Quinze dias a marcar a agenda política é pouco habitual. Ser Pedro Passos Coelho a fazê-lo é uma absoluta novidade — logo ele que, salvo raríssimas exceções, se submeteu ao exílio mediático desde que deixou a liderança do PSD. Que o faça tornando pública e cristalina a sua discordância com a linha oficial ditada por Luís Montenegro é ainda mais relevante. E que exponha essa rutura (há muito ventilada e assumida nos bastidores por quem os conhece bem) numa altura em que o novo Governo está ainda na incubadora deixou sociais-democratas e democratas-cristãos de boca aberta. Ninguém percebe para onde caminha e o que pretende, afinal, o antigo primeiro-ministro. Mas já ninguém ignora (porque não pode ignorar) que Pedro Passos Coelho deixou oficialmente o recato.
A entrevista a Maria João Avillez no podcast “Eu Estive Lá” foi apenas o último ato. A conversa estava marcada há vários meses, foi gravada na semana passada, mas nem por isso deixou de coincidir com a fase de afirmação de Luís Montenegro como chefe de Governo. Nem mesmo essa coincidência temporal fez retrair o antigo primeiro-ministro, que disse publicamente aquilo que é há muito uma evidência para quem acompanha de perto a afirmação de Montenegro como líder do PSD: o social-democrata tem procurado deixar cair a imagem de herdeiro do passismo, as relações com o homem que lhe deu a maior montra política arrefeceram e o legado que decidiu perseguir é outro, mais antigo, o de Aníbal Cavaco Silva. Ser Passos a dizê-lo preto no branco só tornou tudo mais real.
“[Montenegro] tornou-se uma possibilidade de liderança dentro do PSD pelo exercício que fez no Parlamento. De contrário, não creio que alguém se fosse lembrar dele por esse efeito. Teve essa oportunidade e trabalhou bem nela porque realmente foi um grande líder parlamentar. Portanto, ele faz parte dessa herança e desse legado. Em que medida é que ele se quer desconectar mais desse seu próprio passado também ou não, não sei. A mim parece-me que foi muito evidente durante os últimos tempos que houve essa preocupação de tentar desligar”, sugeriu Pedro Passos Coelho na já referida entrevista.
Descascada, a resposta tem três conclusões: Passos fez questão de dizer que foi ele quem lançou Montenegro; Passos fez questão de recordar que, se não tivesse ido ele, Montenegro nunca teria chegado à liderança do PSD; Passos fez questão de assinalar que, apesar de tudo, Montenegro preferiu esquecê-lo e esquecer o seu próprio passado como ponta de lança do passismo. Recorde-se, aliás, que Montenegro já afirmou publicamente que a sua referência maior é Aníbal Cavaco Silva. “Foi aquele que me despertou mais para a vida política, foi aquele que me impôs mais pensamento, mais reflexão. Acho que o projeto dele foi o único, verdadeiramente, que teve um principio, um meio e um fim”, chegou a dizer.
Ora, as palavras do antigo primeiro-ministro foram recebidas no núcleo duro do PSD com um misto de estupefação e revolta. Sobretudo porque ainda está muito presente o episódio da semana passada, em que Pedro Passos Coelho aproveitou o lançamento do livro Identidade e Família para defender (quase) explicitamente aquilo que há tempo muito pensa e diz junto dos mais próximos: o “não é a não” do PSD a André Ventura é um absoluto disparate e vai acabar por condenar os sociais-democratas.
Desta vez, no entanto, Passos ainda distribuiu mimos pelo CDS e, em particular, por Paulo Portas, que, sabe o Observador, não terá gostado nada do que ouviu. Além de acusações de falta de “solidariedade” num período particularmente difícil, Passos fez saber que a troika não confiava em Paulo Portas e reabriu todas as feridas da demissão “irrevogável”. O tom causou ainda maior estranheza porque esta não é sequer a primeira entrevista que Passos dá sobre esse período em particular e nunca, como agora, usou aqueles termos para se referir ao seu antigo parceiro de coligação. “Foi uma brutalidade. Para nós e para o CDS. Não consigo compreender”, desabafa um destacado dirigente social-democrata.
A questão que mais se vai repetindo nos bastidores da Aliança Democrática é “porquê agora”. Ninguém encontra uma resposta evidente. Toda a gente conhece a posição de Passos sobre os cordões sanitários à direita ou sobre a própria liderança de Montenegro, com quem foi perdendo progressivamente o contacto. Aliás, não é sequer a primeira vez que Passos se refere a Montenegro em termos menos simpáticos. Em dezembro, embrulhou um apoio tímido ao social-democrata com considerações sobre a “importância dos tempos” que aí vinham e a “autoridade moral” que se exigia a quem vencesse eleições.
No final de janeiro, numa aparição na exígua Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Lisboa, para a apresentação do livro Lendas e Contos Populares Transmontanos – Tesouros da Memória (Vol. I: Bragança e Vinhais), Passos ensaiou aquilo que viria a dizer, de forma explícita, a Maria João Avillez: a perda de “memória” conduz à perda da identidade e a perda da identidade, em política, é “fatal”. “Sem o passado não somos nada. Se somos todos iguais, tanto faz estar lá um como o outro”, argumentou então.
Já na campanha eleitoral alertou para a “oportunidade única” que não podia ser “desperdiçada”, disse que vitória nas urnas era um mínimo olímpico — pressionando ainda mais o líder social-democrata — fez mais uma série de referências à política de alianças que o PSD deveria seguir e introduziu na campanha o binómio “imigração/insegurança”, que criou objetivas dificuldades a Luís Montenegro.
Agora, ainda assim, Passos foi mais longe, dinamitando as frágeis pontes que ainda existiam entre a atual direção do PSD (e do CDS) e ele próprio. Publicamente, a ordem foi para desvalorizar. Em entrevista ao Público/Rádio Renascença, num primeiro momento, e depois ao Observador, Hugo Soares, líder parlamentar, secretário-geral do PSD e braço direito de Montenegro, garantiu que não existia qualquer “desconforto” e defendeu que Pedro Passos Coelho tinha todo o direito de expressar a sua opinião.
O que quer verdadeiramente Passos?
Longe dos microfones, as reações foram outras. Há quem se refira ao(s) gesto(s) do antigo primeiro-ministro como sendo de uma “profunda deslealdade” e quem especule sobre as verdadeiras intenções de Passos. Nestes cálculos particulares, avançam-se duas teses: o antigo líder social-democrata acredita que este Governo pode cair, quer estar lá para dizer que bem avisou e pegar novamente na batuta; ou está a tentar marcar o seu espaço político para segurar a vaga como candidato presidencial do espaço das direitas.
Num ou noutro caso, nem mesmo quem está habituado a estudar as movimentações do antigo chefe de governo consegue descortinar a “coerência” estratégica de Passos. Por um lado, se o ex-primeiro-ministro quisesse de facto preservar uma vaga para vir a liderar o PSD no futuro, não seria muito prudente fazer oposição aberta ao Governo em funções – o partido não costuma perdoar quem se dedica a fazer fogo amigo.
Por outro lado, disparar contra Montenegro e contra Paulo Portas (e, por arrasto, todo o atual CDS) torna mais difícil que estes dois partidos o venham a engolir como candidato presidencial sem perderem a face. A menos que Passos pretenda fazer a Montenegro o mesmo que Marcelo Rebelo Sousa fez com ele e impor-se como candidato daquele espaço político à revelia da vontade política dos dois partidos.
Não sendo de excluir, as duas teses têm dificuldades objetivas. No primeiro caso, Montenegro, agora como primeiro-ministro, deverá ser reconduzido na liderança do PSD sem dificuldades num congresso ordinário a realizar ainda este ano. Mesmo que o seu Governo caia em outubro, às mãos um eventual chumbo do Orçamento do Estado, Montenegro seria o candidato natural a primeiro-ministro.
Na eventualidade de o PSD vir a perder umas legislativas antecipadas abrindo uma crise interna, mas existindo uma maioria de direita com o Chega, Passos já fez saber no passado que não aceitaria assumir o cargo de primeiro-ministro sem estar legitimado pelo voto dos portugueses. Pelo que pressuporia não uma, não duas, mas três idas a votos num curtíssimo espaço de tempo. A esta distância, imaginar algo deste género é, no mínimo, ambicioso. Mas as circunstâncias mudam e Passos pode também ter mudado de ideias: se Montenegro mantiver a sua garantia de que só governará se ficar em primeiro lugar, e se o PSD experimentar outro resultado numas futuras eleições, o partido poderia perder a paciência e voltar-se para Passos. É uma possibilidade.
O cenário alternativo é o de o antigo primeiro-ministro estar a preparar uma candidatura presidencial. Em teoria, hostilizar os dois partidos que lhe serviriam de base de apoio não é uma jogada racional. Ainda assim, existe quem, nos dois partidos, veja nas intervenções de Passos (que apareceu num movimento ligado à direita mais conservadora a defender abertamente entendimentos entre o PSD e o Chega) uma forma de garantir espaço político próprio e afastar todos os outros contendores – Luís Marques Mendes, claro, mas também Paulo Portas, particularmente visado nesta entrevista a Maria João Avillez, ou o próprio André Ventura, que rapidamente se tentou colar a essa eventual e putativa candidatura presidencial.
Assim sendo, discordar abertamente da estratégia dos líderes da Aliança Democrática – sobretudo se ela se vier a revelar errada – pode ser um trunfo; Passos seria o campeão natural das direitas, acima de PSD, CDS e Chega, absorvendo igualmente o grosso do eleitorado da Iniciativa Liberal. Atendendo ao resultado que a direita conseguiu nestas legislativas, e dando como adquirido que o país virou à direita (o que está por testar noutras eleições), Passos estaria, com estas aparições, a roubar para si toda a direita.
Se as primeiras contas são difíceis, estas são igualmente desafiantes porque esbarram numa questão que, até ver, se mantém inalterada: Pedro Passos Coelho não tem particular interesse pela função de Presidente da República e o tema da corrida à sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa não lhe diz muito. Tal como explicava o Observador a 7 de setembro, é a convicção do antigo primeiro-ministro que as candidaturas (e o cargo) devem estar reservadas a quem quer muito ocupar o Palácio de Belém e, a menos que o contexto se altere de forma muito drástica, não é esse o desejo do antigo primeiro-ministro. De resto, Pedro Passos Coelho nunca escondeu que não morre de amores pelo cargo de Presidente da República, que entende ter um perfil mais executivo e de assumir que o seu projeto para o país ficou inacabado.
Nessa altura, ainda assim, o país político era muito diferente. António Costa estava para durar, Luís Montenegro deveria estampar-se nas europeias, o PSD devia ir a correr para os braços de Passos, ele seria candidato em 2026, presumivelmente contra Pedro Nuno Santos. Costa caiu, Montenegro ganhou, o PS voltou para a oposição e Passos parece ter perdido o comboio para voltar a ser primeiro-ministro (um regresso que ia acalentando) num prazo razoável. Por tudo isto, as presidenciais podem ter adquirido uma cor especial para quem, como se vê, não desiste de intervir politicamente.
Até ao momento, no entanto, os sinais que vai dando aos mais próximos não se alteraram. Até ver, Passos continua a não mostrar grande interesse pelo cargo de Presidente da República. Assim, pode sobrar uma hipótese: Pedro Passos Coelho estará simplesmente apostado em dizer o que pensa. Passaram quase dez anos desde que deixou o cargo de primeiro-ministro, sete desde que abandonou a liderança do PSD, o seu próprio partido deixou de defender o seu legado e, portanto, sente-se desobrigado de pensar nas consequências que terão as suas declarações na vida interna no PSD ou na estabilidade do Governo.
“Quando me pedem opinião, eu dou. Se não pedirem opinião, não ando a chatear as pessoas a dizer ‘olha, acho que deves fazer assim, que deves fazer assado’. Zero. A minha relação é muito descomplexada. A última coisa que quero é andar a criar constrangimentos. Agora, também não posso ser impedido de, quando em vez, poder dizer alguma coisa do que penso. E eu penso pela minha cabeça, evidentemente”, avisou o antigo primeiro-ministro na mais recente entrevista. Com ou sem plano, uma coisa parece ser evidente: Pedro Passos Coelho anda, definitivamente, por aí.
Afastamento de Montenegro? “É muito evidente que houve essa preocupação de tentar desligar”