Sério, rigoroso, direto, pouco dado a vaidades, uma força estabilizadora. É assim que é descrito Mario Draghi, o primeiro-ministro italiano que, aos 74 anos, conseguiu a proeza de ser praticamente consensual, num país castigado por sucessivos escândalos políticos e instabilidade. Há cerca de um ano à frente do governo, composto por uma ampla e complexa coligação, o antigo presidente do Banco Central Europeu quer agora deixar o cargo e assumir a presidência. A ideia é assegurar sete anos de influência sobre a política italiana, mas nem todos concordam: além de arriscar perder os dois cargos, há quem ache que nenhum outro primeiro-ministro vai conseguir fazer funcionar a complexa ‘geringonça’ italiana. A escolha do próximo presidente começa esta segunda-feira.
“Acho que o motivo por que Draghi se quer tornar Presidente é que assim pode preservar e defender o seu legado como primeiro-ministro. Isso acontece porque o chefe de Estado tem grandes poderes, porque o mandato é de sete anos e também porque resta muito pouco desta legislatura”, explica ao Observador Francesco Galietti, analista político e fundador da consultora Policy Sonar.
Ao contrário do que acontece em Portugal, em Itália, o Presidente é escolhido por um colégio eleitoral, composto pelo Parlamento e representantes regionais. Não há candidaturas formais, mas Draghi já fez saber que está interessado no cargo; Silvio Berlusconi chegou a estar em campanha, mas anunciou no sábado que abandonava a corrida. A votação começa esta segunda-feira, mas pode prolongar-se por mais de uma semana, já que nas primeiras voltas seria necessário um candidato ter dois terços dos votos para poder vencer.
A eleição acontece a cerca de um ano das legislativas, em 2023. “Um dos motivos por que as pessoas apoiam que ele se torne Presidente é por acharem que, se ele se mantiver no governo, não vai poder fazer muito, porque os políticos vão em breve entrar em modo pré-eleições e vai ser difícil que apoiem algum tipo de medida mais impopular”, esclarece John Hooper, que há mais de 15 anos é o correspondente da revista Economist em Itália, em declarações ao Observador.
O país não tem um sistema presidencialista, mas a figura do chefe de Estado concentra em si grandes poderes, conferidos pela Constituição. É ele que nomeia o primeiro-ministro, pode rejeitar ministros, pode dissolver o Parlamento, bloquear leis. “Acima de tudo, tem muito poder não escrito, especialmente num país onde o Parlamento está frequentemente dividido, onde há instabilidade. O Presidente é crucial em crises, e há crises com frequência no sistema político italiano”, explica ao Observador Alessandro Speciali, jornalista da Bloomberg e autor de dois livros sobre Mario Draghi.
É este o principal argumento a favor desta inédita mudança de cargo: a capacidade de Draghi prolongar, de certo modo, por sete anos, a estabilidade que conseguiu dar ao país desde fevereiro do ano passado.
“O último ano foi incrivelmente livre de escândalos”, sublinha Hooper. Galietti considera que, na presidência, Draghi pode assegurar que esse cenário se mantém: “É o único que pode garantir que não acabamos com um governo populista”, defende Galietti.
Proteger um legado
Outro argumento forte a favor de uma presidência Draghi prende-se com a necessidade de proteger o seu legado como primeiro-ministro. Mas que legado é esse, afinal?
Há quatro ou cinco questões apontadas pela maioria dos analistas: boa gestão da pandemia (depois de Itália ter sido um dos casos mais trágicos em 2020), recuperação e modernização económica, reforma administrativa e judiciária, e a definição de um plano para aplicar os 200 mil milhões de euros de fundos europeus pós-pandemia.
Há também uma questão geopolítica. “Uma das grandes mudanças a que assistimos com Draghi é que Itália se estava a tornar um poder neo-eurosiático, a namoriscar com a Rússia e ainda mais com a China. Com Draghi, isto foi tudo controlado. Ter Draghi como Presidente significa que, durante sete anos, a Itália se mantém no eixo Atlântico. Draghi seria um garante para Itália, perante as instituições europeias e os mercados”, diz Galietti.
Mas nem todos são tão otimistas. Além de existir sempre a possibilidade de Draghi perder os dois cargos, muitos acreditam que levar o mandato de primeiro-ministro até ao fim seria mais benéfico para o país, principalmente por causa dos fundos europeus: Draghi tem um plano para aplicá-los, mas é preciso executá-lo, e Itália tem de satisfazer rigorosos requisitos para Bruxelas libertar o dinheiro. Em junho, por exemplo, tem de provar que os planos definidos continuam em curso para poder receber uma tranche de 24 mil milhões de euros nos meses seguintes.
Mas aquilo que mais preocupa os analistas não tem que ver com programas ou ideias — é mesmo uma questão de habilidade política. “É difícil encontrar quem consiga um consenso tão amplo. Estou certo de que, se Draghi for eleito, vai haver uma transição suave para o cargo de primeiro-ministro. A questão é se essa pessoa vai ser capaz de controlar os deputados no ano que falta até às eleições, porque cada partido vai estar a puxar numa direção e isso vai ser um grande problema”, diz Alessandro Speciale.
A coligação liderada por Draghi, que o The New York Times descreve como um “governo de união nacional”, inclui quase todo o espectro político, do populista Movimento Cinco Estrelas à Liga (extrema-direita), Força Itália (centro-direita), Partido Democrático (centro-esquerda), Itália Viva (centro) e Artigo Um (esquerda).
“O meu receio é se pode ser encontrado um substituto que consiga segurar a coligação. Draghi tem uma espécie de estatuto de ‘Super Mario’, que é quase intimidante para os políticos italianos”, comenta John Hooper.
“Não sei se intimidante é a palavra certa”, responde Speciale. “É pragmático, não tolera disparates, não quer ser arrastado para jogos políticos. Tem uma abordagem diferente para tentar fazer coisas e não se envolve em grandes retóricas ou vaidades, como os políticos normalmente fazem. Não faz muitas promessas, fala pouco e só de factos. Há satisfação com a eficácia e o pragmatismo que tem mostrado. Claro que isto se nota, porque é muito competente, muito orientado para os resultados”, descreve o autor dos livros “Mario Draghi. L’artefice: La vera storia dell’uomo che ha salvato l’euro” (“Mario Draghi. O arquiteto: A verdadeira história do homem que salvou o euro”, tradução livre, sem edição portuguesa) e “Whatever it takes. Mario Draghi in parole sue” (“O que for preciso. Mario Draghi nas suas próprias palavras”, tradução livre, sem edição portuguesa).
O senhor que se segue
Draghi é praticamente caso de estudo. O jornal Politico diz que Itália enfrenta mesmo um “problema de sucessão” porque “só quer Mario Draghi”. Chama-lhe “cavaleiro andante” e diz que é “a única pessoa” em relação à qual o país mostra algum consenso, com taxas de popularidade a chegarem aos 65%. É um consenso que, paradoxalmente, não pode agradar a todos, porque só pode ocupar um dos dois cargos: ou Presidente ou primeiro-ministro.
Uma sondagem divulgada este mês revela que 53% dos italianos consideram que Draghi é a melhor pessoa para ser o próximo presidente. Mas, sendo esta uma decisão dos deputados, e não dos cidadãos, a matemática pode não ser tão óbvia.
“Draghi é o mais provável vencedor, mas não é certo”, diz o correspondente da Economist. Também Alessandro Speciale considera que tem “boas hipóteses”. “É provável que não seja o candidato preferido de nenhum partido, porque todos preferem outra pessoa, mas ao mesmo tempo é a segunda melhor hipótese para a maioria. Isto significa que, quando o parlamento está dividido, quando não entram em acordo, ele é o mais provável consenso”, explica o jornalista italiano.
Se Draghi vier a ocupar o lugar do Presidente Sergio Mattarella, surge ainda a questão de quem o substituirá como primeiro-ministro, pelo menos até às legislativas de 2023.
“Em teoria, primeiro há eleições presidenciais, depois surge um novo governo, é o novo Presidente que nomeia o novo governo. Mas, na prática, o novo governo está a ser montado antes, de modo a que a eleição de Draghi não seja disruptiva”, indica Francesco Galietti.
O candidato mais óbvio é Daniele Franco, o ministro das Finanças, mas existe também a possibilidade, menos falada, de Elisabetta Belloni. “É uma antiga secretária-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a nossa chefe da diplomacia, e é atualmente a chefe dos serviços de informações. É um perfil sem precedentes: uma mulher, uma diplomata e uma espiã”, comenta o analista político.
John Hooper diz que o risco associado a uma figura como Franco, um tecnocrata, é o de ser empurrado pela classe política: “Há um padrão na política italiana em que os políticos permitem que os tecnocratas giram as coisas numa situação de emergência, durante um ano ou assim, mas depois recuperam o poder. Acho que é um risco que, com Draghi fora, digam ‘Ok, pronto, muito obrigado, mas agora queremos voltar a tomar conta das coisas e queremos que um de nós seja primeiro-ministro’.”
Este é um cenário que os analistas defendem que deve ser evitado a todo o custo: o de eleições antecipadas, já que voltar a compor o delicado puzzle político italiano vai certamente revelar-se uma dor de cabeça.
Há, no entanto, alguma confiança em que isso não vai acontecer: além de uma genuína “vontade geral de estabilidade”, alguns deputados têm uma motivação extra: se houver eleições antecipadas, aqueles que não completaram o primeiro mandato perdem o direito a uma pensão vitalícia. De acordo com o jornal La Repubblica, 68% dos deputados e 73% dos senadores estão nesta situação.
Com tanto em jogo, é difícil prever o desfecho político da próxima semana. Draghi surge como o provável vencedor, mas vai ter de bater a concorrência. O Movimento Cinco Estrelas, o partido com maior representação parlamentar, já disse que preferia que a presidência fosse ocupada por uma mulher, e há ainda uma fação que apoia uma reeleição do atual Presidente, ainda que Sergio Mattarella, de 80 anos, tenha já indicado que se quer reformar.
"'Net-zero by 2050, blah blah blah'. This is all we hear from our so-called leaders – words."
Climate activist Greta Thunberg was not holding back at the #Youth4Climate summit in Milan. #PreCOP26 pic.twitter.com/3tj5xMQlGz
— euronews (@euronews) September 28, 2021
É possível que tudo se resuma a uma questão de persuasão — e Draghi, com fama de ser pouco dado a conversa fiada, já se mostrou apologista do ‘blá-blá-blá’.
No ano passado, durante a cimeira Youth4Climate, a ambientalista Greta Thunberg acusou os líderes mundiais de falarem muito e fazerem pouco. “Tivemos 30 anos de blá-blá-blá, e onde é que isso nos levou?” A resposta chegou pronta do primeiro-ministro italiano: “O blá-blá-blá é, às vezes, uma forma de escondermos a nossa incapacidade de agir, e agir de forma consistente. Mas, de certo modo, quando há estas mudanças transformadoras, é na verdade útil convencer as pessoas de que as ações são necessárias”. Resta saber se desta vez convenceu os eleitores.