O cemitério de Vila Facaia, pequena aldeia a oeste da vila de Pedrógão Grande, é o único pedaço de branco numa área de muitos quilómetros quadrados. À volta, tudo ficou negro depois da passagem do incêndio, que devastou particularmente aquela freguesia: morreram perto de 40 pessoas naturais dali. Durante todo o dia de terça-feira, cinco funcionários da Junta de Freguesia, comandados pelo coveiro José Francisco, conhecido como Chico, iam cavando inúmeras sepulturas, para as dezenas de funerais que se vão suceder nos próximos dias. “Nunca tive de abrir tantas covas de uma vez”, desabafa José Francisco, 57 anos, que contou com a ajuda do coveiro da freguesia vizinha da Graça para a empreitada.
À entrada do cemitério, local isolado no meio da floresta, a 500 metros da pequena aldeia, uma carrinha da Proteção Civil denuncia o aparato que ali se vive. Ao fim da tarde, José Francisco oferece bebidas frescas a quem esteve a trabalhar durante o dia todo. Às 18h30 realizam-se os dois primeiros funerais, mas neste primeiro dia foram abertas mais sepulturas do que apenas essas duas. “Só na nossa freguesia morreram à volta de 40 pessoas, mas não quer dizer que venham todas para aqui, porque há uns que vão para fora. Estamos a abrir covas porque, quando os corpos forem libertados, vai ser tudo muito rápido. Estamos a abrir covas para ficar à espera”, explica José Francisco, de boné na cabeça e copo na mão, sentado num murete à sombra da única árvore que ali permite evitar o calor.
Num dia normal, entrar no cemitério significa entrar num local de silêncio rodeado de floresta. Mas, neste dia, passar por aquele portão e atravessar o estreito corredor empedrado leva-nos ao único sítio movimentado da aldeia. Os funcionários da junta de freguesia vão trabalhando um pouco por toda a área do cemitério — muitas das campas têm de ser levantadas, porque grande parte das vítimas vão ser enterradas junto de familiares.
Do lado direito do corredor, Maria Joaquina, 49 anos, trabalha apressada sob um sol escaldante — a cova que está a abrir tem de ficar pronta a tempo do funeral desta tarde, agendado para as 18h30. Baixinha, de boné na cabeça e vestindo uma t-shirt transpirada e suja de terra, com o logótipo da junta, vai falando dos que morreram como se ainda cá estivessem — talvez para se lembrar deles, ou talvez para não se deixar ir abaixo. “Além vai ser marido e mulher. E a nora e o filho também, mas esses têm de ficar ao lado, porque não há espaço para todos ali”, conta, com a pá na mão. “Ó João Paulo, tenho que tirar esta terra daqui agora, não é?”, pergunta ao coveiro vizinho, que vai ajudando a orientar os funcionários da Junta de Freguesia, muitos deles pela primeira vez a fazer um trabalho daqueles.
Maria conhecia todos os que morreram, mas nem isso lhe tira o afinco com que vai preparando o local onde vão ser sepultados os seus amigos. Não chora. Não é resignação ou derrotismo. É vontade de fechar um ciclo e de contribuir para um funeral digno para os que estimava. “O que é que a gente há de fazer? Não podemos deixar de fazer isto, temos de fazer alguma coisa”, diz, enquanto vai contando o trabalho feito. “Já temos uma, duas, três ali, quatro, cinco. Isto agora é abrir covas.”
Maria Joaquina é cantoneira, mas as suas funções habituais multiplicam-se por diversos espaços da freguesia. “Faço limpeza no centro de saúde, na junta e nas casas de banho públicas”, explica. Mas esta manhã foi diferente: “Hoje cheguei ao meu chefe e perguntei ‘para onde é que a gente vai hoje?’ E ele disse ‘para o cemitério abrir covas'”. E assim foi. “Só fiquei um bocadinho arrepiada quando vi há bocado ali um caixão. Chamei logo o coveiro”, lembra. Durante a conversa com o Observador, nunca parou de cavar, nunca mostrou fragilidade, nunca se foi abaixo. Nem mesmo quando começou a recordar os seus amigos, que irão ser sepultados ali. “A rapariguita… e depois a outra senhora, que era da minha idade, e que tinha um filho de 20 anos, e a outra senhora, que era da minha idade também”.
Horas antes de imaginar sequer que estaria fazer aquele trabalho, Maria teve de se salvar a si própria e à sua casa, mesmo no centro de Vila Facaia. “Nossa Senhora de Fátima ajudou-me. Calcei estas botas, mesmo assim sem meias, quando comecei a ouvir uns barulhos, e fui à bordinha da parede, para evitar as silvas, contornar a casa. Quando cheguei ao outro lado, bum!, vi o lume já a subir pela minha parede”, recorda. Tentou apagá-lo com o que tinha à mão. “Com uma pá. E apaguei-o! Só com uma pá! Nem sabia do meu filho nem do meu marido…”
Mesmo ao lado, João Paulo ouve o drama de Maria e conta-lhe o seu: “A mim o que me salvou foi ficar em casa. Só tive tempo de me meter dentro de casa. Se tenho fugido de lá morria”. É a “fúria da Natureza”, garante. Algo que “não se consegue dominar”. Quando o fogo passou, João Paulo foi para a rua ajudar a limpar as estradas. “É humanamente impossível para os bombeiros fazerem isto tudo”, diz o homem, que agora se disponibilizou para ajudar a enterrar os mortos em Vila Facaia. Na Graça, onde é coveiro, apenas três pessoas deverão ser sepultadas. “Lá já está tudo pronto. Agora vim para aqui ajudar, para aqui é que vem muita gente”, explica.
Veio assim que pôde, estacionou a carrinha da Junta de Freguesia da Graça em frente ao portão do cemitério de Vila Facaia e trouxe as suas pás e a sua vontade. De boné e t-shirt laranja, suja de terra, e transpirado pelo calor, que no cemitério ainda é mais intenso, vai passando por cada campa para auxiliar os funcionários inexperientes. “Vai ser preciso tirar esta terra toda daqui agora para colocar as tábuas em que assenta o caixão”, explica a Maria, que de imediato se lança ao serviço. Depois, João Paulo atravessa o cemitério para ajudar dois funcionários em dificuldades. “Vai lá, João Paulo, que eles também não percebem nada disto”, pede-lhe Maria.
Maria Joaquina aproxima-se. A cova que tinha de fazer está pronta e a mulher, a única a trabalhar naquele cemitério, descansa. Crava a pá no chão e apoia-se nela, enquanto olha em redor. Para lá dos muros brancos do cemitério, só se vê destruição. Quilómetros de floresta queimada, aldeias destruídas ao longe, na serra. Ali, impera a serenidade, só interrompida por uma forte ventania que dura menos de 30 segundos. “Está a ver, Maria? Com este vento, o que ainda estiver para arder vai já à vida”, comenta João Paulo. De repente, um rodopio de folhas junto às árvores no corredor central do cemitério ergue-se no ar. “Veja, veja. Foi assim no dia do incêndio, mas maior e com o fogo. Este vento faz uns tornados, por isso é que se espalha por todo o lado”, diz o coveiro, a partir do interior da sepultura que está a preparar.
Uns metros ao lado, junto a um jazigo, Paulo, um jovem de 34 anos que foi parar à junta de freguesia através de um programa de ocupação para desempregados, trata de outra cova, descontente com a falta de união da população da freguesia. “O pessoal de Vila Facaia bem que se podia unir mais um bocadinho. Não se vê mais ninguém aí a ajudar, nem aqui no cemitério nem em nada”, queixa-se. “Nós só temos dois braços e vamos fazer isto tudo. Porque é que o pessoal não se junta para ajudar?”, questiona, enquanto atira a terra para fora da cova.
Paulo fala sempre sem parar de escavar e sem sair do interior da cova. A terra cola-se aos braços transpirados e não há como se proteger do calor. É alto, musculado, veste uma t-shirt velha e um boné da junta, e vai falando sem lhe perguntarmos nada, como se quisesse apenas ir desabafando: “É muito triste, já viu. Eu sou daqui, mas vivo ali na Graça. Morreu tanta gente aqui.” O cemitério tem uns lotes vazios ao fundo. É ali que vão abrir mais covas? “Não, não vai valer a pena. A maioria das pessoas ficam cá em cima, junto a outros familiares que já tinham sido enterrados”, responde Paulo.
Apesar de jovem, esta já não é a primeira vez que Paulo tem de fazer esta tarefa. Trabalhando na Junta de Freguesia como uma espécie de faz-tudo, já teve de fazer muitos serviços no cemitério. “Mas com esta situação é diferente. Isto foi um abuso, um absurdo. Apanhámos uma desgraça… Isto agora é para abrir covas, há muita cova para abrir”, lamenta. O jovem conhecia grande parte dos que morreram. “Nem há comentário possível. É muito duro estar a cavar a cova das pessoas que eu conhecia.” Paulo vai continuar por aqui nos próximos dias, até estarem prontas as mais de 30 covas necessárias para sepultar toda a gente que morreu no incêndio. “Alguém tem de fazer isto. É difícil, mas alguém tem de fazer.”
O que fazer quando nem um velório é possível
Quem também tem agora de fazer um esforço adicional para dar um fim digno às vítimas de Vila Facaia é Joaquim Silva, o proprietário da única agência funerária da freguesia. De fato escuro com gravata preta, barbicha e óculos escuros, é ele quem conduz uma das carrinhas nos primeiros funerais da aldeia. Para facilitar a vida às famílias, Joaquim tem-se desdobrado em viagens até Coimbra e Tomar para tentar desbloquear muitos dos corpos que estão na medicina legal. A tarde de terça-feira foi passada em Tomar, a fazer os possíveis para conseguir levantar o corpo de Alzira Costa a tempo do funeral, marcado para as 18h30 daquele dia.
“Hoje já umas oito ou nove pessoas me telefonaram a perguntar como faziam para libertar o corpo”, conta ao Observador à porta do cemitério, no fim dos primeiros dois funerais na aldeia. “E eu tenho de explicar que o processo é difícil. Conforme eles são libertados da autópsia, a documentação é enviada à Polícia Judiciária, que manda à conservatória a ordem para autorizar o levantamento do corpo. Só aí é que a família, ou neste caso nós, podemos ir buscar o corpo”, explica.
Enquanto conversamos com Joaquim, somos interrompidos diversas vezes. São familiares de desaparecidos que anseiam por novidades — nem que seja a pior notícia de todas, a única que Joaquim pode dar. “Se souberes alguma coisa diz-me logo, por favor”, pedem-lhe. Joaquim tenta sossegar as pessoas. “Amanhã às oito já estou a caminho de Coimbra para tentar saber mais identidades e levantar os corpos”, garante-lhes. Deixa, contudo, um aviso: “Há muita gente que vai precisar do teste de ADN para confirmar a identidade e eles não me dizem nada, nem a mim, antes de confirmarem isso”.
Assim que o corpo é levantado, há que fazer o funeral o mais rapidamente possível. “Eles fazem os exames que têm a fazer, nós vamos buscar o corpo que vai diretamente para a urna, que tem de ser logo fechada”, detalha o responsável da funerária. É aqui que reside um dos grandes dramas para as famílias das vítimas que morreram carbonizadas: não há possibilidade de fazer um velório nem de ver o corpo. “Não há hipótese.”
Também os carros que a funerária de Joaquim tem nem sempre serão suficientes para os funerais — nas próximas semanas, deverão ocorrer vários por dia naquele cemitério — e por isso as funerárias vizinhas já se disponibilizaram para apoiar com meios.
Já passa das 19h30. O cortejo fúnebre de Alzira Costa e Sara Costa, as duas primeiras vítimas naturais de Vila Facaia a serem enterradas, começa a aproximar-se do cemitério, após uma celebração de mais de 45 minutos na igreja paroquial da aldeia. Mais de uma centena de pessoas enche rapidamente o corredor central do cemitério e muitos têm até de ficar da parte de fora. O padre faz a última oração, pedindo a Cristo “que receba na sua paz estas nossas irmãs”, e os caixões são descidos para o interior das covas que Maria Joaquina passou a tarde a preparar. Para estas duas famílias chegou o tempo de fazer o luto.