A inflação e a dinâmica do mercado de trabalho foram dos grandes responsáveis pelo excedente orçamental das contas públicas — o primeiro num primeiro trimestre —no arranque do ano. Em termos de receita corrente, foram as contribuições sociais que mais subiram: 12,2% face ao período homólogo, praticamente mais 800 milhões de euros, um impulso que dá robustez às contas do Estado.
Com o emprego a crescer (embora o desemprego também tenha subido — dinâmicas que se explicam pela subida da população ativa), Fernando Medina vê as contribuições sociais a ajudar muito ao ‘brilharete’ do primeiro trimestre — já representam 11,7% do PIB, mais duas décimas face há um ano. No primeiro trimestre, o Estado arrecadou 7.254,9 milhões de euros, menos 13% do que no último trimestre do ano, mas mais 12,2% do que há um ano, no arranque de 2022. É o valor mais alto da série do INE, cujo início remonta a 1999.
Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, também salienta o “bom desempenho” das contribuições, “impulsionadas pelo robusto crescimento do emprego”, numa altura em que a economia portuguesa tem “quase 5 milhões de trabalhadores, um máximo histórico, diante de uma população quase estagnada nos últimos 15 anos”.
No conjunto do ano passado, o Estado arrecadou mais de 22 mil milhões de euros em contribuições sociais, e este ano o Governo espera novo recorde: 23,6 mil milhões, com base no cenário do Programa de Estabilidade. Mas um crescimento daqui para a frente estará dependente da “evolução da economia e da sua capacidade de criar mais emprego”, enumera Paulo Rosa.
A economia portuguesa está muito dependente da evolução do turismo e do rendimento disponível das famílias, mas há fatores exógenos que também têm uma palavra a dizer: o economista chama à atenção para o comportamento das principais economias, como a norte-americana ou a alemã — (“a economia da Alemanha está em recessão técnica, ameaçando o crescimento da economia portuguesa”, sublinha).
Além disso, o aumento gradual das taxas de juro pelo Banco Central Europeu (BCE) “penaliza cada vez mais o rendimento disponível das famílias e é uma ameaça ao investimento das empresas”. E isso poderá “reforçar um sentimento de desaceleração económica nos próximos trimestres e, consequentemente, da criação de emprego e, logo, da obtenção de mais receita via contribuições sociais”.
Receita com contribuições sociais não subia tanto desde 1998. Porque estamos a descontar mais?
Contas mostram redução “do peso do Estado na economia”
Os impostos sobre o rendimento e o património também tiveram uma subida expressiva, de 11,7% face a período homólogo, para 4.862,3 milhões de euros. Um outro sinal que confirma o dinamismo do mercado de trabalho e a recuperação da economia — no primeiro trimestre, o PIB cresceu 2,5% em termos homólogos e 1,6% em cadeia.
É isso mesmo que aponta o INE no destaque com as contas nacionais trimestrais, divulgado esta sexta-feira: “A evolução positiva da receita fiscal (7,7%) e contributiva (12,2%) evidencia a recuperação da atividade económica, o comportamento do mercado de trabalho, bem como, no caso dos impostos sobre a produção e importação [+5,7%], o crescimento dos preços”.
No primeiro trimestre do ano, o Estado registou um excedente de 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB), em contabilidade nacional (a ótica que interessa a Bruxelas), o equivalente a um saldo positivo de 761,3 milhões de euros. É o primeiro excedente num primeiro trimestre desde, pelo menos, 1999 (o início da série do INE), pese embora o primeiro excedente trimestral tenha sido registado apenas no final de 2016. E é o terceiro superavit trimestral de Medina (só não o conseguiu no último trimestre de 2022, um período em que o défice chegou aos 9,1% — com o total do ano a fixar-se nos 0,4%).
Para o excedente não é alheio o crescimento da economia no primeiro trimestre, acima do esperado, com um mercado de trabalho que continuou dinâmico apesar do aumento do desemprego.
Nas contas divulgadas pelo INE, as receitas subiram, portanto, mais do que as despesas: 9,3% e 4,3%, respetivamente. O economista Paulo Rosa entende mesmo que, além do “aumento substancial” das contribuições sociais, também o fraco crescimento da despesa pública no primeiro trimestre contribuiu “em grande medida” para o excedente orçamental de 1,2%.
A despesa corrente subiu 3,9%, fruto da subida das prestações sociais pagas (2,6%) — que Pedro Brinca, professor na Nova SBE, atribui ao aumento da taxa de desemprego no início do ano. Segundo dados já divulgados pelo INE,a taxa de desemprego foi estimada em 7,2% no primeiro trimestre do ano, mais 0,7 pontos percentuais face ao último trimestre de 2022 e em 1,3 pontos em relação ao trimestre homólogo.
As despesas com pessoal também cresceram (6,5%), via aumentos salariais na função pública que começaram a ser pagos no arranque do ano (e que incluem a subida do salário mínimo). Os encargos com juros aumentaram mais significativamente (22,1%), enquanto o consumo intermédio praticamente estagnou (0,9%).
Os efeitos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) já se começam a ver nas contas públicas: a despesa de capital aumentou 11,5%, em resultado do crescimento de 4,5% do investimento e de 41,4% da outra despesa de capital, “por efeito de uma maior utilização de verbas do Plano de Recuperação e Resiliência para ajudas ao investimento”, refere o INE.
Paulo Rosa fala, porém, ainda num efeito pouco expressivo do PRR. “O aumento da receita de capital [para os 328,7 milhões de euros] está relacionado com a maior utilização de fundos da União Europeia para financiamento de despesa de capital, designadamente no âmbito do PRR, mas os valores são pouco expressivos, apesar de um aumento de 70,1% na receita de capital”, observa.
Mas há uma redução “do peso do Estado na economia”, constata o economista: o peso da despesa no PIB desceu de 40,2% para 37,8% (a receita, por sua vez, diminuiu de 39,6% para 39%).
O Governo estima que o ano termine com um défice de 0,4% do PIB e o excedente agora conhecido não coloca essa meta em causa. Paulo Rosa lembra que à medida que o ano avança, as contas públicas “tendem a mostrar menos resiliência”, sobretudo após a época do verão, com o abrandamento do turismo e o aproximar do final do ano. “Provavelmente as contas públicas já registarão défice no último trimestre, penalizadas pela desaceleração da atividade económica”, antecipa.
Pedro Brinca, da Nova SBE, também lembra que alguns especialistas apontam para um abrandamento da economia já no segundo trimestre do ano, o que poderá ter impactos nas contas públicas, por via de um eventual menor peso das receitas fiscais com vendas ou das receitas contributivas, se o emprego contrair.
“Por um lado, o abrandamento económico significa que a receita com os impostos que incidem sobre a atividade económica diminui, e, por outro lado, se se traduzir num aumento do desemprego, aumentam também as prestações sociais”, como o subsídio de desemprego, analisa Pedro Brinca.
Poupança das famílias mantém-se em níveis de 2008
É preciso recuar ao terceiro trimestre de 2008 para encontrar uma taxa de poupança das famílias mais baixa do que a que se registou nos últimos dois trimestres. No arranque deste ano, caiu ainda mais face ao final de 2022, de 6,5%, para 5,9%.
O INE justifica com o aumento de 2,6% do consumo privado (em termos nominais, ou seja, sem incluirmos o efeito da inflação) — um abrandamento face aos 3,1% do trimestre anterior — superior ao aumento do rendimento disponível bruto, que apenas avançou 1,9%. Mas estes valores são nominais, ou seja, não incluem o efeito da inflação, pelo que o consumo pode crescer à boleia do aumento dos preços e não do volume de consumo, chama a atenção Pedro Brinca. “A inflação também ajuda à diminuição da taxa de poupança.”
Se tivermos em conta os efeitos da inflação, as contas são outras: o consumo privado, em termos reais, aumentou 0,7%. Já o rendimento disponível bruto diminuiu 0,1%, após um aumento de 0,8% no trimestre anterior.
O consumo privado não recuou, o que Paulo Rosa atribui a “algum efeito positivo dos aumentos salariais” verificados no início do ano, “aliado ao poder aquisitivo daquelas famílias que conseguiram capitalizar os seus rendimentos, sobretudo rendas, lucros e juros, com a elevada taxa de inflação em 2022”.
Daqui para a frente, o economista acredita que a taxa de poupança deverá continuar a cair à medida que as taxas de juro continuam a sua trajetória de subida, “permanecendo elevadas por um período de tempo mais prolongado do que o estimado”, o que vai penalizar o rendimento disponível das famílias. Ou seja, enquanto a inflação estiver acima dos objetivos de estabilidade de preços do BCE (os 2%), “é provável que a taxa de poupança continue também a diminuir por esta via”.