Logo no início da pandemia de Covid-19, os municípios do Algarve juntaram-se e ofereceram 30 ventiladores aos hospitais de Faro e Portimão. Mas esses equipamentos nunca foram usados — os problemas técnicos que apresentavam não permitiram sequer o arranjo e o caso gerou um empurrar de responsabilidades sobre os ventiladores que se arrasta há mais de dois anos. Esse processo começou por carta, numa comunicação entre as instituições envolvidas, mas depressa se tornou notícia nos jornais. O caso (ainda sem desfecho) chegou à justiça sob a forma de uma queixa-crime por difamação.
Os funcionários de uma dessas instituições, o Centro Biomédico do Algarve (ABC), manifestaram-se na última quarta-feira junto às instalações da outra instituição envolvida no processo, o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). Podendo a atividade da primeira ser condicionada pela segunda — pela instabilidade provocada por este caso —, os funcionários dizem-se preocupados com a continuidade e o normal funcionamento dos projetos que têm em curso.
Numa nota pública do centro hospitalar, é garantido que “a cooperação entre o CHUA e a Universidade do Algarve está a decorrer com normalidade” — não fazendo qualquer referência ao clima de tensão dos últimos dois anos entre CHUA e ABC, um consórcio do qual fazem parte o centro hospitalar e a universidade. O problema que começou com os ventiladores avariados chegou aos tribunais, apesar de os ventiladores já terem sido substituídos e estarem agora prontos a usar.
O atual conselho de administração do centro hospitalar (CA-CHUA) apresentou uma queixa-crime contra Nuno Marques, presidente do ABC, acusando-o de difamação — queixa essa arquivada pelo Ministério Público (MP) por não terem sido encontrados indícios de crime. Mesmo sem o apoio do MP, o conselho de administração decidiu avançar com uma acusação particular contra Nuno Marques. A situação cria instabilidade no ABC e também deixa numa situação vulnerável a Associação para o Desenvolvimento do ABC (AD-ABC), criada pelos membros do consórcio para que tivesse uma entidade jurídica própria – ou seja, para que pudesse contratar funcionários e candidatar-se a financiamentos.
Funcionários, membros da academia e autarcas apelam a que haja uma resolução célere deste diferendo que opõe o CHUA ao ABC e seja promovido o diálogo entre as partes. “A Amal espera, a bem da região, que esta situação tenha uma resolução o mais breve possível”, disse fonte oficial da Comunidade Intermunicipal do Algarve (Amal) ao Observador. Um dos funcionários do ABC contactado pelo Observador considera que “uma estrutura desta dimensão não pode terminar sem que haja diálogo”. Mas pelo meio continuam as acusações e processos judiciais.
Ventiladores chineses que não chegaram em condições de funcionamento
Para perceber a origem do problema é preciso voltar ao início da pandemia de Covid-19 em Portugal. No Algarve, como em outras regiões do país, faltavam ventiladores para dar resposta aos doentes internados depois da infeção com SARS-CoV-2. A Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL), em representação dos municípios algarvios, comprometeu-se a apoiar o centro hospitalar e a ARS Algarve no combate à pandemia. No total, foram doados 1.980.000 euros para a compra de equipamentos e materiais necessários às unidades hospitalares da região. Deste valor, cerca de 1,3 milhões de euros seriam destinados à aquisição de ventiladores e o restante para outros materiais e equipamentos.
Apesar da reunião dos 16 municípios algarvios ter decorrido logo em março de 2020, a entrega da encomenda atrasou-se e não chegou completa. De acordo com o relatório de gestão do ABC, a empresa chinesa com que tinham estabelecido negócio vendeu os equipamentos a outro país europeu, e isso obrigou a renegociar a compra. Finalmente, a 26 de maio desse ano, foram entregues os primeiros 20 ventiladores, assim como “bombas e seringas infusoras, monitores cardíacos e videolaringoscópios” — os materiais de proteção individual, como máscaras, luvas e fatos, já tinham sido entregues antes. “A ocasião contou com a presença de vários autarcas da região, dos membros do conselho de administração do CHUA, de representantes do Algarve Biomedical Center [na designação em inglês do ABC], da ARS Algarve [Administração Regional de Saúde do Algarve] e do reitor da Universidade do Algarve”, conforme nota de imprensa da AMAL.
O momento marcou positivamente o final do mandato da anterior administração dos CHUA. Mas ensombrou o mandato da administração que tomou posse em julho desse ano: os 30 ventiladores entregues ao CHUA não estavam a funcionar, confirmou António Pina, presidente da Amal, depois de ter sido “alertado informalmente para o problema com o funcionamento dos aparelhos pela administração do CHUA”, logo em julho de 2020.
“Existem algumas situações, que nos foram relatadas pela administração hospitalar: nos testes efetuados e que levam a máquina [ventilador] ao limite, há uma ou outra situação que não acompanha esse teste”, disse o também autarca de Olhão à Lusa. António Pina acrescentou que havia “outros problemas com equipamentos que não estavam a 100%, mas que foram resolvidos com os técnicos da empresa [chinesa] através de uma reprogramação remota”.
Também com os ventiladores se tentou a resolução remota, mas sem sucesso, conforme disse António Pina, em janeiro de 2021, citado pelo Público. Depois, os técnicos da empresa vieram da China ao Algarve para tentar consertar os equipamentos, mas não conseguiram colocá-los em conformidade com os requisitos nacionais. “O equipamento não cumpre todos os critérios [de segurança]. Cumpre alguns, mas não todos.” Para o presidente da Amal restava apenas uma opção: “Acionar as cauções bancárias.”
A situação adquiriu outros contornos no Algarve, mas o problema com o fornecimento de equipamentos percorreu todo o país. Em novembro de 2020, durante a discussão na especialidade do Orçamento do Estado para 2021, a ministra da Saúde, Marta Temido, confirmou que 253 ventiladores dos 966 comprados a fabricantes chineses ainda não estavam operacionais e que continuavam em fase de testes nos Serviços de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH) — a mesma entidade que chumbou os ventiladores do Algarve.
Um em cada três ventiladores encomendados para o SNS não chegou aos hospitais
No início do mês de julho de 2022, o resultado da auditoria do Tribunal de Contas ilustrou com números a dimensão do problema: um terço dos ventiladores mecânicos invasivos que a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) comprou entre março de 2020 e o mesmo mês de 2021 para reforçar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) na resposta à pandemia de Covid-19 nunca chegaram aos hospitais, como relatou o Observador. Dos 12 contratos, houve quatro que não foram cumpridos — os contratos para 245 ventiladores foram resolvidos por incumprimento de prazos de entrega — e 145 equipamentos vinham com problemas que não puderam ser resolvidos. No total, a ACSS terá perdido 10,4 milhões de euros.
A quem pertencem afinal os ventiladores?
Na altura em que os municípios cederam o dinheiro para a aquisição de materiais e equipamentos, ainda não estava em vigor a legislação que permitia a aquisição simplificada em contexto de pandemia, obrigando o CHUA a seguir os trâmites legais para as compras efetuadas por instituições públicas. A AD-ABC, da qual o centro hospitalar era associado, tinha entidade jurídica e podia efetuar a compra com posterior doação aos hospitais da região. E assim foi.
Mas quando o problema com os ventiladores foi identificado, criou-se um diferendo entre o conselho de administração do CHUA e a direção do ABC sobre quem deveria procurar a resolução do problema junto da empresa chinesa. Da parte do hospital considerava-se que a resolução tinha de partir da direção do ABC, que fez todos os contactos com as empresas com o auxílio do embaixador de Portugal na China. Da parte do ABC, o entendimento era que o hospital, enquanto beneficiário, deveria resolver o problema com os seus equipamentos. As trocas de acusações partiam de uma questão de base: quem são, efetivamente, os donos dos equipamentos?
A resposta pode ser um pouco inesperada: os donos dos equipamentos são cada um dos municípios do Algarve, esclareceu fonte oficial da Amal ao Observador, na última quinta-feira, 21 de julho. “Numa reunião com os 16 presidentes das Câmaras Municipais do Algarve, foi deliberado que cada município, individualmente, iria apoiar financeiramente a AD-ABC com o objetivo de se adquirirem equipamentos e materiais necessários às unidades hospitalares da região para o combate à Covid-19.” Foi assim que cada município estabeleceu um acordo com a AD-ABC e fez a entrega do dinheiro. “Os proprietários dos equipamentos adquiridos são os municípios, em resultado desses acordos”, concluiu fonte da Amal.
O problema com os ventiladores foi resolvido, os SUCH já deram um “parecer positivo à sua utilização” e os equipamentos encontram-se por agora guardados na Base de Apoio Logístico do Algarve, da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, em Quarteira, de acordo com a informação divulgada pela Amal a 1 de julho de 2022. O presidente da Amal considerou como “muito positiva a resolução deste impasse” e destacou, “para este desfecho, o papel decisivo do embaixador de Portugal em Pequim, José Augusto Duarte, assim como do presidente do Algarve Biomedical Center, Nuno Marques”.
Ventiladores falharam nos testes, mas empresa chinesa aceitou intervir
Os ventiladores foram entregues ao centro hospitalar em maio de 2020 e imediatamente enviados para validação técnica pelos Serviços de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH). No parecer de 7 de junho, assinado pelo engenheiro Carlos Alves, concluiu-se que em todas as unidades testadas se verificou um tipo de anomalia que não permitia “proceder à validação técnica dos equipamentos testados”. E sem validação técnica não podiam ser usados.
O presidente do ABC disse ter tido conhecimento do parecer a 22 de julho desse ano de 2020 e de ter procurado facilitar o contacto com o fornecedor: “No melhor espírito de colaboração, contactámos a empresa Connect 4 Global [intermediária na compra], bem como o senhor embaixador de Portugal na China [José Augusto Duarte], que providenciou os contactos com a empresa [fornecedora dos ventiladores] Nanjing Superstar Medical Equipment Co., Ld”. O embaixador tinha sido um elemento fundamental na aquisição dos equipamentos e voltou a sê-lo para a resolução dos problemas técnicos.
Assim que José Augusto Duarte confirmou (a 8 de setembro) que a empresa chinesa faria as intervenções necessárias, foi apontado um ponto focal na China e outro em Portugal — Carlos Alves, em representação dos SUCH, conforme a troca de emails consultada pelo Observador. No relatório de gestão, o presidente do ABC indicou que tinha facilitado o contacto direto entre o fabricante e os técnicos dos SUCH e que o processo tinha decorrido em “estreita colaboração com o conselho de administração do CHUA”, sem que o ABC estivesse diretamente envolvido. Na acusação contra Nuno Marques, o CHUA nega que tenha sido assim — no processo, o centro hospitalar garante que não teve qualquer intervenção nesse processo, tendo apenas sido informado dos contactos entre os dois pontos focais.
A direção do consórcio estranhou, por isso, que a administração hospitalar tivesse pedido, a 14 de setembro, que fossem “acionadas as garantias para que se procedesse à restituição do preço pago pelos equipamentos”. O conselho de administração do CHUA entendeu que, “dos vários e múltiplos testes que foram realizados, ficou total e suficientemente confirmada a existência de falhas técnicas muito graves e inultrapassáveis” — ainda que o parecer técnico não tenha indicado a impossibilidade de reparação.
Em resposta ao pedido do hospital, Nuno Marques indicou que a restituição do valor pago não era possível porque o fabricante estava a proceder à resolução dos problemas detetados, conforme acordado, e destacou que o objetivo da doação era dotar o centro hospitalar de ventiladores para dar resposta à pandemia de Covid-19, missão essa que se mantinha.
Apesar de confiante da resposta dada, a direção do ABC pediu um parecer jurídico à Sociedade de Advogados — Capa. No parecer, o advogado Joaquim Cruz Gomes lembrou que “os 30 ventiladores em questão foram doados de forma plena e sem reservas, pela AD-ABC ao CHUA”, ainda que à data do parecer (24 de setembro) a instituição ainda não tivesse “procedido à disponibilização do competente auto de recebimento dos bens doados” em maio. Ou seja, o CHUA não tinha confirmado por escrito a receção dos materiais e equipamentos, mas a entrega foi pública e testemunhada.
Para o advogado, uma vez feita a doação — “e tendo a mesma sido evidentemente aceite” — houve “transmissão da propriedade desse equipamento para a esfera jurídica” do CHUA. O parecer ainda acrescentou que, neste caso, por serem bens móveis, “o contrato de doação não depende de qualquer formalidade quando é acompanhado da coisa doada”. Num exemplo mais quotidiano: quando se oferece um presente, este passa a ser da pessoa que o recebeu e não da pessoa que o comprou.
Quem recebeu os equipamentos fisicamente foi a anterior administração hospitalar, chefiada por Ana Paula Pereira Gonçalves. De acordo com o email consultado pelo Observador, a presidente do CA-CHUA confirmou, no dia 25 de maio de 2020, a disponibilidade de receber os equipamentos doados no dia seguinte. A gestora hospitalar pedia apenas que todos os equipamentos fossem entregues no Hospital de Faro, inicialmente, para que se pudesse pedir de imediato a avaliação pelos SUCH. E acrescentava, no email para Nuno Marques (e para os restantes elementos da direção do ABC), “que desse indicação ao chefe de gabinete para ser portador de toda a documentação técnica e financeira necessária à transmissão da propriedade dos equipamentos”.
No ponto de situação sobre os ventiladores incluído no relatório de gestão, o presidente da direção da AD-ABC confirmou isso mesmo: “Aquando a entrega [dos equipamentos], foi entregue ao CHUA toda a documentação relativa aos ventiladores, nomeadamente cópia da fatura, certificados, garantias e manual de instruções, uma vez que a partir desta data os ventiladores são posse do CHUA”.
A compra dos ventiladores e outras despesas feitas pela AD-ABC terá levado o médico Horácio Guerreiro, então membro da direção da associação, a defender nesse mesmo verão que deveria ser pedida uma auditoria às contas do ABC, mas a proposta não chegou a ser discutida pela direção, noticiou o Público. O jornal refere que a proposta terá sido aprovada mais tarde, por unanimidade, já a 11 de janeiro de 2021, na reunião da Assembleia Geral da AD-ABC, presidida por Alexandre Quintanilha, deputado do PS à Assembleia da República — numa altura em que Horácio Guerreiro já tinha assumido funções de diretor clínico e fazia parte do conselho de administração do CHUA —, mas fonte próxima do processo garante ao Observador que tal não aconteceu.
O relatório e parecer do Conselho Fiscal da AD-ABC, de 4 de novembro desse ano, também fazia referência à auditoria: “Não tinha sido realizado o trabalho de auditoria referido no ponto 1 da ata da reunião da Assembleia Geral, realizada em 11 de janeiro de 2021″, lê-se no documento. A ordem de trabalhos dessa reunião, a que o Observador teve acesso, indica que o ponto 1 — no âmbito do qual teria sido discutida a realização da auditoria — diz respeito ao “orçamento retificativo de 2020” e nenhum outro ponto faz referência a uma auditoria. No entanto, o Observador não conseguiu consultar a ata da reunião.
Os membros do Conselho Fiscal disseram também considerar “essencial a realização desse trabalho de auditoria financeira para as contas de 2021, de forma a suportar os trabalhos do Conselho Fiscal”. Ainda assim, o órgão validou as contas: “As demonstrações financeiras e o relatório de gestão relativos ao exercício findo de 31 de dezembro de 2020 encontram-se em condições de ser aprovadas em Assembleia Geral”.
Dos ventiladores defeituosos à queixa-crime
O diferendo entre as instituições não foi sanado durante o ano de 2020 e ainda se agravou no início de 2021 — de tal forma que o caso chega aos tribunais. Questionadas pela Lusa sobre os ventiladores, as posições das duas instituições foram muito diferentes e as respostas do presidente do ABC foram entendidas pela administração do CHUA como um ataque ao bom nome da instituição e dos seus representantes.
“O ABC é 50% do CHUA e 50% da Universidade do Algarve, duas entidades públicas respeitadas e, sabendo que houve um dano, em que ele interferiu nesse dano, só tem que resolver o assunto e rápido”, afirmou à Lusa Paulo Neves, vogal executivo do conselho de administração do CHUA, a 22 de janeiro de 2021. “Não estou a ver como é que nós, que não temos a fatura, que não conhecemos o fabricante e nem o intermediário, vamos perseguir quem não pagámos, não tem sentido”, reforçou o antigo vereador socialista do Município de Faro.
Entendimento diferente apresentou o presidente da direção do ABC, ao afirmar à Lusa que, apesar de a fatura estar em nome do ABC, a mesma foi entregue ao CHUA aquando a doação dos equipamentos — e conforme pedido pela administração da altura. “Não pode ser outra entidade a pedir reembolso”, defendeu Nuno Marques na altura. “Nós não somos o proprietário, não temos qualquer legitimidade legal para interferir no processo.” E foram estas frases que atearam a pólvora.
Da parte da Amal, perante o impasse que mantinha os equipamentos parados, houve uma procura de resolução conjunto com o CHUA e o ABC, que “entenderam que se deve pedir a devolução do dinheiro” e que iria “ser criada um comissão com um membro de cada entidade”, disse o presidente da Amal à Lusa. “Já conversei com eles e eles sabem dessa nossa posição”, afirmou António Pina. O objetivo era perceber qual era a entidade que estava em melhores condições para pedir a devolução.
Meses depois, os presidentes dos municípios representados na Amal foram informados de que os equipamentos apresentavam problemas no software e tinham diferenças nas especificações, mas o fabricante chinês tinha-se mostrado disponível para a sua troca e o ABC para custear o transporte, conforme se pode ler na ata da reunião ordinária da Amal de 4 de junho de 2021, consultada pelo Observador. A comunidade intermunicipal já se encontrava a trabalhar para a resolução do problema pelo menos desde o início do ano, como confirmado pela ata da reunião ordinária de 5 de fevereiro.
A acusação do centro hospitalar
O impasse teria ficado resolvido, conforme anunciou a Amal, no dia 1 de julho, mas apenas para os ventiladores. As declarações de 22 de janeiro de 2021 — já aqui citadas — motivaram a queixa-crime apresentada pelo CHUA contra o presidente da direção da AD-ABC.
No dia 1 de junho, Nuno Marques recebeu do Ministério Público uma notificação de acusação particular — pelos factos suscetíveis de “consubstanciar a prática de um crime de ofensa a pessoa coletiva, organismo ou serviço” —, deduzida pelos CHUA. A instituição acusa Nuno Marques, presidente da direção da AD-ABC, de ter nomeado Carlos Alves como ponto focal “sem que esta entidade tivesse qualquer intervenção na escolha do representante ou nos contactos com o representante do fabricante” e de a AD-ABC (da qual os CHUA são associados e na qual têm representação) não ter acionado a garantia, nem ter devolvido os equipamentos defeituosos. De referir que Carlos Alves é técnico dos SUCH, entidade contratada pelos CHUA para verificação dos ventiladores.
Mas o problema não é só este, o CHUA considera que as declarações de janeiro de 2021 de Nuno Marques colocam “em causa a credibilidade, o prestígio e confiança que [o CHUA] tem junto da comunidade que serve” e das pessoas que leram a notícia. No pedido de indemnização civil no valor de 500 euros, do processo consultado pelo Observador, o CHUA declara que “os factos relatados na acusação particular (…) foram praticados por ação voluntária do arguido através da imputação ao assistente de factos inverídicos de modo a criar a ideia de que o problema dos equipamentos defeituosos não tinha sido resolvido porque o CHUA, EPE não tinha feito o que lhe competia”.
A posição do Ministério Público
O Ministério Público já tinha tomado uma posição em relação à queixa-crime contra o presidente do ABC, arquivando o processo pela “inexistência de crime”, porque “os fatos narrados não têm relevo criminal” e, “não se verificando os elementos objetivos daquele crime”, os autos seriam sempre arquivados. O CHUA avançou ainda assim com uma acusação particular e o MP declarou que “não acompanhará a acusação particular deduzida pelo [CHUA]”.
Recapitulando: Nuno Marques disse que tinha de ser o CHUA, e não o ABC, a pedir o reembolso, por ser aquela instituição a dona dos equipamentos; e o CA-CHUA considerou que se tratava de uma ofensa ao centro hospitalar, porque a declaração pode “criar a ideia de falta de capacidade de tomar as decisões certas, em negócios que visam a aquisição de materiais médicos”.
A resposta do arguido
Perante a notificação recebida, Nuno Marques pediu a abertura da instrução, devolvendo, de certa forma, uma acusação de difamação: o arguido considera que a acusação do CHUA tem “o claro objetivo de perseguição pessoal com vista a denegrir o carácter, a reputação, o profissionalismo e a integridade pessoal e profissional” do arguido, pela insinuação de utilização indevida de verbas públicas, conforme documento consultado pelo Observador. Nuno Marques, na altura da participação criminal pelos CHUA, era médico cardiologista na instituição, mas pediu a demissão na sequência do processo.
No pedido de abertura da instrução é ainda referido que, a 28 de janeiro de 2021, “depois de ter o equipamento em sua posse durante nove meses, o CHUA remeteu novo ofício (…) sustentando que a doação dos 30 ventiladores nunca terá sido efetuada, ou concluída” — o que não está em conformidade com o parecer jurídico requerido pelo ABC ou com as imagens da entrega dos equipamentos divulgadas pelos media —, referindo haver uma “impossibilidade legal” de aceitar a doação e justificando a “recusa em aceitá-los por serem inúteis”. O Observador não teve acesso ao ofício completo, mas foi informado por fonte próxima do processo de que apenas a doação dos ventiladores tinha sido rejeitada, tendo os restantes materiais e equipamentos ficado no CHUA.
“Tal ofício foi interpretado como requerimento de anulação da doação por donatário de boa-fé, (…), tendo o equipamento sido devolvido ao doador, e anulado o negócio jurídico”, lê-se na defesa de Nuno Marques. Anulada a doação, o ABC pode, em articulação com a Amal e os municípios, exercer a garantia do equipamento. Contactada pelo Observador, a administração do CHUA não prestou esclarecimentos adicionais além dos que já tinha publicado na página oficial da instituição. O presidente do ABC também não se mostrou disponível para falar com o Observador.
Os fundamentos apresentados e assinados pelo representante do arguido, o advogado Joaquim Cruz Gomes, terminam dizendo que “o Direito Penal não responde a particulares embotamentos ou sensibilidades psicológicas emanadas de um empolado (neste caso, efabulado) conceito subjetivo de honra ou de uma exagerada auto-estima dos membros do conselho de administração de uma pessoa coletiva ao quais seria exigida maior coerência e elevação no exercício do cargo”. É, assim, requerido ao juiz que, finda a instrução, entenda que o arguido não deverá ir a julgamento (despacho de não pronúncia).
As declarações públicas da administração
Diminuindo a situação, Ana Varges Gomes disse ao Sul Informação que “não há nenhuma polémica com o ABC”. As declarações foram prestadas no dia 9 de junho desde ano à margem de uma visita de Lacerda Sales, secretário de Estado Adjunto e da Saúde, ao Hospital de Faro. “Nós prezamos muito as relações institucionais, quer com o ABC quer com a Universidade do Algarve, e não temos aqui nenhuma questão”, disse a presidente do conselho de administração do CHUA. Ana Varges Gomes ainda acrescentou que os representantes do CHUA na AD-ABC apoiaram a continuidade de Nuno Marques no cargo de presidente da direção.
Em comunicado institucional, o hospital garante que “a cooperação entre o CHUA e a Universidade do Algarve está a decorrer com normalidade, no espírito de boa-fé e de harmonia, tanto no campo do Ensino, da Medicina, da Enfermagem e de outros Cursos de Saúde, como no campo da Investigação, prosseguindo com regularidade os contactos e acordos comprometidos”. O Observador procurou uma reação à situação do consórcio junto da Universidade do Algarve, mas até ao momento da publicação deste artigo não teve resposta.
O pedido de diálogo e a “tremenda irresponsabilidade do CHUA”
“É uma situação explosiva”, disse ao Observador Cristóvão Norte. O vice-presidente da Comissão Política do PSD/Algarve, e ex-deputado à Assembleia da República, considera que houve uma “tremenda irresponsabilidade do CHUA” por ter colocado as duas instituições a “degladiarem-se publicamente com manchas para reputação” de ambas as partes. O problema deveria ter sido resolvido entre as partes, defende, deixando de lado as “querelas pessoais” e tendo maior preocupação com os “bons cuidados de saúde na região”.
Cristóvão Norte diz não defender nenhuma das partes em relação à outra, mas considera que “é um absurdo” que se tente resolver estas questões na justiça. O representante do PSD/Algarve aproveita para pedir à ministra da Saúde, Marta Temido, que chame a atenção da administração do hospital para a necessidade de resolver este diferendo, por considerar que ele está a pôr em risco os cuidados de saúde na região. “Está-se a desperdiçar energia com ações para simbolicamente se fazer valer uma posição. É revelador da escassa cultura de comunidade”, afirma.
Os funcionários do ABC também querem ver a situação resolvida e apelam a que haja diálogo entre todas as partes envolvidas — CHUA, Universidade do Algarve e ABC. No decurso deste processo, os funcionários já tinham assinado um manifesto de apoio ao presidente Nuno Marques, criticando a “atitude persecutória” da administração do centro hospitalar. “Fazemo-lo porque consideramos que é o nosso dever demonstrar que não compactuamos nem nos melindramos com atitudes de perseguição para com a instituição, nem para com nenhum dos seus colaboradores.”
Ao Observador, um dos elementos, que pediu para não ser identificado, disse que os funcionários “estão plenamente confiantes da capacidade da atual direção” e que a visão e missão continua a estar em linha com aquela em que os funcionários acreditam.
Isabel Palmeirim e Ana Marreiros, presidente e vice-presidente da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve — que faz parte do consórcio ABC — também manifestaram publicamente o seu apoio a Nuno Marques, professor na faculdade e colega de Isabel Palmeirim na direção da AD-ABC. A direção da faculdade mostrou “indignação e total repúdio” pela ação judicial do CHUA contra o presidente do ABC. O manifesto público foi enviado à ministra da Saúde e à ministra da Ciência, Elvira Fortunato — com quem já tiveram oportunidade de se reunir —, e também ao primeiro-ministro e ao Presidente da República — dos quais ainda não tiveram resposta.
O Observador contactou o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que tutelam as instituições envolvidas e foram os responsáveis pela criação do consórcio. Até ao momento da publicação deste artigo, não houve resposta aos pedidos de esclarecimento sobre a situação do ABC e sobre as medidas que planeavam tomar.
Vítor Aleixo, presidente da Câmara de Loulé, um dos municípios com os quais o ABC tem estabelecido uma cooperação mais sólida, disse estar “estupefacto e tristíssimo com a atitude persecutória do Centro Hospitalar Universitário do Algarve”, depois de conhecida a acusação. Demonstrando a confiança no presidente do ABC, Vítor Aleixo garantiu que o município “continuará a apoiar o ABC em tudo”. Em curso estão, por exemplo, os investimentos que vão permitir a criação do “ABC Loulé Health Research Center”, um pólo ligado à investigação, saúde e ciência, e o Center Active Life (em Vilamoura), destaca o Sul Informação.
Também a Câmara de Loulé, em comunicado, manifestou o seu apoio a Nuno Marques, classificando a atitude do CA-CHUA de “inadmissível e persecutória” e acusando-a de colocar “em causa os compromissos assumidos entre esta instituição [ABC] e o município de Loulé, por via da parceria estratégica celebrada para a construção de dois projetos nas áreas das Ciências Biomédicas e do Envelhecimento”.
O PSD de Loulé discordou da tomada de posição e questionou o autarca do município, pedindo esclarecimentos sobre os contratos assinados com o ABC. Os social-democratas dizem não entender “os motivos que levam o presidente da Câmara Municipal de Loulé, a título pessoal, e depois uma autarquia como a de Loulé, a tomar uma posição pública de apoio a uma pessoa e a um organismo independente quando decorre um processo em tribunal”, noticiou o Sul Informação.
Os deputados do PSD eleitos pelo Algarve – Luís Gomes, Rui Cristina e Ofélia Ramos –, por sua vez, vão chamar à Comissão de Saúde da Assembleia da República os membros do conselho de administração do CHUA e os membros da direção do ABC. O objetivo é “obter os esclarecimentos necessários sobre o futuro do consórcio e o impacto que terá, para o Algarve e para o país, o seu eventual termo”.
De notar que a eventual extinção do consórcio só pode ser decretada pelas mesmas entidades que o criaram: o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência. E, em comunicado, o CHUA esclareceu que “nunca defendeu a sua extinção [do ABC], aliás, vem prosseguindo para o seu aprofundamento”, assim como “nunca foi nem é intuito do CHUA fazer extinguir a AD-ABC” — a entidade com a qual os funcionários têm contrato.
Ministérios criaram consórcio e membros do consórcio a associação
O ABC, de nome completo Centro Académico de Investigação e Formação Biomédica do Algarve, foi criado por portaria do Governo, assinada pelo então ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, e pelo então ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, em março de 2016. A motivação era a necessidade de “reforço da cooperação interinstitucional e de uma garantia de permanente atualização de métodos e de práticas”.
Lisboa, Porto e Coimbra também já tinham centros académicos, cujo principal objetivo é a “integração das atividades de investigação, aplicação e transmissão do conhecimento médico com vista à melhoria da saúde da comunidade”. A portaria definiu assim a criação do consórcio entre o Centro Hospitalar do Algarve (agora Centro Hospitalar Universitário do Algarve) e a Universidade do Algarve, através do centro de investigação Centro de Investigação em Biomedicina (agora ABC Research Institute, ABC-RI) e do seu Departamento de Ciências Biomédicas e Medicina (agora Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas, FMCB).
Conforme definido na portaria, o consórcio tem sede no Campus de Gambelas da Universidade do Algarve, em Faro, e não está dotado de personalidade jurídica. Foi a necessidade de ter uma entidade com número fiscal e capaz de efetuar contratos, receber fundos e ter funcionários dedicados que levou à criação da Associação para o Desenvolvimento do ABC pelo CHUA e Universidade do Algarve em 2018. A AD-ABC é associação privada legalmente constituída e serve de suporte administrativo, económico e financeiro para a concretização do Plano de Ação do ABC.
O conselho executivo do ABC, assim como a direção da AD-ABC, é constituído por dois membros nomeados pelo CHUA, um do pólo de Faro e outro do pólo de Portimão, dois membros nomeados pela FMCB e dois membros nomeados pelo ABC-RI. O presidente é, depois, eleito por maioria entre estes seis membros. Nuno Marques é presidente do conselho executivo do ABC e direção da AD-ABC desde a constituição de cada uma das entidades e foi reconduzido no cargo já este ano.
Entre os vários objetivos estabelecidos para o consórcio consta também a atividade se deve focar na promoção da qualidade dos cuidados prestados às populações com base numa resposta adequada às suas diferentes necessidades. Foi desta forma que o ABC se integrou na região e procurou apoio junto dos municípios. E foi com esta missão que a direção do centro, os funcionários e os alunos da FMCB procuraram dar resposta às necessidades da população durante a pandemia de Covid-19.
A criação e produção industrial de zaragatoas em Portugal, numa altura em que escasseavam materiais a nível internacional, foi uma das atividades desenvolvidas pelo ABC, que também foi responsável pela realização de testes em várias instituições, incluindo nos lares do Algarve e Alentejo. Outra das medidas destacadas pelo consórcio foi a implementação de uma unidade de apoio ao SNS 24, que estaria vocacionada para servir a região, mas que acabou por ter impacto a nível nacional.