Em 1987, Luis Rojas Marcos colocou no terreno o Help, o primeiro serviço médico móvel de saúde mental nos Estados Unidos para doentes a viver nas ruas de Nova Iorque, depois do encerramento de hospitais psiquiátricos. O projeto multiplicou-se pelo país e tornou-se um modelo fora dele. Nova Iorque, cidade que é quase um país com cerca de 8,5 milhões de habitantes, tem hoje 24 unidades móveis que atendem cerca de 12.800 doentes todos os anos.
O psiquiatra americano, nascido em Espanha e a viver em Nova Iorque desde 1968, estudou os efeitos da barreira da língua em imigrantes com problemas mentais que tinham dificuldade em expressar-se em inglês. A investigação conduziu à promulgação de uma lei que obriga a que todos os hospitais daquela cidade tenham tradutores para facilitar a comunicação entre pacientes e profissionais de saúde.
Luis Rojas Marcos foi comissário de saúde mental de Nova Iorque e esteve à frente do apoio psicológico no 11 de Setembro. É professor da Universidade de Nova Iorque, colabora com várias instituições dedicadas a questões de saúde pública, já assinou dezenas de artigos científicos e é autor de alguns livros. O mais recente, Estar Bem Aqui e Agora (ed. Harper Collins) foi recentemente lançado em Portugal.
Em 1981, foi nomeado diretor dos serviços psiquiátricos de 11 hospitais de Nova Iorque. Pouco depois, criou o Projeto Help, o primeiro serviço médico móvel para doentes mentais a viver na rua. Como funciona?
O Projeto Help, criado em 1987, foi o primeiro serviço médico móvel nos EUA para tratar e hospitalizar pessoas sem abrigo com doença mental grave. Psiquiatras, enfermeiros e assistentes sociais integram essas unidades móveis e o efeito multiplicador do projeto tem sido espetacular. Hoje, outras cidades americanas e de outros países contam com equipas móveis de saúde mental especializadas em crises.
Quais países?
O projeto captou a atenção de meios de comunicação social, como o The New York Times, e de uma televisão do Japão. Tornou-se um modelo no Japão, por exemplo. E em Espanha, também há unidades móveis com psiquiatras e outros médicos que cuidam de sem-abrigo com doenças mentais.
Que impacto tem hoje uma resposta como esta em países com tantas pessoas sem-abrigo, muitas a sofrer de doenças mentais?
Temos de colocar tudo isso no contexto da desinstitucionalização. Nos anos 60 e 70, nos Estados Unidos, fecharam muitos hospitais psiquiátricos por várias razões, financeiras ou políticas, e tentou-se compensar esses encerramentos abrindo programas comunitários, clínicas, hospitais de dia. Mas essa resposta não era suficiente para cuidar de todos os pacientes que estavam em centros psiquiátricos, nos chamados asilos.
Criámos então unidades móveis para irem às ruas, para avaliarem os sem-abrigo que, ponto um, sofrem de doenças mentais, e, ponto dois, podem ser um perigo para si e para os outros. Tínhamos de mudar isso. Na época, criou alguns problemas, grupos de liberdades e direitos civis diziam que estávamos a desprezar a liberdade dos sem-abrigo, a levar pessoas com doenças mentais para os hospitais sem o seu consentimento Mas estávamos a cuidar e a tratar pessoas que não estavam bem a nível mental. Hoje há muitas unidades e essa questão já não se coloca. Somos muito cuidadosos neste trabalho, selecionamos pessoas que estão muito doentes e que se colocam em perigo. Não hospitalizamos pessoas contra a sua vontade.
Só no primeiro ano de funcionamento, o Help atendeu mais de 500 sem-abrigo e hospitalizou 298 doentes graves que receberam cuidados médicos e psiquiátricos. É um projeto que poderia ser replicado em Portugal?
É um bom serviço para grandes cidades. É importante identificar os sem-abrigo que sofrem de doenças mentais, conversar com eles, perceber se estão deprimidos, se têm alucinações, levá-los para o hospital para que possam ser avaliados — mesmo contra a sua vontade se se estão a colocar em perigo. É um serviço muito bom. Estas unidades também podem ir a casa de pessoas que têm estes pacientes. Não ficaria surpreendido se tivessem unidades móveis como estas em cidades como Lisboa e Porto.
Investigou os efeitos da barreira da língua em imigrantes com doença mental que tinham dificuldade em se expressar em inglês. Conseguiu a promulgação da lei de tradutores de emergência, que obriga a que todos os hospitais de Nova Iorque tenham intérpretes para a comunicação entre doentes e médicos. O mundo percebe a importância de comunicar para quem sofre de transtornos mentais?
A lei foi uma consequência de todos esses estudos feitos nos anos 70 e 80. Mostrámos também que quando o tradutor é um membro da família é mais difícil comunicar com os médicos – um médico, por exemplo, não vai perguntar à filha de um paciente em depressão se ele já se tentou matar. É importante que seja um tradutor independente.
E resulta?
Sim. Por lei, tem de haver alguém para traduzir. Mais recentemente surgiram empresas que fazem a tradução telefonicamente. O paciente tem um telefone e fala, o psiquiatra tem um telefone, e o tradutor, noutro lugar, traduz o que é dito. O médico ouve em inglês, o doente na sua língua. É mais barato do que contratar um tradutor e também funciona.
Sem-abrigo e imigrantes. Estas duas populações continuam abaixo do radar das políticas públicas de saúde mental?
Em Nova Iorque, neste momento, temos milhares de imigrantes da América do Sul. O número de imigrantes sem-abrigo é elevado. Um imigrante doente mental, ou com outros problemas, como consumo de drogas ou de álcool, não sabe como se proteger, não sabe onde ir, e acaba a viver nas ruas. A verdade é que os imigrantes não estão a ser cuidados, comparados com aqueles que pedem ajuda, que dizem que precisam de um lugar para ficar. Muitos não têm família, não têm amigos, não são capazes de pedir ajuda. E ficam na rua. E se alguém está na rua e começa a chorar, a gritar, a lutar, se cai, se o que diz não faz sentido, por causa da sua doença mental, as pessoas sentem-se ameaçadas e chamam a ambulância ou a polícia. Esses estão claramente em perigo.
E estará a sociedade preparada para lidar com imigrantes que são doentes mentais?
A sociedade, de um modo geral, não gosta de imigrantes. Não está preparada para lidar com essas pessoas, há uma grande rejeição. A sociedade é um poder que não tem poder. Por um lado, há preocupação e simpatia pelos imigrantes. Ao mesmo tempo, se criam problemas nas ruas tornam-se um problema social e são rejeitados. A maioria das pessoas quer que os governos cuidem deles, mas não querem tê-los à sua porta, nem nos parques onde os filhos brincam. Não são bem-vindos. Penso que em Portugal acontecerá o mesmo.
Em todo o mundo, provavelmente.
Certo. É um problema ter de escolher sem-abrigo que estão fisicamente mal e os que estão mentalmente doentes, como um grupo especial que precisa de atenção, de cuidados.
E como podemos mudar isso? O que lhe diz a sua experiência?
É muito importante falar de doença mental que, hoje e desde sempre, carrega um grande estigma. E esta é a pior barreira para tratar a doença mental. Doença mental é perda, é imprevisibilidade. E é medo. Se alguém está deprimido, pergunta-se porque não vai a um psicólogo ou a um psiquiatra. “Não, não, não estou louco”, é a resposta. Mas se chora todos os dias, se acha que a vida não vale a pena, precisa de ver alguém. Outra resposta: “não, não, não quero que as pessoas pensem que sou maluco, instável, imprevisível”. As pessoas vão a um psicólogo e um psiquiatra com bastante frequência, mas não falam sobre isso. É muito importante que aprendam que a maioria das pessoas com doenças mentais não são perigosas. Sofrem, mas não são perigosas. Falar disso nas escolas é essencial, ajuda a encarar o problema com uma visão mais ampla, não tão fechada. Dessa forma, serão pessoas mais abertas para ajudar e quem sofre mais recetivo a procurar ajuda.
Foi diretor da organização de médicos Physician Affiliate Group of New York, com mais de quatro mil profissionais de saúde que prestam serviço em hospitais públicos e em prisões municipais. Os reclusos são outra comunidade esquecida na saúde mental?
No sistema prisional dos Estados Unidos, há muitos presos que são doentes mentais e que não estão a ser tratados. Não recebem cuidados.
O que se pode e deve fazer?
Ajuda saber o que é doença mental. Se as pessoas souberem, é mais fácil pedir ajuda e é mais fácil receber tratamento. Precisamos de trabalhar todos juntos para lutar contra a discriminação a que são sujeitas as pessoas que sofrem de doenças mentais.
Quais devem ser então as principais preocupações no desenho de políticas públicas de saúde mental?
É fundamental comunicar e informar a sociedade sobre o que é doença mental. Compreender ajuda. As pessoas que têm dinheiro podem ir a um psiquiatra. Para as que não têm meios, o sistema público de saúde é importante e deve incluir o tratamento de doenças mentais.
Quanto mais cedo se tratar uma doença mental, melhor. Se nada se fizer, pior. A probabilidade de se tornarem doentes crónicos aumenta, o que é um grande problema. A Organização Mundial da Saúde fala de bem-estar físico, mental, social. Se alguém tem uma dor de barriga, é importante perguntar há quanto tempo dói, como se está a sentir. Se há dor é porque aconteceu alguma coisa, é porque houve um acidente. Perguntar como se gere emocionalmente uma dor é essencial. Na medicina, há uma parte emocional, física e social em cada doença.
Coordenou o cuidado médico e psicológico às vítimas do 11 de Setembro. Quais os danos e impactos emocionais nas equipas que prestaram apoio psicológico às vítimas e sobreviventes?
O ataque terrorista de 11 de Setembro matou quase três mil pessoas. O maior desafio imediato, após o trágico acontecimento, foi assistir centenas de milhares de pessoas que sofriam de transtorno de stress pós-traumático, graves distúrbios mentais e emocionais que se desenvolvem quando expostas a uma experiência extremamente aterradora. Organizámos vários grupos de terapia 24 horas por dia em toda a cidade. Nas semanas e meses que se seguiram, cerca de trinta por cento dos terapeutas, que prestaram esse apoio, necessitaram de ajuda psicológica porque começaram a sentir sintomas pós-traumáticos, como pesadelos, ansiedade e depressão, que interferiram na capacidade de falarem sobre o acontecimento. A violência perpetrada intencionalmente por outros seres humanos é a causa mais grave de stress pós-traumático.
Acaba de lançar, em Portugal, o livro Estar Bem Aqui e Agora. Qual a mensagem que pretende transmitir?
A consciência da nossa vida está, em grande medida, ligada, desde a infância, ao sentido de futuro – o que vamos fazer mais tarde, no mês que vem ou até mesmo daqui a vários anos. Quando a incerteza criada pelas adversidades destrói o sentido de futuro, a reação instintiva é concentrarmo-nos no presente, em mantermos o bem-estar físico, psicológico e social aqui e agora. A sensação de bem-estar é subjetiva e alimenta a confiança e a convicção de que vale a pena viver. Portanto, os ingredientes do bem-estar devem ser livremente identificados pelas pessoas e não ditados por filósofos, cientistas ou impostos por ideologias. Recordo sempre a passagem que Charles Darwin conta em A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais. Um dia, perguntou a um menino de cerca de quatro anos o que significava para ele ser feliz. O menino respondeu: “Rir, conversar e dar beijos”.
Ao enfrentarmos a incerteza que interfere no nosso bem-estar, o primeiro passo é localizar, dentro de nós, o centro de controlo do nosso plano de ação. Pensar que ocupamos o lugar do condutor, que estamos ao comando, ajuda a programar, agir e resistir melhor. O oposto é colocar o controlo em forças externas abstratas, como o destino, a sorte, o “seja o que Deus quiser”.
O que é, de facto, o crescimento pós-traumático de que fala no seu livro?
São homens e mulheres que, na sua luta por superar a adversidade, descobriram traços positivos da sua personalidade que desconheciam e dizem ter experimentado mudanças positivas na sua forma de ver e sentir a vida.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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