“Vamo-nos mantendo ocupados e isso é bom para manter a sanidade.”
Estas palavras são do chef João Cura, responsável do portuense Almeja, restaurante que orienta a meias com a sua mulher, Sofia Gomes. À semelhança de quase todos os restaurantes do país, fecharam portas ao público ainda antes de ser decretada a primeira quinzena de estado de emergência. Em casa com o filho pequeno e sem considerarem a opção de take-away como algo viável em termos de negócio, recusaram ficar totalmente parados e começaram a mostrar aquilo que comiam em casa. Melhor, começaram a ensinar como o faziam.
São cada vez mais os cozinheiros profissionais que por causa da crise pandémica tiveram de encerrar os seus projetos mas que mesmo assim continuam à procura de formas de se manterem ativos. Se por um lado muitos apostaram nas soluções de entregas de comida ao domicílio, são já bastantes os que optaram por uma solução diferente e transformaram as suas contas de Instagram numa espécie de programa de culinária que pretende ensinar os seus seguidores a rentabilizar ao máximo os alimentos que têm por casa.
“Pensámos nisto porque já estávamos a fazer estes pratos em casa. As coisas estavam um pouco paradas e também quisemos continuar a comunicar com as pessoas que nos seguiam pelas redes sociais, os nossos clientes”, explica o cozinheiro.
“Achámos piada mostrar aquilo que fazemos em casa e que, de facto, dá para fazer num registo doméstico, não precisa de grandes equipamentos ou técnicas. Decidimos começar a mostrar para que outras pessoas o conseguissem fazer por elas”, continua. Com a ajuda de um congelador cheio de coisas em que “já não mexíamos há muito tempo”, comenta. Foi então que com bastante periodicidade e em modo totalmente amador, João e Sofia começaram a gravar, cozinhar e organizar a “emissão” de receitas como caril de grão, entrecosto com batatinhas no forno, arroz de cabrito e miúdos no forno, caril verde com os vegetais “que tiver no frigorífico”, focaccia de alho e alecrim e muitas outras coisas.
“Ao inicio fazíamos [as receitas] com muita frequência mas agora é mais espaçado, só de vez em quando. Começámos a avisar o que íamos fazer com antecedência para as pessoas poderem reunir os ingredientes, por exemplo”, afirma João. “É tudo muito amador, mas vamos fazendo.”
O feedback que têm recebido também tem sido entusiasmante, com muitas pessoas a “enviar imagens do que estão a fazer” ou a perguntar “coisas específicas sobre o que podem alterar e assim”. Num momento em que a indústria da restauração atravessa uma fase de profunda incerteza e dificuldade este casal assume a “preocupação com o futuro”, contudo, até ele chegar, vão continuando a alimentar os seus clientes — mesmo que à distância de uma ligação de internet.
Mais a sul encontramos o exemplo do chef Pedro Pena Bastos, que depois de passar pelos restaurantes Ceia e Herdade do Esporão estava por estes dias prestes a inaugurar o seu novo projeto em Lisboa. Tudo ficou parado por força da situação, claro, mas isso não o impediu de encontrar nas redes sociais uma forma de contribuir.
“Fui me apercebendo que as pessoas precisavam de algo criativo para se mexerem um pouco”, conta Pedro ao Observador. “A restauração não implica apenas o ato de alimentar, também tem de reforçar a alma, entreter”, acrescenta. Foi com isto em mente que decidiu também começar a dar umas dicas e receitas com base naquilo que andava a fazer em casa, com a família. “Sinto que é algo construtivo. É quase como o Bruno Nogueira: ele faz aqueles lives para as pessoas se entreterem e isto pretende ser algo do género.”
Pena Bastos defende que a sua classe profissional, mesmo tendo em conta as enormes dificuldades que vai e está a enfrentar, “não pode ficar parada”. “Não tendo grandes plataformas por trás”, afirma, o “pessoal mais novo tem de se desenrascar”, conta. Pedro repescou a sua valências como “fotógrafo amador” e começou a mostrar como se faz focaccia, uma sopa thai de pargo, baba ganoush, lasanha, cabrito no forno, rolos de canela e cardamomo e muito mais.
“Acho que com coisas deste género as pessoas cozinham mais e ao fazê-lo ficam mais ligadas aos produtos, estão entretidas e vão se alimentando. Cozinhar obriga-nos a tomar notas, pensar, ter cuidados reforçados”, aponta. “Acima de tudo, fazemos algo construtivo”, remata.
É claro que este tipo de atividade também estimula uma maior proximidade — ainda que digital — com outras pessoas, os seguidores das redes sociais, e nesse campeonato, à semelhança de João Cura e Sofia Gomes, Pedro diz que a interação “tem sido ótima” e que muitos têm testado as suas sugestões em casa. “O impacto está a ser enorme. Nas últimas semanas tive mais três mil pessoas a seguir-me à conta disto das receitas”, explica. O segredo? “É preciso fazer coisas simples e úteis que as pessoas consigam fazer em casa. Isto também é uma forma de ajudar, acredito. Não adianta fazer uma coisa toda bonita que ninguém pode fazer em casa. Temos que nos agarrar ao que nos dá prazer e isto faz-me sentir que estou a contribuir de alguma forma.”
Ao longo dos tempos, o mundo das redes sociais tem adquirido uma importância imensurável e no ramo da gastronomia e da alimentação isso também se sente. A interatividade (pelo menos aparente) que elas criam entre o restaurante e o público faz crescer o interesse e a visibilidade, daí não se de estranhar que nesta fase conturbada que o mundo vive o mesmo continue a acontecer, mesmo que de outra forma. E estes dois casos não são os únicos.
São cada vez mais os cozinheiros profissionais em Portugal a adotar esta abordagem, dos mais conhecidos aos mais anónimos. O chef Hugo Nascimento, por exemplo, foi um dos primeiros a seguir esta aparente tendência através da sua conta de Instagram (como praticamente todos os outros casos). Depois de vários anos a trabalhar com o chef Vítor Sobral, Nascimento trocou Lisboa por Odeceixe, onde se estreou a solo no restaurante Naperon. Também parado por culpa da Covid-19, começou a entreter os seus seguidores com dicas sobre a melhor forma de fazer brioche, feijoada, arroz de pato, ervilhas com ovos escalfados ou até geleia de pimento.
José Avillez também não fugiu à regra e aproveitou a paragem não só para ajudar quem mais precisa (tem trabalhado com a Junta de Freguesia da Misericórdia, em Lisboa, para alimentar os mais desfavorecidos) mas também para nos ensinar a fazer petiscos como tortilha de espargos e presunto com parmesão, bolo de chocolate e banana, caldo verde com chouriço e farinheira com broa e coentros, por exemplo.
Pelo mesmo caminho seguiu também Pedro Forato, cozinheiro no restaurante Prado, em Lisboa, que apesar de não ser tão mediático como alguns dos nomes já referidos tem apresentado quase diariamente uma série de sugestões simples para qualquer um fazer em casa — receitas de pudins, pães de queijo, bolo de cenoura, arroz de polvo, hambúrguer vegetariano e muito mais. O chef Hugo Portela, do portuense Digby, também tem partilhado umas receitas; Bruno Caseiro, do Cavalariça, já ensinou a fazer pão; Leonel Pereira, do algarvio Check-In Faro, já mostrou a sua receita de leitão; o chef Vítor Adão (que está também a fazer uma interessante série de talks nas suas redes sociais onde fala com produtores portugueses), do Plano, já mostrou os seus dotes de fazer bola transmontana e cabrito assado e como estes, muitos outros profissionais da área estão a seguir este novo formato. Pode ser que quando tudo isto acabar muitos se sintam mais à vontade a mexerem nos tachos.
E lá fora? O que se tem feito?
Se tudo isto acontece em Portugal, lá fora não podia ser diferente. Também um pouco por todo o mundo existem cozinheiros — muitos deles estrelas internacionais — que abriram as portas das suas casas e dos seus livros de receitas para manter o contacto com qualquer um que os siga ou que simplesmente esteja à procura de uma dicas para organizar um jantar mais especial ou acertar esta ou aquela dúvida gastronómica.
https://www.instagram.com/p/B-z8OfupNNu/
Massimo Bottura, por exemplo, é uma super-estrela mundial. Já com uma longa carreira debaixo do braço, viu na aparição no programa Chef’s Table da Netflix uma catapulta para a ribalta. Desde então já teve o seu restaurante principal, a Osteria Francescana (que tem três estrelas Michelin e fica na cidade de Modena, no norte de Itália), a ser considerado duas vezes como o melhor do mundo para o ranking The World’s 50 Best Restaurants. Já publicou vários livros e desenvolveu diversas iniciativas de apoio social e de combate ao desperdício alimentar. Forçado a fechar os seus espaços para bem da saúde pública, Massimo demorou pouco tempo a seguir um conselho da filha, Alexa: por que não mostrar às pessoas aquilo que comem todos os dias? Ou melhor: ensiná-las a fazer tudo isso. Foi assim que nasceu o segmento “Kitchen Quarentine”. Com a regularidade quase diária, Bottura faz diretos a partir da sua conta de Instagram onde ensina — a partir da sua cozinha em casa e com toda a família — a fazer coisas tão simples como um bom ragu italiano ou um tiramisu.
Mudando de continente e seguindo para os EUA é lá que “encontramos” Christina Tosi, outro astro do mundo da gastronomia que a maioria das pessoas pode conhecer como uma das juradas do MasterChef Kids norte-americano. Tosi é chef pasteleira — uma das mais mediáticas das últimas décadas — e grande cérebro por trás da cadeia de pastelarias norte-americana Milk Bar, criação que desde 2008 se transformou num autêntico império de doçaria e guloseimas. Enérgica e imparável, a norte-americana nunca conseguiria ficar completamente sossegada neste contexto é por isso mesmo criou aquilo que chama de “Baking Club”.
De modo geral isto quer dizer que todos os dias, de há umas semanas a esta parte, Tosi ensina diariamente uma receita simples que é explicada também através de um live na sua conta de Instagram — no dia anterior diz que ingredientes são precisos para que 24 horas depois todos possam acompanhá-la enquanto explica os passos que se tem de dar. Os mais distraídos ficam sempre com a opção de consultar as receitas completas no blog da pasteleira.
Ainda nos Estados Unidos encontramos também um espanhol que há muitos anos trocou a sua terra natal por uma carreira de sucesso do outro lado do Atlântico. Até há uns anos pouco se ouvia falar do chef José Andrés, tirando o merecido respeito que tem dentro do mundo da gastronomia, claro. Aos poucos o mundo começou a ouvir falar mais e mais deste homem que em tempos foi despedido por Ferran Adriá muito por culpa do seu espírito de entrega e missão. Das suas mãos nasceu a organização World Central Kitchen, iniciativa que procura alimentar todas as pessoas que se vejam abraços com desastres naturais ou calamidades de qualquer tipo.
https://www.instagram.com/p/B-8a65khCVk/
Talvez seja por causa desta sua grande sensibilidade para com o outro que decidiu batizar o seu programa de culinária online — via Instagram, lá está — “Recipes For The People”. Ainda é um projeto recente, por enquanto só decorreram três sessões, mas já tem milhares de pessoas a acompanhar os cozinhados simples, feitos com ingredientes que qualquer pessoa encontra algures na despensa, que o chef prepara com ajuda das filhas, na cozinha da sua casa. Alguma vez acedeu à morada de uma pessoa que foi capa da revista Time? Esta é a sua oportunidade — e até aprende umas coisas pelo meio.
Em jeito de conclusão resta destacar ainda que Thomas Keller, figura absolutamente incontornável do panorama gastronómico norte-americano há décadas, também já apanhou a moda das receitas caseiras para todo o mundo ver. Quando em 1994 Keller assumiu o restaurante The French Laundry, depois de alguns outros projetos a solo e de uma longa temporada de aprendizagem em França com grandes nomes como Guy Savoy, o panorama gastronómico dos EUA, pelo menos na área do chamado fine dining, mudou radicalmente. Keller modernizou e refinou a cozinha típica dos Estados Unidos (sim, ela existe e é vastíssima e interessante) trabalho que o consagrou como uma espécie de “Papa” da área. É por tudo isto, então, que poder tê-lo a ensinar como se faz um vinagrete, por exemplo, no ecrã do seu telemóvel, é uma oportunidade especial. Ele vai fazendo lives dia sim, dia não, a partir da sua cozinha pessoal, e ensina básicos que todos podemos aproveitar.
Como estes exemplos que aqui aparecem há centenas espalhados pelo mundo inteiro: os de cozinheiros profissionais, de estrelas da culinária televisionada, de especialistas de nicho ou de curiosos que levam a sério o seu hobby gastronómico. Uma rápida pesquisa pelas redes sociais seguramente vai revelar muitos exemplos para se aventurar por conta própria.