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Dezenas de empresas farmacêuticas estão neste momento numa corrida contra-relógio para encontrar uma vacina que trave a propagação do novo coronavírus e ponha um ponto final à pandemia da Covid-19. O mundo, em suspenso há quatro meses, deposita a esperança sobretudo em duas delas — uma americana, outra chinesa —, a serem testadas em humanos. Ou noutras que também já entraram em testes clínicos, no Reino Unido e na Alemanha.
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Mas há uma possibilidade nada otimista para que precisamos de nos preparar, avisam os especialistas: as vacinas, mesmo as consideradas mais promissoras atualmente, podem não resultar. Na verdade, esse é mesmo o cenário mais provável. É que sempre foi complicado criar soluções eficazes contra as doenças provocadas pelos coronavírus. E fazê-lo à primeira seria um golpe de “sorte”.
Quem o diz é David States, médico de formação e investigador em métodos computacionais para estudar o genoma humano. Numa série de mensagens publicadas no Twitter na semana passada, o cientista norte-americano arrefeceu os ânimos em torno da descoberta de uma vacina para o SARS-CoV-2: “Se estão à espera que uma vacina vá ser um cavaleiro andante a salvar o dia, podem sofrer uma desilusão”.
O aviso, ainda assim, não deve ser lido com “demasiado pessimismo”, ressalva David States: “Há cerca de 75 vacinas a entrar em ensaios clínicos. Com sorte alguma será bem sucedida; e mesmo que só atenue uma doença severa e exija uma revacinação anual, isso ainda assim seria um grande sucesso”. Mas, e sem ela? “Todos esperamos desenvolver rapidamente uma vacina altamente eficaz, mas a biologia do coronavírus e a história das vacinas veterinárias sugerem que pode ser uma tarefa árdua“, sublinhou.
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Ou seja, não basta encontrar uma vacina — há que desenvolver uma que seja suficientemente eficaz contra um um vírus “altamente contagioso”. É isso que defende também David Nabarro, médico especialista em saúde pública e representante da Organização Mundial da Saúde (OMS) para os assuntos relacionados com a Covid-19, ao Observador: “Quero enfatizar que, muito frequentemente, uma vacina promissora não produz uma resposta imunitária forte. E pode não produzir uma resposta imunitária em toda a gente”. É um baixar de expetativas para aquela que é vista como a única salvação para o momento que o mundo atravessa.
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A ideia de uma vacina é obrigar o organismo a reagir como se estivesse de facto a ser invadido por um agente estranho, mas sem causar doença — neste caso, a provocada pelo vírus SARS-CoV-2. Segundo Pedro Madureira, investigador do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3s), quando o organismo é exposto a um agente infeccioso pela primeira vez, a resposta do sistema imunitário é muito mais lenta.
“Durante esse período, o sistema imune cria memória daquelas moléculas do vírus. Por isso, numa segunda infeção, o sistema imunitário reconhece moléculas do agente infeccioso e a resposta já é quase imediata“, descreve o imunologista. É esse tipo de memória que as vacinas pretendem e tentam aumentar, obrigando o corpo a contactar o vírus atenuado ou mesmo já desativado — isto é, modificado em laboratório para ser incapaz de causar qualquer doença, ou então apenas com sintomas ligeiros.
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A maior parte das vacinas que estão a ser desenvolvidas neste momento têm como alvo as proteínas na superfície do SARS-CoV-2, que lhe dão um aspeto coroado (comum a todos os coronavírus, que por isso ganharam o nome) e permitem a entrada nas células humanas. “Em vez de se usar o vírus todo, usam-se as proteínas do vírus. O nosso organismo vai detetar essas proteínas, considerá-las estranhas, atacá-las e criar memória contra elas. Se mais tarde o vírus infetar, o sistema vai lembrar-se daquelas proteínas e responde rapidamente“, explica Pedro Madureira.
Essa é a estratégia da vacina chinesa, desenvolvida pela Sinovac Biotech. Em vez de utilizar o novo coronavírus para produzir a solução, os cientistas estão a trabalhar com outro vírus, da família dos adenovírus, que se saber ser inofensivo para a saúde humana. “Muda-se geneticamente esse vírus para expressar à superfície a proteína que o novo coronavírus usa para infetar as nossas células. É como se usassem apenas a proteína, mas utilizam este outro vírus como vetor”, descreve o imunologista.
Outra vacina com um modo de funcionamento semelhante a este é a desenvolvida pela Universidade de Oxford com a farmacêutica italiana Advent Srl, um projeto financiado pelo governo britânico. Desde quinta-feira que um total de 500 voluntários com entre 18 e 55 anos já estão a receber esta vacina, que utiliza um adenovírus modificado para conter a proteína que o SARS-CoV-2 usa para infetar as células, obrigando o corpo a reconhecer e atacar essa mesma proteína.
Esta técnica tem um problema, porém: se o vírus sofrer uma mutação nessa proteína, a vacina da Sinovac Biotech ou da Universidade de Oxford deixam de fazer efeito porque “o sistema imune reconhece uma proteína de uma determinada forma”: “Se o vírus tiver essa proteína de outra forma, é como se fosse a primeira vez que é infetado, não a saberá reconhecer”, prossegue Pedro Madureira. E isso significará que as vacinas ficarão sem eficácia ainda antes de estarem no mercado, ou pouco tempo depois.
Os estudos em torno do SARS-CoV-2 provam que é muito estável globalmente, mas que há determinadas zonas do vírus que têm uma taxa de mutação relativamente alta, na ordem dos 40%. E a proteína que tem na superfície, a tal que serve como chave para desbloquear a entrada nas células humanas, é precisamente uma delas, alerta o imunologista: “Se olharmos para locais específicos, a probabilidade de mutação pode ser maior. Por isso, direcionar uma vacina para zonas muito reduzidas do vírus pode ser uma desvantagem”.
Depois, há a vacina da norte-americana Moderna. Esta solução também não utiliza a totalidade do novo coronavírus, mas apenas a informação genética referente à proteína com que ele entra nas células. “Quando esse ARN entra no nosso organismo, as células dendríticas, muito importantes na ativação do sistema imune, vão captá-lo e produzir as proteínas do vírus”, descreve o investigador português. É o que acontece quando há uma infeção real pelo SARS-CoV-2, que obriga a célula a replicar a sua informação genética.
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É a mesma técnica adotada pelo Instituto Paul Ehrlich — a entidade federal alemã de vacinas e biomedicina — e pela biotecnológica BioNTech. Em comunicado emitido na quarta-feira, que dá luz verde aos ensaios clínicos em humanos, o instituto explicou que a vacina contém o ARN referente à proteína na superfície do novo coronavírus e que a ideia é ensinar o corpo a reconhecer essa informação genética. Como utilizam apenas este pedaço da informação genética, estas vacinas não provocariam qualquer sintoma da doença.
Mas o problema é que também existe a possibilidade de nem sequer estimularem o sistema imune a reagir àquele invasor porque “o organismo pode não reconhecer o ARN como sendo estranho ao corpo”, concretiza Pedro Madureira. Aliás, historicamente, as vacinas baseadas em ADN ou ARN não costumam funcionar eficazmente em humanos: “Algumas resultaram em modelo animal, mas falharam quando foram aplicadas a pessoas”. E mantém-se o problema das mutações: se essa informação genética mudar, a vacina torna-se inútil. E em muito pouco tempo.
O problema de uma vacina fraca
Sempre foi difícil encontrar vacinas contra o novo coronavírus. Nas considerações que fez no Twitter, o médico David States reitera que a indústria farmacêutica anda “há décadas” em busca de vacinas eficazes contra doenças provocadas por coronavírus em animais, mas que “a maior parte destas vacinas são inúteis”.
Muitas delas não protegiam o animal dos vírus porque não despertavam uma resposta imune suficientemente forte, tal como está descrito neste relatório. As que melhor resultaram só tinham uma vantagem: conseguiam prevenir um quadro clínico severo, a doença era apenas menos grave.
O panorama parece ser pois isso ainda mais complicado para o SARS-CoV-2. O primeiro problema é ser “altamente contagioso”, mais que qualquer um dos já conhecidos (sobretudo o SARS e o MERS, que em 2002 e 2012 provocaram o síndrome respiratório agudo e síndrome respiratório do Médio Oriente, com surtos que atingiram vários países e causaram cerca de mil mortes) descreve o investigador americano com base no R0 — o número médio de contágios causados por cada pessoa infetada. Numa fase inicial, o R0 deste novo coronavírus era cerca de 2,5, ou seja, cada infetado tinha uma possibilidade estatística de contagiar outras duas a três pessoas. Mas os estudos mais recentes indicam que, a nível mundial, o R0 está entre os 3 e os 5. E que, em alguns países, essa medida é ainda maior.
If you’re hoping a vaccine is going to be a knight in shining armor saving the day, you may be in for a disappointment. SARSCOV2 is a highly contagious virus. A vaccine will need to induce durable high level immunity, but coronaviruses often don’t induce that kind of immunity 1/
— David States MD PhD (@statesdj) April 21, 2020
Acontece que, apesar desta dimensão, o SARS-CoV-2 não produz uma resposta imune muito forte. Tal como Pedro Madureira já tinha explicado ao Observador, “o tempo de semi-vida da classe de anticorpos que dura mais, a imunoglobulina G [IgG], é de 23 dias”: “Passados 23 dias, a quantidade desses anticorpos já passou a metade. Passados 46 dias, será um quarto da quantidade inicial e por aí adiante”.
Ou seja, os anticorpos não circulam eternamente no sangue do doente recuperado — pelo contrário, deixam de fazer efeito ao fim de cerca de dois meses, calcula Pedro Madureira, em concordância com os tweets de David States.
No entanto, os dois especialistas discordam no que toca ao significado dessa imunidade temporária: para o investigador do i3s, os anticorpos não precisam de continuar em circulação para que o organismo assegure uma proteção contra o vírus. “É normal que os anticorpos em circulação desapareçam ao fim de algum tempo. O que é importante é que as células memorizem o vírus para que o sistema imune volte a produzir os anticorpos se houver uma infeção“,
David States argumenta que a resposta imune criada pelo organismo após uma infeção pelo novo coronavírus não é muito significativa porque “muita gente não desenvolve uma resposta IgM [imunoglobulina M] e a resposta IgG dissipa-se visivelmente ao fim de apenas dois meses”.
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Mas Pedro Madureira esclarece que os anticorpos IgM são os primeiros a serem produzidos quando há uma infeção, por isso surge “quando a resposta imune ainda não está em pleno”. Mas isso “não significa que não seja eficaz em termos de neutralização do vírus. Aliás, a resposta imune envolve não só anticorpos, mas outras moléculas e células. Por isso, quando vemos apenas IgM, é porque ainda não houve uma ativação total da resposta imune”.
Por outro lado, quando já se detetam anticorpos IgG em circulação, pode afirmar-se que “já temos memória para o vírus, já houve ativação de células e uma resposta imune na sua totalidade”, descreve o imunologista. Depois, mesmo que também essa desapareça, o corpo continuará a ter as ferramentas certas para, se for exposto novamente ao vírus, saber que mecanismos desencadear para o atacar.
Ou seja, há diferentes visões ainda sobre a imunidade à doença, os primeiros testes são ainda muito inconclusivos, as reinfeções estão a acontecer em alguns países e a cada dia um estudo contradiz o do dia anterior. Na verdade, desde que foi descoberto, no final do ano passado, passaram apenas quatro meses, e ainda há sintomas desconhecidos. Cientificamente, está-se no início de um processo que costuma ser longo. Só que este exige respostas rápidas.
Vírus “altamente contagioso” precisa de uma vacina forte
Mesmo não concordando sobre a questão da imunidade, os dois cientistas, assim como David Nabarro, concordam que “a vacina precisará de ser bastante eficaz para impedir a disseminação do SARS-CoV-2″, no resumo de David States. E não há qualquer certeza que alguma das vacinas em ensaios clínicos neste momento “provoque uma forte imunidade” — a condição obrigatória para que a solução entre no mercado.
A matemática prova-o. A vacina contra a gripe sazonal, por exemplo, tem uma eficácia de cerca de 50% a nível mundial — ou seja, mesmo quem a toma tem 50% de probabilidade de contrair o vírus em circulação. No entanto, como o vírus da gripe não é tão contagioso (o R0 está entre 1,4 e 1,7) como o SARS-CoV-2 (que é de 2,5), mesmo que apenas metade da população seja vacinada, o R0 diminui para entre 1 e 1,3. Nesse caso, “o vírus da gripe espalha-se muito menos rapidamente, muito menos pessoas são infetadas e vidas são salvas”, concretiza o investigador.
Não será um desfecho suficientemente bom para o caso da Covid-19, argumenta David States. Uma vacina para o SARS-CoV-2 que seja apenas 50% eficaz, mesmo que seja administrada em toda a gente, apenas baixaria o número médio de contágios causados por cada pessoa infectada para entre 1,5 e 2,5. Se apenas 50% da população mundial fosse vacinada, o R0 continuaria nos 2,3 a 3,8. É “ainda bastante contagioso“, demonstra o médico.
O desafio de encontrar uma vacina para toda a gente
Os problemas não terminam aqui. O representante da OMS para os assuntos da Covid-19 acrescenta que uma vacina não é eficaz apenas se baixar a capacidade de propagação do vírus, tem também de ser tolerada por toda a gente: “A forma como o corpo responde a um ataque exterior e desenvolve anticorpos não é mecânica. O corpo é um conjunto de sistemas; e o sistema imune precisa de decidir sozinho como vai reagir para tornar inativo o vírus”, explica.
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Quanto a vacina funciona bem, o corpo produz muitos anticorpos contra aquele agente infeccioso. Se não funcionar, o corpo não produz anticorpos. Mas, em casos mais extremos, o sistema imunitário pode produzir anticorpos que desencadeiam uma reação que o ponha doente. “O corpo não é uma máquina, é um equilíbrio de vários sistemas, por isso nunca se pode garantir que um antigénio candidato vai realmente provocar anticorpos úteis”, resume.
À espera da vacina, temos de agir como “detetives do vírus”
Para Pedro Madureira, a resposta para travar o novo coronavírus está numa vacina que introduza no organismo o vírus completo, mas inativado, tal como se fez no desenvolvimento de soluções para o sarampo ou a poliomielite, por exemplo.
Há duas formas de o fazer: utilizando uma estirpe que não infeta humanos, mas seja semelhante à que o faz; ou aplicando agentes químicos — neste caso, o formaldeído (também conhecido por metanol) ou a betapropiolactona — que tornam o vírus incapaz de infetar as células.
David Nabarro concorda: “Para desenvolver uma vacina contra este vírus, a primeira fase é ter uma amostra de vírus que esteja inativada, acrescentando químicos que o obriguem a criar anticorpos“. Depois disso, entre testes e ensaios clínicos de vários níveis, numa situação normal, passam-se pelo menos 18 meses até que a vacina possa ser administrada à população.
O processo pode ser acelerado tendo em conta o problema de saúde pública provocado pelo novo coronavírus em todo o mundo, confirma o representante da OMS. Mas, mesmo havendo resultados promissores dentro de 12 meses, “continua a haver incertezas, por isso não devemos fazer nenhuma suposição de que isto vai ser bem sucedido“: “Há muitos vírus para os quais já se desenvolveram vacinas que pareciam promissoras, mas não deram resultado. Não podemos assumir que a vacina vai estar pronta num ano”, diz.
David Nabarro insiste que, enquanto não houver uma solução, temos de “aprender a conviver com o vírus”. Há que identificar facilmente as pessoas com a doença, isolá-las rapidamente, encontrar as pessoas com quem contactaram e colocá-las em quarentena. E, pelo meio, proteger todas as pessoas que pertençam a grupos de risco.
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Mas teremos de continuar no estilo de vida que temos agora? Não de forma tão rígida, responde o médico: “Nesses casos, temos de estar prontos para reduzir os movimentos se houver transmissão comunitária a ocorrer em algum lado” . Mas a solução não é mais simples: “Temos de estar em alerta máximo constantemente. Podemos viver vidas normais, mas as pessoas na comunidade devem agir como detetives do vírus. Quando encontram pessoas doentes, ajudam-nas a isolarem-se”, sugere David Nabarro.
O artigo foi atualizado para esclarecer que as vacinas da Moderna e da SinoVac já entraram em ensaios clínicos.