Não é o mesmo homem, mas é o mesmo homem que há cinco anos caminha para esta sala com chão de madeira. Entrou como agressor, agora é um exemplo. “Quando chegou cá, o casamento já tinha acabado. Hoje, namora com a ex-mulher”, conta João Redondo, o fundador da Unidade de Violência Familiar (UVF) que funciona neste velho hospital de paredes cor-de-rosa.
Não é o único. Há outros “casos de agressores que, mesmo depois de terminada a medida ou a pena, continuam a frequentar o grupo durante anos”, congratula-se o médico que coordena este serviço do Centro de Responsabilidade Integrado de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC). “Estas pessoas são muito importantes para os outros, porque são o testemunho vivo de que é possível mudar”, sublinha.
Se na violência doméstica há um par, a vítima e o agressor, então a UVF olha para os dois. Ao lado do programa para quem foi sujeita a agressão, existe um programa para o sujeito da agressão. Objetivo? Tentar travar uma realidade que assume proporções epidémicas em Portugal.
Com os números a crescer – em 2022, foram apresentadas 30.389 queixas, assassinadas 24 mulheres e quatro crianças e acolhidas pela Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica 1.455 pessoas (54,2% de mulheres e 44,7% de crianças) – e o consequente agravamento do impacto na saúde mental das vítimas, o modelo de intervenção terapêutica da UVF do CHUC é um exemplo a ter em conta.
Criada em 2005, no antigo hospital psiquiátrico Sobral Cid (atualmente Hospital Sobral Cid – CHUC), com a perspetiva de que a violência doméstica é um problema de saúde pública, a UVF apostou desde a sua génese num trabalho diferenciado com as vítimas e com os agressores, na sua esmagadora maioria homens, para dar resposta aos vários problemas de saúde mental associados a este flagelo. E desde logo adotou como estratégia de intervenção o trabalho em rede, multidisciplinar e multissectorial, explica João Redondo.
Um trabalho diferenciado porque encara a violência familiar como algo complexo para o qual não há uma explicação universal e linear. Tal como não há um perfil único de agressor e daí que a intervenção seja definida caso a caso,“um fato à medida de cada um”. Por isso tem também um caráter psicoterapêutico e não pedagógico-educacional (que é a abordagem tradicional), colocando o foco nas capacidades e competências do indivíduo e no seu potencial de mudança de comportamento. Valências que, nesta unidade, como explicou ao Observador a equipa, são abordadas de acordo com o perfil de cada um — a nível individual, em grupo (com recurso a técnicas psicodramáticas), com a rede de suporte e com o casal, quando se mantêm na relação e se procura uma mudança de comportamento e atitude em relação à situação que motivou o encaminhamento para a UVF.
Neste processo está sempre subjacente um trabalho em rede com todos os que se relacionam com o agressor – família, amigos, vizinhos, mas também tribunais, sistema judicial, forças de segurança, Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), médico de família, hospital. Ou seja, todos aqueles que possam dar informação sobre o contexto do agressor e a história de violência que o levou ao programa e possam também exercer uma função de contenção e vigilância durante todo o processo.
“As redes ‘Grupo Violência: Informação, Investigação, Intervenção’ e ‘Escola Contra a Violência’, que a UVF integra, assim como o protocolo relativo à intervenção com pessoas agressoras que formalizámos em 2007, com o DIAP Coimbra, a PSPCoimbra, a GNR CT Coimbra e a Delegação Regional de Reinserção do Centro da DGRSP têm um papel muito importante em todo o trabalho que temos desenvolvido”, refere João Redondo.
Tratar os agressores para proteger as vítimas (e a sua saúde mental)
“Imagine uma linha de caminho de ferro com várias estações e apeadeiros ligados entre si. É assim que funcionamos, pessoas e entidades que se conhecem e criaram ao longo dos anos uma relação que permite que quando alguém chega aqui, seja vítima ou agressor, nós possamos rapidamente ativar uma rede de suporte e acompanhamento”, explica João Redondo, para quem o pensamento em rede é fundamental.
“Só essa perspetiva é que nos dá um retrato completo da pessoa e da situação porque possibilita uma leitura e compreensão das múltiplas faces da violência e, ao mesmo tempo, permite-nos avaliar o risco/perigo e definir estratégias em rede capazes de proteger a vítima e mobilizar o agressor a aceitar ajuda”, diz o psiquiatra.
Com uma equipa multidisciplinar que inclui três psiquiatras, João Redondo (coordenador), Tiago Santos e Ana Dourado, uma assistente social, Generosa Morais, duas psicólogas, Filipa Sola e Salomé Caldeira e uma secretária, Ana Paula, a Unidade de Violência Familiar do CHUC não concebe uma intervenção nesta área que não inclua os agressores.
“O nosso modelo de intervenção em violência doméstica defende que se temos de intervir com as vítimas, temos de intervir com os agressores e temos de articular com todas as outras estruturas que na comunidade já gravitam à volta de uns e de outros.”, diz João Redondo.
Embora entre os agressores não exista uma prevalência significativa de doença psiquiátrica, a maioria das vítimas enfrenta problemas de saúde mental: depressão, ansiedade, stress pós-traumático. Para as tratar é prioritário quebrar de imediato o ciclo da violência, o que implica a definição de uma estratégia de intervenção com as pessoas agressoras, que, de acordo com estudos nesta área, é mais provável que sejam emocionalmente dependentes e inseguros, tenham baixa autoestima, manifestem baixo limiar de tolerância à frustração e tenham dificuldade no controlo dos impulsos.
“Trabalhar só com as vítimas e não haver mais nada do lado do agressor, para além da intervenção judicial, pode até potenciar violência futura associada a maior severidade”, alerta o psiquiatra Tiago Santos.
O coordenador João Redondo concorda e reforça. “Qual é o risco de trabalhar só com a vítima? Estamos a ajudá-la a minimizar o seu sofrimento e a capacitá-la, entre outros aspetos, para prevenir futuras situações de vitimação e, se não trabalhamos simultaneamente com a pessoa agressora, o risco de provocar uma escalada é grande e poderemos aumentar seriamente o perigo para a vítima”.
Com intervenções para vítimas e agressores, num modelo em rede, quebra-se a invisibilidade e o silêncio tantas vezes associados à violência doméstica, reduz-se o risco para a vítima e potencia-se a sustentabilidade e eficácia da intervenção.
“Um dos indicadores de sucesso mais importantes da nossa intervenção é a interrupção do ciclo da violência, que acontece desde o primeiro momento e é muito evidente.”, diz Generosa Morais, assistente social que está na UVF desde 2006 e é um dos elementos há mais tempo na equipa.
“Em 18 anos, nunca tivemos um caso de homicídio e teremos tido cinco casos de mulheres encaminhadas para casas-abrigo, o que significa que poupámos as vítimas a mais um processo potencialmente revitimizante, porque as obriga a elas e aos filhos a saírem dos seus contextos. Isto dá para perceber o quão singular é este tipo de intervenção”, destaca Generosa Morais, salvaguardando a importância das casas-abrigo como resposta às vítimas de violência doméstica.
“Para estes resultados concorre o facto de a UVF não ser uma resposta de primeira linha e os casos que aqui chegam já terem sido de alguma forma triados” diz João Redondo, “mas obviamente também pesa o trabalho em rede” acrescenta Generosa Morais.
“Sim. Por exemplo, tivemos um caso em que havia perigo sério para a vítima e rapidamente passámos a informação na rede e o agressor foi detido. As várias entidades nossas parceiras são um importante recurso enquanto potencial resposta no caso-a-caso e na (re)avaliação das estratégias que vão sendo implementadas e, pelos laços que nos unem, representam também uma importante matriz na prevenção do burnout dos profissionais que as integram”.
Levar o agressor a colocar-se no lugar da vítima
Desde 2005, passaram pelo programa para agressores da UVF do CHUC, que abrange a região centro do país, cerca de mil casos, uma média de 50 por ano. A maioria foi encaminhada pelo sistema judicial (sobretudo pela DGRSP) e associados aos casos de vítimas que solicitam ajuda à UVF (habitualmente direcionados a partir dos Cuidados de Saúde Primários e Hospitalares), mas também no âmbito de processos acompanhados pelas CPCJs e por iniciativa própria. Estes últimos são “casos pontuais, ainda”, diz João Redondo.
Quando chega o pedido, faz-se o pré-acolhimento que consiste na recolha do máximo de informação junto da entidade que encaminha, a que se segue a consulta de acolhimento, geralmente conduzida por um psiquiatra e a assistente social ou psicóloga, sempre um homem e uma mulher. Aí é recolhida a história clínica e da situação de violência que motivou o encaminhamento, identificada a rede de suporte e feita a avaliação do risco/perigo, informação que permitirá a definição da estratégia a seguir.
Para integrar o programa, o agressor tem de manifestar vontade de participar, comprometer-se a cessar o comportamento violento, aceitar a monitorização do cumprimento do programa e os limites da confidencialidade e enfrentar as consequências legais da quebra de compromisso.
Visando maximizar no caso-a-caso a eficácia do programa de intervenção, procura-se que este seja adequado às características do agressor. Optar por uma intervenção individual ou grupal depende, por exemplo, de se estar perante um agressor que sofre ou não uma perturbação da personalidade, de um problema de adição, de um défice cognitivo, de uma doença psiquiátrica descompensada, de surdez profunda ou eventualmente tem dificuldades a nível da acessibilidade à UVF.
“Na sua maioria, à luz do atual conhecimento, o comportamento violento associado à violência doméstica não tem necessariamente subjacente uma perturbação psiquiátrica que, de acordo com a nossa experiência na UVF, incapacite o agressor para avaliar a ilicitude dos seus atos e para se determinar de acordo com essa avaliação”, sublinha João Redondo.
No caso a caso, para os agressores que não venham a integrar o grupo, avaliar-se-á qual a estratégia mais adequada a implementar. Nestas situações, e tendo em conta a perturbação dominante, opta-se por uma intervenção individual, cujos objetivos gerais visam potenciar maior organização e estruturação dos diversos aspetos da personalidade, aumentar a resiliência do indivíduo, minimizar a influência dos fatores de risco e ajudar a identificar dificuldades e recursos, com vista à sua utilização posterior.
A intervenção grupal (12 a 15 pessoas), que é o tipo de intervenção utilizado em regra no programa para os agressores, tem periodicidade quinzenal, duração de hora e meia (início às 18h) e decorre de novembro a julho do ano seguinte, descreve a equipa.
Com recurso a técnicas psicodramáticas, procura promover uma maior proximidade com os pensamentos, sentimentos, motivações e condutas; melhorar a compreensão das situações através da capacidade de se pôr no lugar do outro; ensaiar e descobrir comportamentos funcionais alternativos à violência e trabalhar a autocompaixão. Entre as temáticas abordadas nestes grupos terapêuticos estão o ciúme, o stalking, a sexualidade, a igualdade de género, as dinâmicas familiares, a violência e o seu impacto, etc.
“Tudo isto é trabalhado no ‘aqui e agora’, num ‘como se’, utilizando, entre outras técnicas, o role playing, estratégia que permite ao agressor pôr-se no papel do outro. Nessas dramatizações, podem ser a mulher, os filhos ou outros personagens da história que previamente contaram e que interessou o grupo e os terapeutas”, acrescenta João Redondo. O psiquiatra lembra-se “de um homem que numa dramatização referiu não conseguir colocar-se no papel da sua esposa, com quem já estava casado há cerca de 15 anos, pois não conseguia saber como ela pensava”.
Mas depois “é o próprio grupo que avalia e ajuda a modelar comportamentos funcionais. Há por vezes tentativas de normalização da violência, mas nós estamos lá para não permitir isso, utilizando técnicas que lhes vão mostrar que a narrativa deles não é aceitável”, continua o psiquiatra.
“O programa é avaliado anualmente, a partir de um conjunto de indicadores que recolhemos junto da família, dos amigos, dos outros serviços que os acompanham e do próprio grupo. Um a dois anos depois do início da nossa intervenção, quando a evolução da situação é positiva e o agressor se mantém na relação, trabalhamos com o casal/família. Cumpridos os objetivos definidos (relativamente a cada intervenção) tem alta. Fica sempre em aberto a nossa disponibilidade caso venham posteriormente a necessitar da nossa ajuda”, garante João Redondo.
O utente que trazia pedras na mão (mas não era para agredir)
Para Tiago Santos, a grande mais-valia da intervenção da UVF com agressores é o esforço de não os reduzir a esse papel, mas vê-los na sua complexidade e dar-lhes a oportunidade de mudar.
“A sociedade sanciona, e muito bem, o comportamento violento e isso tem uma dimensão judicial fundamental, que é muitas vezes a porta de entrada para o programa, mas nós vamos além disso, partindo do princípio de que estas pessoas estão disponíveis para a mudança”, diz o psiquiatra, que lamenta que a intervenção com os agressores nem sempre seja entendida por quem está do lado de fora.
Não é simples. Ana Paula, a secretária da UVF, é quem recebe todos os utentes. Vítimas e agressores. O seu papel não é meramente administrativo. É um primeiro nível, observação e contenção. Ela diz que é “soldado raso”, mas João Redondo não concorda e conta uma história que resume bem o cuidado que é necessário num programa deste tipo, mas também como este pode ser bem-sucedido:
“Chegou um senhor para se inscrever no secretariado da unidade e a Ana viu que trazia pedras nas duas mãos. Ligou-me a avisar, referindo que o utente se apresentava calmo e com um comportamento adequado. Eu, claro, fui espreitar, para perceber o que se passava. Saí do meu gabinete e dirigi-me à sala de espera. Acontece que o senhor era mineiro e trazia pedras da mina para me oferecer”.
A taxa de sucesso “não é de 100 %, mas a grande maioria dos casos que tiveram alta, não voltaram a ter contacto com a DGRSP” frisa João Redondo, acrescentando: “O acompanhamento possível que vamos fazendo, também o vai confirmando. Há utentes que após a alta, mais tarde nos procuram quando sentem que podem voltar a ter ‘problemas’. A relação que criamos com eles é fundamental”, destaca João Redondo.
A inovação no UVF passa também pela investigação e, para ir mais longe no conhecimento sobre pessoas agressoras, está a decorrer um projeto de investigação em parceria com o Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde da Universidade de Coimbra, que junta neurociência, psicologia, saúde mental e ciências biomédicas.
Através de ressonância magnética funcional, pretende-se estudar o cérebro destas pessoas e a sua resposta a determinados estímulos. Conduzida pela investigadora Joana Oliveira, no âmbito do seu doutoramento em psicologia, a equipa espera que os resultados tragam novos dados e inovação científica na intervenção com pessoas agressoras.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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