Começar o dia promovido a “líder da oposição” e acabá-lo com o irritante que existe à direita (André Ventura) despromovido a simples “deputado”. Depois dos sucessivos e variados recados de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a inexistência de uma alternativa à direita e alertas sobre a excessiva dependência do PSD em relação ao Chega, Luís Montenegro aproveitou o dia entre o Mercado da Brandoa, a Cachupa da Cova da Moura, a conversa palaciana em Belém e o vento do Guincho para atacar o Governo socialista, demarcar-se subtilmente do Chega, marcar uma diferença em relação a Rui Rio (nunca nomeado) e para (tentar) normalizar a relação com o Presidente da República. E, desta vez, fê-lo com um aparente conforto e concordância de Marcelo Rebelo de Sousa.
Depois da semana de coabitação mais tensa entre os dois — Marcelo voltou a insistir que Montenegro ainda não era uma alternativa suficientemente forte; Montenegro contrariou-o publicamente e garantiu não “estar no bolso de ninguém” –, Presidente da República e líder do PSD encontraram-se esta terça-feira a sós numa audiência no Palácio de Belém. O Observador sabe que não ficou qualquer assunto por tratar, incluindo os equilíbrios à direita e a situação política do país, que pode ou não resultar na marcação de eleições antecipadas no segundo semestre de 2024. A conversa terá sido franca, mas não foi tensa, o que terá ajudado a relançar uma relação que tem sido tudo menos pacífica entre Belém e São Caetano.
Se Marcelo certa vez afirmou que se via como um “pica-balões“, alguém que antecipa e tenta evitar eventuais tensões, Montenegro aproveitou este encontro com o Presidente da República para evitar o escalar de um pingue-pongue que se vem arrastando há alguns meses e que conheceu nas (raras) respostas públicas do líder do PSD ao Chefe de Estado o seu expoente máximo até aqui. Depois de respondido diretamente a Marcelo em duas ocasiões — na rua, a 12 de abril, e em entrevista à CNN, exibida a 14 de abril, Montenegro entende que tudo o que havia para dizer ao Presidente da República está dito — e o mais fica no segredo dos deuses.
“Há zonas da conversa que ficam no recato da relação institucional entre o presidente do PSD e candidato a primeiro-ministro e o Presidente da República”, desculpou-se Montenegro aos jornalistas. De resto, a história desse encontro começou a ser construída ainda antes, como antecipava aqui o Observador: pela primeira vez, Marcelo referiu-se oficialmente a Montenegro como “líder da oposição” e, mais relevante ainda, ao final do dia, quando anunciou igual audiência com André Ventura, que decorrerá esta quarta-feira, o Chefe de Estado referiu-se ao líder do Chega apenas e só como “deputado“.
Uma diferença de tratamento entre os dois que foi devidamente notada no PSD e que parece acompanhar os sinais que o Presidente da República vem deixando à boca pequena — ainda na edição da última sexta-feira, o Expresso titulava que Marcelo não dissolveria a Assembleia da República com PSD na mão do Chega; a 13 de abril, o Observador contava que, num jantar organizado pelo Harvard Club of Portugal, à porta fechada, o Chefe de Estado confessou estar mais otimista com a força do centro-direita, com a capacidade de o PSD vir a ser uma alternativa e sobre a possibilidade de os sociais-democratas dispensarem a direita radical.
Além disso, os renovados sinais de Marcelo em relação a Montenegro surgem depois de uma entrevista do líder do PSD à jornalista Maria João Avillez, na CNN, em que este carregou no tom das críticas a André Ventura e deixou a garantia de que não fará acordos de governo ou de incidência parlamentar com “políticas ou políticos racistas ou xenófobos, oportunistas ou populistas”. Ainda que não tenha desfeito o tabu — Montenegro continua sem dizer taxativamente que não fará qualquer aliança com o Chega –, o afinar do discurso parece ter sido do agrado presidencial.
Pelo menos, e esse é outra mudança devidamente assinalada no PSD, as declarações de Montenegro nessa mesma entrevista tiveram a vantagem de provocar uma reação epidérmica a Ventura, que, acredita-se, será vantajoso para o PSD — quanto mais o Chega critica a “direita mariquinhas“, mais o PSD crescerá entre as forças moderadas. Até lá, Montenegro vai gerindo os silêncios.
Desde o momento em que deu entrevista a Maria João Avillez, o líder social-democrata não mais respondeu diretamente às perguntas sobre o Chega. Na segunda-feira, recusou-se a esclarecer se considerava o partido de André Ventura “racista, xenófobo, oportunista ou populista”; esta terça-feira, depois da audiência com Marcelo, e à margem de uma visita à Duna da Cresmina, voltou a cortar a eito. “Já esclareci os portugueses. Disse o que tinha a dizer.”
Troika e Suzana Garcia quase estragam o guião
Se sobre Marcelo Rebelo de Sousa chegou a ser escrito que procurava medir o pulso da opinião pública no eixo Portugália-Santini, em Cascais, Luís Montenegro aproveitou o eixo Brandoa-Cova da Moura-Belém-Guincho para tentar validar a tese de que o ciclo político de António Costa terminou e de que o Governo socialista está esgotado e desligado da realidade do país.
Durante a manhã, no Mercado da Brandoa, à medida que ia perguntando sobre o estado da arte e sobre os impactos da redução do IVA para 0% num conjunto alargado de produtos, Montenegro ia recebendo de volta lamentos sobre a quebra no negócio, a falta de dinheiro dos consumidores, a descrença nas medidas do Governo e a ineficácia da medida apresentada por António Costa, que entrou esta terça-feira em vigor. Cumprida a aquisição de duas couves-flor, uma courgette, dois bifes de frango e quatro de alcatra, o líder social-democrata aproveitaria as declarações aos jornalistas para acusar o Governo de viver no “país dos powerpoint” — ideia que repetiria mais tarde, em Belém.
Mas existe um país antes de António Costa e em que Luís Montenegro teve papel relevante. Já depois da visita ao Mercado da Brandoa, e quando se preparava para tomar o café da praxe com a caravana laranja improvisada, o líder social-democrata foi interpelado por uma senhora que recordou os cortes nas pensões decididos pelo Governo de Pedro Passos Coelho. O presidente do PSD — líder parlamentar do partido nesse período — ainda tentou rebater, lembrando que esses cortes só se aplicaram a partir de um certo montante. Sem sucesso. Na volta, ainda ouviu a mesma pessoa a dizer-lhe que António Costa é que tinha reposto o que a direita cortara.
A sombra da troika, em particular junto do eleitorado mais velho, continua a ser uma dificuldade para o PSD, identificada há muito, quer pela direção de Rui Rio, quer pela direção de Luís Montenegro. Em declarações aos jornalistas, o líder social-democrata desdramatizou o episódio. “Gosto muito de ser confrontado com as perceções erradas. O que aconteceu em Portugal foi o seguinte: houve um Governo, do PS que obrigou o Estado a tomar medidas de restrição. E ando na rua de cara levantada. Não ando aqui à espera de receber beijinhos e abraços”, atirou.
Mas houve um abraço que quase lhe provocava um dissabor. Na visita à Brandoa, Montenegro fez-se acompanhar de Suzana Garcia, candidata escolhida por Rio para a Amadora, conhecida pelas posições controversas e pelos rasgados elogios que recebeu de André Ventura. Confrontado com a associação ao Chega, e a dificuldade em dizer taxativamente que recusa qualquer aliança com aquele partido, Montenegro irritou-se.
“Aqui na Brandoa, o cidadão comum não está preocupado com isso. Isso é um movimento mediático que vive numa bolha. Eu estou aqui com dirigentes e autarcas do PSD com todo o gosto e todo o respeito pelos valores do PSD. Só e confuso para quem quer continuar”, insistiu Luís Montenegro. Nas costas da bolha de jornalistas que rodeava o líder social-democrata, ouviam-se comentários de exasperação. “Outra vez? Já chega.” O PSD bem pode dizer que o assunto está arrumado e que é uma obsessão da “bolha”; mas ainda incomoda.
A cachupa na Cova da Moura e o abraço a Carreiras no Guincho
Montenegro aproveitaria ainda o seu segundo dia no distrito de Lisboa (tem passado uma semana de cada mês num distrito diferente) para almoçar cachupa num restaurante cabo-verdiano na Cova da Moura. Mesmo com os termómetros a marcarem os 29.º celsius, o líder social-democrata não abdicaria do picante e de um travo de grogue antes de se lançar à estrada para a audiência com Marcelo Rebelo de Sousa, no Palácio de Belém.
No final, já no Guincho, e em jeito de balanço, Montenegro referir-se-ia àquele encontro com a comunidade cabo-verdiana como forma de dar destaque à necessidade de uma política de imigração capaz de atrair “portugueses novos“, devidamente “integrados”, que “vêm procurar uma oportunidade em Portugal”. Isto semanas depois de o PSD se ter travado de razões com Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa sobre políticas de imigração, o que obrigou a uma demarcação imediata face a André Ventura, que procurou rapidamente colar-se aos sociais-democratas.
Cumprido o ritual, o líder social-democrata não esqueceria ainda Carlos Carreiras, que, investido no papel de cicerone, acompanhou o percurso de Montenegro entre a Quinta do Pisão e a Duna da Cresmina. O presidente da Câmara de Cascais foi um dos maiores críticos de Rui Rio, que lhe chegou a devolver na mesma moeda, chamando-o de “incompetente“. Depois da reaproximação à liderança atual do PSD, Montenegro referiu-se a Carreiras como “um ativo importante do poder autárquico e do PSD”. A diferença estava devidamente assinalada.
À porta fechada, Marcelo elogia alternativa a Costa e regista novo fôlego do centro-direita