Está nas bocas do mundo e até já lhe chamaram “diabo”. Por estes dias, a inflação é uma das grandes dores de cabeça dos governos a nível global, é a arma de arremesso predileta da oposição e é, sobretudo, o carrasco do bolso das famílias na hora de ir ao supermercado.
Os números divulgados na passada sexta-feira pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram que em abril, a inflação em Portugal atingiu os 7,2%, motivada sobretudo pelos preços da energia, mas também pelos bens alimentares. O Observador foi às compras e a conta final não deixa margem para dúvidas: entre abril e maio, os preços de um cabaz de bens essenciais, no geral, aumentaram.
O objetivo deste trabalho não é fazer comparações entre superfícies comerciais, mas sim acompanhar a evolução dos preços de produtos selecionados a cada mês, num contexto de elevada inflação. Do cabaz fazem parte um conjunto de bens considerados essenciais para uma família com filhos. São eles óleo alimentar, atum, farinha, arroz, massa, bolacha Maria, cereais Corn Flakes, leite, farinha láctea, maçãs, bacalhau, frango, feijão, ovos, açúcar, pão, papel higiénico e fraldas. As comparações feitas pelo Observador têm como base os preços verificados no primeiro dia (no caso de maio, no segundo) de cada mês nos sites de três hipermercados.
Nem todas as subidas e descidas de preços entre abril e maio podem ser justificadas pela inflação. Há casos, como aqueles em que a variação mostra uma descida ou subida de 25% ou 30% entre os dois meses, em que a diferença se deve ao facto de o produto selecionado estar em promoção no dia em que a recolha da informação foi feita. É esse preço, com o efeito das promoções, que conta para o valor do cabaz final. Entre abril e maio, o valor do cabaz selecionado oscilou entre uma descida de 3,45% e uma subida de 10,14%. Na segunda tabela, consta o preço de cada produto com e sem o efeito da promoção.
Em maio, há situações de aumentos flagrantes, como o da farinha de trigo, que num dos casos analisados aumentou perto de 50%, e noutro quase 20%. Este já é um dos efeitos visíveis da guerra na Ucrânia nas prateleiras dos supermercados. Desde o início da invasão, que o preço do trigo tem vindo a disparar nos mercados internacionais, uma vez que a Rússia e Ucrânia representam 27% das exportações globais de trigo.
O preço do trigo de moagem para entrega em maio está a cerca de 400 euros por tonelada, depois de ter atingido um recorde de 425 euros em março. Imediatamente antes da guerra, o preço rondava os 280 euros por tonelada. As projeções mais recentes do Banco Mundial apontam para que os preços desta matéria-prima aumentem 40% este ano, para os valores mais elevados de sempre.
O preço do pão, por sua vez, não aumentou nas superfícies analisadas. Pelo menos em maio. Em março, Associação Nacional dos Comerciantes Industriais de Produtos Alimentares (ANCIPA) alertou para possíveis aumentos, mas ressalvou que a totalidade das subidas sentidas pela indústria não estava a ser totalmente refletida no valor praticado ao consumidor.
Além da farinha, os maiores aumentos foram sentidos no papel higiénico, numa altura em que também o preço do papel está em alta, e nos ovos, cujas subidas foram transversais e chegam a ultrapassar os 20%. Neste caso, não foi só a guerra na Ucrânia que teve influência. Os surtos de gripe das aves detetados em França e nos Estados Unidos tiveram um peso decisivo para a subida dos preços nas últimas semanas. Segundo avançou a Reuters em abril, foram abatidas 8% do total de galinhas poedeiras em França, e 6% nos Estados Unidos. Os produtores contactados pela agência admitem que “é provável” que os preços se mantenham elevados durante este ano. No conjunto do cabaz, é possível ver ainda que o feijão branco também seguiu a tendência de subida dos preços, tal como o esparguete. A bolacha Maria, o arroz e o leite tiveram aumentos pontuais.
No sentido oposto esteve um dos produtos que mais tem concentrado atenções nos últimos meses, por também estar ligado à guerra na Ucrânia. O preço do óleo, que vinha a disparar nos últimos meses, e até levou a racionamentos, desceu de forma generalizada na grande distribuição. Sem efeito de promoções, o preço do óleo baixou entre 5% e 25% nas prateleiras dos supermercados.
Outros produtos, como o atum em óleo, o açúcar e o bacalhau mantiveram-se estáveis entre abril e maio.
A última estimativa do INE mostra que em abril, a taxa de variação homóloga do índice referente aos produtos alimentares não transformados terá apresentado uma variação de 9,5%, depois de já ter subido para 5,8% em março.
Um fenómeno temporário ou dramático?
Se é temporária ou veio para ficar, é um debate que ainda divide os economistas. Certo é que a inflação tem dominado o debate político nas últimas semanas, e foi o tema que aqueceu a discussão do Orçamento do Estado na generalidade. O Governo prevê uma inflação de 3,7% para este ano, ou de 4% no caso do índice harmonizado a nível europeu, e tem-se escudado naquelas que são as previsões de instituições como o Banco Central Europeu (BCE) ou o Fundo Monetário Internacional (FMI) para defender que o aumento dos preços é conjuntural, e não estrutural, e terá uma duração limitada no tempo. Ainda assim, não se tem livrado das acusações da oposição, de que o aumento dos preços sem aumento de salários a acompanhar é uma austeridade disfarçada.
Na defesa do OE, o ministro das Finanças, Fernando Medina, admitiu mesmo que as famílias portuguesas estão a perder poder de compra na sequência do aumento dos preços. “Seria errado e não seria verdadeiro dizer que as pessoas não têm diminuição do poder de compra”, afirmou na semana passada aos deputados. O ministro ressalvou que essa avaliação depende, precisamente, do cabaz de consumo que as famílias compram, pelo que o Governo está a focar os apoios diretos aos rendimentos dos mais vulneráveis.
O diabo veste-se de inflação. O primeiro dia do debate do Orçamento
O principal suporte foi anunciado em março, na forma de um apoio de 60 euros para as famílias carenciadas, com o objetivo de mitigar o “aumento extraordinário dos preços dos bens alimentares de primeira necessidade”. O apoio, relativo a março, foi pago a 29 de abril e às 762.320 famílias que em março eram beneficiárias da tarifa social de eletricidade.
A ajuda foi, entretanto, alargada aos beneficiários de prestações sociais mínimas que não estão abrangidos pela tarifa social de energia. Em maio vai assim chegar a mais 68 mil beneficiários, para um total de 830 mil agregados familiares.
Certo é que, até março, a inflação em Portugal, apesar da tendência crescente, era das que menos crescia na União Europeia. O que já não se pode dizer que tenha acontecido em abril. Ao atingir os 7,2%, o índice passou a roçar na média da zona euro, que está nos 7,5%.
Ainda este domingo, o antigo ministro da Economia de Passos Coelho, Álvaro Santos Pereira, demonstrou preocupação com o aumento da inflação, e alertou para os seus potenciais “efeitos dramáticos”. “Estou preocupado com a perda de rendimento e poder de compra, e ainda mais preocupado se a inflação ficar fora de controlo, por isso vemos em vários países os bancos centrais a atuar de forma mais decisiva”, afirmou à margem de um debate da União Geral dos Trabalhadores (UGT) no âmbito do 1.º de Maio.
O Banco Central Europeu (BCE) acredita que “a inflação vai começar a cair na segunda metade do ano”, segundo o vice-presidente Luis de Guindos, mas, mesmo nessa altura, “deverá permanecer acima de 4% no último trimestre”, o que é o dobro do objetivo de médio prazo de 2% da instituição, que se prepara para subir os juros este ano, como resposta à crise dos preços.