encontram-se ali. Eventos como a JMJ, reunindo centenas de milhares de católicos e colocando em evidência a preponderância dos latino-americanos no universo da Igreja, carregam consigo uma inevitabilidade: a Igreja Católica já não é só, nem principalmente, europeia. Por isso, o italocentrismo e o eurocentrismo históricos da Igreja, com a sua ritualidade tradicional e propostas à imagem do Velho Continente, já não são suficientes.
O Papa Francisco, o primeiro Papa latino-americano da história, tem sido ele próprio, com o seu estilo, os seus discursos e a sua capacidade de cativar o mundo, uma ilustração disto mesmo. Mas a verdade é que aquilo que aconteceu durante esta semana em Lisboa contrasta radicalmente com a realidade da maioria das paróquias católicas de Portugal — sobretudo quando olhamos para as regiões fora da zona urbana de Lisboa e no interior do país —, onde encontramos uma Igreja envelhecida e sem propostas capazes de defender a relevância da instituição no mundo moderno. Com o fim da JMJ, o desafio lançado pelo Papa no Mosteiro dos Jerónimos passa agora para a Igreja em Portugal: será a instituição capaz de ajudar os jovens de hoje nas suas inquietações e buscas por respostas, aprendendo a comunicar com o mundo contemporâneo e a fazer propostas culturalmente relevantes para as novas gerações? Ou a proposta da Igreja continuará a resumir-se à missa das 11h aos domingos e à condenação das falhas morais dos jovens?
Aborto, eutanásia, Ucrânia, refugiados e clima: Papa não esqueceu mensagens políticas
Na sua passagem por Portugal, o Papa Francisco aproveitou também para tocar em assuntos políticos de relevância nacional e internacional.
No plano nacional, Francisco criticou o aborto e a eutanásia, que a doutrina da Igreja Católica condena liminarmente, numa mensagem que causou embaraço ao católico Marcelo Rebelo de Sousa, sentado ao lado de Francisco durante uma intervenção no Centro Cultural de Belém. “Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar?”, perguntou Francisco, quase um mês depois de o Presidente da República se ter visto obrigado a promulgar (após um intenso processo legislativo com vários vetos) a lei da morte medicamente assistida. Ao lado, Marcelo, um Presidente que viveu este processo num dilema moral devido à sua convicta fé católica, não pôde aplaudir as palavras do Papa.
Mas os grandes avisos do Papa Francisco em Portugal foram no plano global e dirigidos especialmente à Europa. “Para onde navegas, [Europa,] se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo?”, perguntou. “Fica-se preocupado ao ler que, em muitos lugares, se investem continuamente os recursos em armas e não no futuro dos filhos. Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; uma Europa que inclua povos e pessoas, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas.”
Em Fátima, o santuário cuja história se relaciona intimamente com a guerra no leste europeu, o Papa Francisco rezou em silêncio pela paz em frente à imagem de Nossa Senhora de Fátima — embora não tenha lido de viva voz uma oração previamente preparada para o efeito nem tenha mencionado explicitamente a guerra na Ucrânia, como uma grande parte da imprensa internacional esperava que acontecesse. O Papa garantiu que rezou “sem publicidade”.
Francisco não esqueceu o drama dos refugiados, que continuam a morrer no Mar Mediterrâneo perante a inação europeia — “Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios?” —, nem a crise climática: “O problema global continua extremamente grave: os oceanos aquecem e, das suas profundezas, sobe à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico.”