Antes de o pimba ser pimba, havia um conjunto de artistas populares, reis do disco e da cassete pirata, aos quais se aplicavam indistintamente os rótulos de “pirosos” ou “foleiros”. Cantavam para o povo, o país real, o país das festas e dos arraiais e para os emigrantes espalhados pelo mundo, de França aos Estados Unidos, do Luxemburgo ao Canadá. Eram o elo que ligava esses portugueses ao país, uma espécie de bacalhau musical para aliviar as saudades da terra. Nenhum terá compreendido tão bem esse sentimento, a necessidade de manter viva a ligação a Portugal, do que Dino Meira, ele próprio emigrante e que antes de ter alcançado o sucesso no país a partir de meados dos anos 80, era dos artistas mais ativos no circuito da emigração, atuando para as comunidades portuguesas.
Armandino Marques Meira, nascido em Espinho em 1940, saiu do país ainda muito novo e foi no estrangeiro que iniciou a carreira artística, mais precisamente no Brasil, sob a asa de um dos grandes nomes da canção portuguesa Francisco José, intérprete de “Olhos Castanhos” e vedeta no Brasil, onde se fixara, e que Dino Meira acompanhava à viola. Mais tarde, estabelecido no Canadá, o cantor lançou a carreira a solo que o levou a percorrer os santuários da comunidade portuguesa na América do Norte e, depois, na Europa.
Os primeiros discos gravou-os para discográficas sediadas nos Estados Unidos e dedicadas exclusivamente à edição de músicos portugueses, alguns deles também emigrantes, como o açoriano Jorge Ferreira. A dar os seus primeiros passos na composição, Dino Meira gravava canções de outros artistas, como do seu mentor Francisco José e de cantores românticos brasileiros como Paulo Sérgio ou Reginaldo Rossi, cantadas com o devido sotaque, e adaptações de êxitos internacionais como “Signorina Concertina” (tema de Roberto Danova, autor de vários sucessos que, após adaptados, se tornaram canções emblemáticas de intérpretes como Marco Paulo).
[“Zum Zum Zum”, Dino Meira em 1981:]
Mas, em meados dos anos 70, a grande aposta de Dino Meira e de outros artistas da emigração eram os concertos ou espetáculos de variedades. Na altura, chegou a ser acompanhado pela banda do maestro Shegundo Galarza, que dirigira a orquestra no segundo álbum de Meira. Na bateria, estava um jovem Ramón Galarza, filho do maestro, e que, anos depois, viria a produzir grande parte dos discos de Dino Meira para a Polygram:
“Quando comecei a tocar como baterista mais profissionalmente foi com o meu pai, que tinha um conjunto, nos anos 70. Costumávamos ir aos Estados Unidos e ao Canadá acompanhar artistas que atuavam nos espetáculos para os emigrantes. Conheci o Dino Meira no Canadá porque ele vivia lá. Eram os espetáculos de variedades, como se chamavam na altura e ele fazia parte do elenco, entre vários cantores”, lembra o produtor discográfico, que destaca como ponto forte de Dino Meira a capacidade de comunicação com o público: “Ele era ótimo ao vivo, comunicava muito bem com o público, tinha esse faro de perceber o que é que as pessoas queriam, se era uma música mais romântica, mais a abrir. Não havia um alinhamento fixo, era um bocadinho em função do público.”
Esse foi o mesmo público que, no início dos anos 80, lhe deu os primeiros sucessos na multinacional Polygram, quando finalmente começou a gravar em Portugal, segundo consta por intermédio de Francisco José. “Negro Destino” e, sobretudo, “Falavas de Amor” eram a resposta da discográfica ao avassalador sucesso de Marco Paulo, editado pela concorrente Valentim de Carvalho. No entanto, e ao contrário do intérprete de “Eu Tenho Dois Amores”, Dino Meira sabia que continuava a ter um mercado privilegiado na emigração e tratou de reforçar essa ligação através daquilo a que se pode chamar canções-retrato da vida dos emigrantes, “Zum-Zum-Zum”, “Já Comprei uma Casa em Portugal”, “Adeus Paris, Até Lisboa”, “Viva Emigrante Viva”, dando continuidade a temas dos anos 70 que não deixavam dúvidas quanto ao público a que se dirigia preferencialmente, “Newark Tem” ou “O Hino do Imigrante”.
Canções mais românticas, algumas adaptações de grandes sucessos internacionais (“Pequena Criança” ou “Linda Bonequinha” era a versão do êxito do belga Art Sullivan, “Petite Demoiselle”), misturavam-se com outras de cariz mais tradicional e composições próprias a piscar o olho aos emigrantes. Não sendo um músico sofisticado, Dino Meira sabia bem que sonoridade queria para os seus discos, sempre a pensar no gosto do público: “Passava-me as músicas numa cassete gravada por ele, explicava-me que tipo de ambiente gostaria para aquele tema. E eu na altura já trabalhava com computadores, já fazia maquetes instrumentais muito aproximadas do que seria depois quando fôssemos gravar com os músicos, mas ele assim ficava já com uma ideia. Antes de irmos para estúdio, já havia um consenso entre os dois de como é que a coisa ia ficar”, recorda Ramón Galarza. E o cantor não tinha problemas em dizer quando alguma coisa não lhe agradava: “Eu por vezes talvez quisesse ser mais ousado na instrumentação e ele dizia-me, ‘pá, isto não é para o meu público’, dizia-me mesmo isto.” Segundo o produtor, Dino Meira acompanhava tudo ao pormenor: “Dava muitas indicações, era muito participativo, não digo que fosse chato, às vezes roçava. Isso era atenuado por ele ser muito boa pessoa, e não digo isto só para ser simpático. Isto é mesmo verdade. Dos cantores dessa área musical com quem trabalhei era o mais genuíno.”
Dedicava a mesma atenção às letras quando começou a recorrer a outros compositores e letristas como Fernando Correia Marques, o pai do “Burrito”. Em entrevista à RTP Memória, lembrou como Dino Meira não gostava de certas palavras “caras” ou difíceis de cantar: “Achas que as pessoas vão dizer ‘oásis’? […] se eu não consigo, as pessoas não conseguem.” José Reza, outro dos compositores que escreveram para Dino Meira no início da década de 90, sentiu o mesmo. Foi Correia Marques quem os apresentou e, apesar de gravarem para a mesma editora, a Polygram, Reza ficou surpreendido com o convite porque não estavam no mesmo comprimento de onda musical: “Disse-me que gostava que eu escrevesse para ele mas eu era um músico de baladas, o estilo dele era diferente, mais popular e eu pedi-lhe umas cassetes para ouvir, para ver o que é que podia fazer.” Mesmo assim, o convite era motivo de lisonja: “Eu naquela altura só escrevia as minhas canções, nunca tinha escrito para ninguém e nunca ninguém me tinha pedido. Ele foi o primeiro a acreditar em mim, a querer que escrevesse para ele.”
Essa atenção ao que o rodeava, o reconhecimento das suas limitações e o instinto para perceber quem poderia acrescentar coisas diferentes à música que fazia eram virtudes também reconhecidas por Ramón Galarza: “Apesar de ser compositor, assumia que por vezes não conseguia fazer músicas como aquelas que ele escolhia para adaptar.” E não tinha qualquer vergonha em colaborar com artistas e músicos com os quais à partida não teria grandes afinidades: “Em todos os discos ele queria inovar de alguma maneira, com o som, os músicos que escolhíamos”, diz Galarza. “Era essa tentativa de inovação que ele tinha, de fazer coisas diferentes, que me agradou.” E foi isso que facilitou a colaboração com José Reza, não obstante as dúvidas iniciais e a exigência do próprio Dino Meira para que o resultado correspondesse ao que tinha em mente: “Ele ajudou-me a percebeu o que o público quer. A partir daí, também mudei o meu estilo.”
A colaboração entre os dois materializou-se no álbum de 1992, Uma Vez na Vida, com quatro canções escritas por José Reza, incluindo a que dava o título ao disco e outra cujo sucesso haveria de galgar os limites da música “foleira” e entrar na cultura popular, mesmo sendo uma canção de emigrante e para emigrantes: “Um dia pediu-me para escrever uma canção sobre o mês de agosto. E eu fiquei a pensar ‘o que é que vou escrever sobre o mês de agosto?’, mas percebi que ele queria uma canção que chegasse aos emigrantes que naquela altura vinham passar férias à terra, vinham de carro, atravessavam a Europa toda, não é como agora que vêm de avião e duas horas depois estão cá. Vinham na altura das festas da aldeia e isso era para eles muito importante”, conta José Reza.
O músico nunca tinha vivido fora do país, a realidade da emigração era-lhe completamente alheia. Teve de se imaginar no papel de um emigrante e inverteu o seu método habitual de composição: “É como um escritor, é como inventar uma personagem e o ‘Meu Querido Mês de Agosto’ começou ao contrário do que é normal quando componho. Normalmente a canção nasce de uma ideia, de um momento. Por exemplo, o ‘Uma Vez na Vida’ surgiu quando estava a falar com a minha mulher ao telefone, a mãe dos meus filhos, e disse-lhe “pelo menos uma vez na vida faz não sei o quê” e depois fiquei a pensar que havia ali qualquer coisa. E habitualmente vou desenvolvendo as palavras e a melodia ao mesmo tempo, mas com o ‘Querido Mês de Agosto’ não comecei pelo refrão, isso veio depois.”
Apesar de gostar muito do início – “Já passaram tantos dias / já passaram tantos meses / E eu ando louco por regressar” –, que, na sua opinião, correspondia ao verdadeiro sentimento do emigrante, Reza confessa que não tinha “muita fé” na canção. “Nunca sabemos o que vai funcionar ou não, o público é que manda, mas o Dino Meira, que conhecia muito bem o público dele, viu logo que aquilo ia rebentar, tanto que me disse que com o dinheiro que ia fazer com a música me comprava um carro.” E o “Meu Querido Mês de Agosto” rebentou mesmo, ainda mais do que acontecera anos antes com “Homem Vestido de Branco”, uma homenagem ao Papa João Paulo II adaptada de um canção francesa e que beneficiou de ter sido lançada pouco antes da visita do papa a Portugal, em 1991.
Para José Reza, a certeza de que Dino Meira sabia que a canção iria ser um sucesso é-lhe dada por um pedido invulgar que o cantor lhe fez na altura: “Pediu-me para ficar como coautor, da letra, a música é minha, mas a letra ficou dos dois, ou seja, ao todo eu fiquei com 75% e ele com 25%.” Nas outras três canções de José Reza incluídas no álbum, é ele o único autor creditado: “Se eu soubesse o sucesso que ia ser não lhe tinha dado nada. Ainda hoje recebo uma gratificação estatutária da SPA, que para todos os efeitos é uma reforma, que é de 900 euros e acho que se deve muito ao ‘Meu Querido Mês de Agosto’.” E Dino Meira comprou-lhe o carro? “Não comprou, mas comprei eu.”
Mais de trinta anos depois do lançamento de “Meu Querido Mês de Agosto”, a canção deu título a um filme de Miguel Gomes, a inúmeras rubricas jornalísticas e entrou no imaginário coletivo do país, trauteada inconscientemente sempre que se fala do mês em que a maioria dos portugueses continua a tirar férias e em que, apesar das profundas mudanças sociológicas da emigração portuguesa nas últimas décadas, muitos regressam às aldeias para matar saudades.
[“Minha Terra”, no programa “Portuguesíssimo”, da televisão canadiana:]
Mas significa isso que uma canção como a de Dino Meira tem um alcance transversal? Luís Trindade, historiador que em 2022 publicou Silêncio Aflito, uma análise da sociedade portuguesa através da música popular entre as décadas de 40 e 70 do século passado, tem dúvidas quanto à transversalidade social do fenómeno: “Cantores como Dino Meira ou Marco Paulo ou provocam ou são produto de uma forte estratificação social. Vejo-os como fortes marcadores de uma divisória entre duas coisas simultâneas e contraditórias: por um lado, a entrada no espaço público de uma forma muito determinada do gosto popular, de um modo que era impossível antes (há mais rádios, mais cassetes piratas), um certo gosto popular que estava muito mais confinado e, por outro lado, a constituição de uma classe média urbana, da sociedade de consumo, que se distancia claramente deste gosto.”
Mesmo quando uma canção se torna um êxito popular e é reconhecida até por quem não consome e não gosta desse estilo, a apropriação é mais aparente do que real e as muralhas que delimitam o bom gosto não são completamente derrubadas. Persiste sempre um distanciamento irónico em relação a canções do universo a que, a partir de 1995, graças a um êxito de Emanuel, se dá o nome de “Pimba”: “A minha opinião é que essas canções, essas músicas de emigrante, em vez de atenuarem o desdém da classe média urbana portuguesa pelos emigrantes, reforçam-no”, diz Luís Trindade, sublinhando a “enorme distância entre a classe média portuguesa e o mundo dos emigrantes, a casa dos emigrantes, o carro dos emigrantes, a linguagem dos emigrantes”, para concluir que “essa música talvez tenha reforçado esses estereótipos.” Um espetáculo como Deixem o Pimba em Paz, criado pelo humorista Bruno Nogueira com a colaboração de Manuela Azevedo, Filipe Melo e Nuno Rafael, em que a vários hinos do pimba são dadas novas roupagens, de um “gosto impecável”, ou até um fenómeno como a telenovela satírica Pôr-do-Sol, servem quase para criar “as condições para que a classe média se possa rir das coisas que divertem o povo”, adianta o historiador.
Tão antigas como esses géneros populares eram, e continuam a ser, as barreiras erguidas para demarcar territórios musicais e sociais. Mesmo José Reza, autor de “Meu Querido Mês de Agosto”, reconhece que, quando Dino Meira o convidou a compor para ele, não se identificava com o estilo e Ramón Galarza recorda como era visto o facto de, enquanto produtor, trabalhar com artistas tão diferentes como Dino Meira e os Xutos e Pontapés: “Lembro-me de na altura produzir um disco do Dino Meira e estava a produzir também um disco dos Xutos e Pontapés. De vez em quando, mandavam-me umas bocas: ‘então amanhã vais tocar com o Dino Meira?’. Aquelas brincadeiras, aquelas picardias que há em todos os meios.” No entanto, isso não o perturbava: “Tenho muito orgulho de ter trabalhado com ele. Sempre gostei muito da minha profissão e de aprender. E a oportunidade que eu tive era na prática. Para mim, não fazia confusão nenhuma nem mexia com o meu ego trabalhar com artistas com quem não tinha nada a ver musicalmente. Aprendi com todos e aprendi também com o Dino Meira.”
Dino Meira morreu subitamente, a 11 de novembro de 1993, vítima de um enfarte do miocárdio. Diz-se que terá sido da emoção durante um jogo da seleção (na véspera, Portugal tinha derrotado a Estónia no Estádio da Luz), ele que adorava futebol, contar piadas e fumar cigarros uns atrás dos outros, sobretudo quando estava a trabalhar. Quando morreu, preparava-se para partir para o Brasil, onde iniciara a sua carreira e onde tinha agendados dois concertos. Já não pôde testemunhar a explosão da música pimba e do autêntico pânico moral que gerou em certos setores da sociedade, ao ponto de, em novembro de 1996, ter sido tema de discussão num debate televisivo de grande audiência conduzido por Maria Elisa.
[atuação no Natal dos Hospitais em 1989:]
O apresentador Carlos Ribeiro, rosto do programa Made in Portugal, um top da música nacional que ajudou a divulgar o fenómeno, afirmou que “havia um sem número de cantores que Lisboa não conhecia, mas que estavam lá, faziam espetáculos e eram queridos. Era forçoso que eles viessem à televisão e pudessem cantar as suas canções”. Ora, era precisamente esta repentina visibilidade de um estilo até então confinado às festividades populares, aos bailes de verão e às feiras, que preocupava os defensores do “bom gosto”, representados naquele debate por figuras como o crítico musical João Gobern ou o maestro Pedro Osório, para quem se estava a fazer um “branqueamento de um fenómeno cultural que [era] um bocado grave, a música do Quim Barreiros não [devia] divertir estudantes universitários”, adiantando ao mesmo tempo que “a música pimba não [era] causa, [era] consequência de um certo apimbalhamento cultural do país”.
A meio caminho entre críticos e praticantes do pimba, o maestro António Vitorino de Almeida fez questão de recordar, no mesmo debate, que esse género de música popular sempre tinha existido e continuaria a existir, dando como exemplo o Conjunto António Mafra: “O António Mafra era a música que os emigrantes consumiam. A música pimba era a música dos emigrantes e os emigrantes foram as pessoas que este país abandonou […] era a única ligação que tinham ao país e se lhes fôssemos tirar essa ligação ficavam sem nada.”
Sem atingir o estrelato interno e as vendas astronómicas de um Marco Paulo (“o Dino Meira não era como outros que se conseguiam promover, eles ou as editoras, nas revistas sociais, era muito reservado, muito tímido”, lembra Ramón Galarza) ou o reconhecimento no país de adoção, como aconteceu com Linda de Suza, Dino Meira deixou um legado de simpatia junto daqueles com quem trabalhou e um punhado de canções com as quais os emigrantes, esquecidos por Portugal e ridicularizados pelos seus compatriotas, se identificavam e adotaram como banda sonora das suas vidas e dos seus labores. Que, no mês das férias, quando nos sentimos autorizados a baixar a guarda do bom gosto e a vestir os calções de banho musicais, trauteemos e batamos o pé, ainda que involuntariamente, ao compasso do querido mês de agosto, é uma pequena vingança servida a quente no pino do verão.