“Isto é uma das coisas mais estranhas do elBulli”, diz Ferran Adrià, o mítico chef espanhol que esta segunda-feira foi a figura principal da terceira edição do Estrella Damm Gastronomy Congress, em Lisboa. Na sua mão está o livro “The Family Meal: Home Cooking with Ferran Adrià”, obra que compila grande parte das refeições que o staff do seu (e de Juli Soler, seu sócio) famoso restaurante comia antes do mesmo ter fechado, em 2011. “Venderam-se dois milhões de cópias deste livro e traduziram-no em 14 línguas! É impressionante que este é o livro mais famoso do elBulli… e não tem nada a ver com ele, diretamente”, atira o catalão de 57 anos antes de explodir numa gargalhada. “Comer bien alimenta la alma”, lê-se na página do livro que lhe pediram para assinar.

Já lá vão 17 anos desde a última vez que Ferran esteve por Lisboa. Corria o ano 2002, tinha acabado de se casar e o cenário gastronómico que encontrou no seu destino de lua-de-mel estava dividido em dois: “Só havia ou comida tradicional ou arte culinária[a expressão que usa para se referir à alta cozinha] francesa”. Na manhã em que o Observador esteve com ele, vários jornalistas sentaram-se à mesa para ouvi-lo enquanto se comia um brunch. Na ementa figuravam pratos como uma espécie de consomé de bacalhau com lascas do mesmo e até uma delicada miniatura de Abade Priscos com citrinos, tudo pratos que Ferran seguramente não encontrou nessa última vez que esteve em Portugal.

Como Ferran dizia quando um jornalista lhe pediu para assinar o tal livro, a obra mais bem sucedido a sair do restaurante em Roses, Cala Montjoi, não tem nada a ver com o mítico espaço que foi considerado por cinco vezes (um recorde) o melhor do mundo pelo The World’s 50 Best Restaurants. Isto não significa, contudo, que a forma de pensar, trabalhar e cozinhar do elBulli não se tenha espalhado por todo o mundo, tornando-se numa das mais revolucionárias na história do Ocidente. Basta olhar para o currículo de muitos grandes chefs de hoje para perceber que todos eles são “elbullianos”, como lhes chama Adrià. São estas credenciais que dão ao chef o estatuto que para sempre envergará, mesmo já não estando atrás dos fogões (está totalmente dedicado nos trabalhos da sua elBulli Foundation, que inaugurará nos próximos anos). É isto que lhe dá autoridade para vir à Lisboa que “tanto mudou” dar algumas lições. Aqui estão elas.

Gastronomia é economia e um restaurante será sempre um negócio

Sentado num dos topos da enorme mesa onde todos o ouviam, Ferran vestia-se como sempre faz: calças, t-shirt, ténis e blazer sempre em cores escuras. Na apresentação de cerca de uma hora que fez à sua audiência começou por um tema que tem tudo de óbvio mas tantas vezes, diz o próprio, e deixado para segundo plano: os negócios. “Não pesamos o valor da gastronomia na economia!”, atira logo de início. “Há quatro meses, pela primeira vez na história, Espanha fez um estudo sobre o peso da gastronomia e perceberam que  representa 33% do PIB. Em Portugal deve rondar os 25%, mais ou menos, porque há relativamente menos turismo (apesar de vocês estarem com bastante, até). Isto é incrível!”, explica. Adriá acredita piamente que todos os cozinheiros devem precisam de ter uma formação básica em economia. “Não falo de cursos de dois anos”, conta. Defende que um pequeno curso de um mês onde se esclarecessem conceitos de “estratégia ou visão” é totalmente essencial para contrariar as estatísticas alarmantes:

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“Ontem estava a ler um artigo sobre um restaurante que dá um menu de cinco pratos a 20€ — vai fechar em seis meses. Não se fala da gestão na restauração! 50% dos restaurantes não dura mais que cinco anos. É um drama incrível!”, explica este chef que, entretanto, virou conferencista e professor em Harvard. Ferran vai mais longe afirmando que todos os membros de uma equipa de restaurante (cozinha e sala), devem ter uma noção “de quanto se paga de luz”, por exemplo. Só desta forma se consegue alcançar um patamar de “transparência” que não só faz com que todos consigam trabalhar com responsabilidade económica mas também dá a alguém da sala, por exemplo, a capacidade de saber questionar ao perceber que alguém está a tomar uma atitude mais irresponsável.

Ferran vai transformar o elBulli num centro de investigação e divulgação pluridisciplinar onde tudo girará à volta da comida. ©Matthew Lloyd

“Cheguei ao elBulli em 84 e em 85 já era chef de cozinha, tinha 22 anos. Em 1990, com o Juli Soler, comprei o negócio. Por uma série de motivos fomos enganados e acabámos por fazer uma cozinha de 100 milhões de pesetas… 600 mil euros. Quase nos arruinamos, éramos jovens. Fomos ajudados mas isso mostrou-me que não sabia de números. Sem os compreender não tinha liberdade. Sem isso não podia criar. Isso transformou-me no maluco das contas. Se o controlasse tinha liberdade e podia investir num centro de investigação, por exemplo. Como fiz.”

Conhecer e depois mostrar o teu país!

No início de 2019, Ferran, o seu irmão Albert e outro grande cozinheiro espanhol (radicado nos EUA, neste caso), José Andrés, abriram o “Mercado Little Spain”, um espaço gigantesco, em Nova Iorque, onde se serve o melhor da comida típica de Espanha. “O que é a comida típica espanhola? As gambas à la plancha? Mas os produtos do mar não lidam bem ao serem transportados. O que nos sobra? O gaspacho, tortillas de batata… Só as coisas que viajam bem e que as pessoas gostam”, clamou. Há argumentos que de tão óbvios que são parecem ridículos: conhecer o seu país é um deles. Que sentido faz ter um chef português, a fazer cozinha portuguesas mas não conhecendo os pratos típicos da sua história? Nenhum, claro: “Não podemos falar de vanguarda se não conhecemos as bases. Se não soubermos os estilos, movimentos e a forma como funcionaram, não podemos extrapolar sobre cozinha.”

Adrià reconhece que Portugal tem crescido a um ritmo impressionante no que à visibilidade e qualidade gastronómica diz respeito e isso tem de ser aproveitado. “Estamos num momento único da história em que qualquer país pode ter a sua arte culinária [fazer a chamada “comida de autor” mas com produtos autóctones de cada nação]”, atira. Ora é de essencial importância, então, conhecer as bases e mostrá-las ao mundo. “Portugal, o Governo português e as autoridades do turismo podem ter uma grande palavra a dizer neste campeonato. É preciso saber transmitir [essa identidade gastronómica] com a ajuda do marketing e da comunicação. Não podemos achar que vender o nosso país é algo feio. Só o é quando o fazem com mentiras.” Se dúvidas existirem sobre o potencial desta filosofia basta ver o caso do Peru, em que o governo investiu imenso dinheiro a apoiar e mostrar a sua gastronomia e, à conta disso, hoje podemos estar a ler este texto numa zona qualquer de Trás-os-Montes, por exemplo, enquanto comemos um ceviche.

O que têm de fazer 0os restaurantes e chefs portugueses, então? “Ter paciência e humildade, isso é muito importante. Todos podemos estar muito bem e a seguir muito mal. É a filosofia Kleenex: usar e deitar fora. É preciso ter uma estratégia. As pessoas têm de vir a Portugal, não é Portugal que tem de viajar. É preciso controlar a rapidez com que se cresce.”

Portugal tem produtos “nível dez”, nem no Japão existe melhor

“A cozinha portuguesa tem produtos incríveis, melhores não existem, só iguais. O Japão não tem melhores produtos que a Península Ibérica. Isto é importantíssimo. Eu comi marisco português de nível dez!” — foi esta a primeira reação de Adrià ao debruçar-se sobre aquilo que tinha visto nas poucas (mas intensas) horas que já tinha passado em Portugal. Chegou um dia antes, pelo Porto, e almoçou na Casa de Chá da Boa Nova. O que achou sobre isso? “É o restaurante mais bonito do mundo. Todas as pessoas que amam a gastronomia têm de ir lá, é incrível, de fazer chorar. Carta de vinhos extraordinária, serviço de três estrelas e  comida fantástica. O Rui Paula é fantástico. Este sítio tem uma estrela mas facilmente teria duas.”

O que se faz quando se acaba de provar um menu de degustação? Segue-se para um novo restaurante, claro, desta vez a Marisqueira de Matosinhos. Ficou sentado ao balcão e comeu os tais produtos do mar “nível 10”. “Em Barcelona não há cinco sítios como este”, afirma. Como não há duas sem três seguiu-se mais uma refeição, desta vez no Euskalduna Studio, do chef portuense Vasco Coelho Santos, que juntou uma série de outros cozinheiros portugueses do norte do país. Este espaço que Ferran afirma ter sido impossível de existir há duas décadas — “Um restaurante de comida de autor onde se come ao balcão? Isso era impensável de existir no Ocidente há 20 anos.” — foi dos que mereceu elogios mais rasgados: “Fomos ao Euskalduna e aquilo está a um nível de duas estrelas [Michelin], sem qualquer discussão. Tudo português, ainda por cima.”

Na cozinha do Loco com um Adrià: Albert serviu lagostas gigantes e pão aéreo

Comezainas à parte, Ferran Adrià pareceu genuinamente entusiasmado com aquilo que encontrou (ou melhor, comeu) entre Porto e Lisboa. Aliás, o chef até foi mais longe ao dar a entender que estaria disposto a abandonar o seu hiato/reforma para montar um restaurante em Portugal. Até já sabe os conceitos que exploraria: “Eu abriria já amanhã pelo menos dois conceitos aqui em Portugal. Estou reformado e tal mas se quiserem montar um negócio comigo… [risos]. Um seria de tempura… Por favor! O governo que pague a um rapaz ou a uma rapariga para fazerem um sítio de tempura em Portugal! O outro seria uma  marisqueira de autor, como o Elkano [famoso restaurante no País Basco] com especiarias. Da mesma forma que se põe sal, púnhamos um pouco de caril, por exemplo.” Toda esta qualidade de que fala parece não convencer, contudo, o inevitável Guia Michelin.

O antigo chef do elBulli explica que por muito que seja importante ter noção de que todos os países têm de ter um “limite” de restaurantes de topo (“Uma cidade não consegue suportar mais de 25 três estrelas”), Portugal está longe de chegar a esse máximo. “Quantos stands da Ferrari há em Lisboa?”, pergunta. “Dois”, respondeu-lhe uma cara na “plateia”, e Adrià ripostou de imediato: “Então deviam ter pelo menos dois três estrelas.”

“Quantos restaurantes gastronómicos, de máximo nível, podem haver em Portugal? 100?Quantos restaurantes estrelados há em Portugal? Uns vinte? Só? Mereciam, perfeitamente, uns 100. Pelo que vi, posso garantir-vos.” — e com isto termina o seu raciocínio sobre Portugal.

A novidade é uma pressão injusta

O convidado — ouvido com reverência durante quase uma hora, sem parar — já tinha explicado o enorme handycap causado pela falta de conhecimento na área de gestão, mas que outros problemas assolam o mundo das cozinhas, hoje? A resposta, de forma sintetizada, prende-se com a constatação de um facto: “Os génios da nouvelle cuisine não faziam 25 pratos novos por anos.” O que Adrià pretende transmitir com isto é a ideia de que atualmente (pelo menos desde o tempo em que o elBulli ainda funcionava) criou-se uma escravidão com a novidade.

“Cada artista faz uma grande exposição mais ou menos de cinco em cinco anos. Uma das coisas más que fizemos no elBulli, sobretudo em 94/95, foi servir três ou quatro menus por ano. É uma loucura absoluta”, diz Adriá enquanto brinca com uma cereja que acabaria por devorar (“adoro cerejas!”). Esta obrigação da constante renovação é algo que condiciona a forma de pensar e trabalhar de qualquer cozinheiro e isso prejudica toda a gente. “Obrigamos os grandes cozinheiros do mundo a este tipo de pressão. Isto não pode ser, é impossível”, conta.

O cozinheiro tem de ter a sua liberdade criativa — desde que sustentável –, a partir daí é tudo muito simples: “Os restaurantes têm algo para oferecer, se as pessoas não gostam ele fecha, é simples. Não há que dramatizar. No elBulli eu estava-me nas tintas para o que tu podias pensar. A vanguarda é isto. Achas que mudaria alguma coisa por causa da tua opinião? Digo a tua mas podia ser a da minha mãe! Ela ia lá e não gostava nada. Queria só que eu fosse feliz. A vanguarda é isto.”

O derradeiro jantar no elBulli, antes do encerramento, foi chamado de “A Última Valsa”. É impossível não identificar o “maestro”. ©AFP/Getty Images

A cozinha conceptual vai acabar mas a disrupção nem por isso

Falar de Ferran Adrià é falar do futuro, da mudança, do andar para a frente. É por isto mesmo que o chef também ofereceu a sua opinião sobre aquilo que acontecerá mais para a frente, no mundo da comida. Antes disso, porém, é preciso pensar naquilo que foi mudando (ou não) desde o elBulli. “Foram existindo alguns avanços desde então, a cozinha não é só francesa ou espanhola, é mundial, é uma troca. E claro, posso não estar em Portugal mas sei aquilo que cá se está a passar, graças à Internet. Mas e na mesa? No espaço? No restaurante? Que revoluções existiram?”

Ferran sente que por muito que a maior (e bem-vinda) atenção que se passou a dar ao serviço de sala seja algo de novo, muito pouco ou quase nada mudou, não houve nada de verdadeiramente “disruptivo”. Para ele, disrupção é o trabalho de restaurantes como o Mugaritz, de Andoni Luis Aduriz, que pratica “a exploração da cozinha como arte”. “Nós fizemos o mesmo no elBulli em 97, 98, 99… Vários anos até ao fim. O Andoni pegou nisso e decidiu lutar para continuar a levar essa ideia mais para a frente. Ele faz o que quer. Se ouvisse tudo o que lhe dizem e mudasse os seus pratos não faria o que faz. A maior parte das pessoas não gosta da cozinha dele, mas ele continua. Agora, isto é um sítio no mundo. Diz me outro… O Noma não é tão radical, o [Grant, chef norte-americano do restaurante Alinea] Achat, é mais ou menos… Há uns cinco ou seis assim e no mundo há milhares e milhares de restaurantes. Só cinco ou seis se atrevem a afirmar “não, eu estou-me nas tintas para o que tu dizes”. Isto é maravilhoso.” Infelizmente, porém,  sítios deste género têm os dias contados, isto porque “A Fonte do Marcel Duschamp perdeu o seu efeito depois de ser feita. A cozinha conceptual, o último movimento importante, está no limite.”

No entanto, ainda há esperança na capacidade renovadora e inovador da gastronomia, não é por movimentos bonitos deste género desaparecerem que a tal “disrupção” que Adrià tanto fala desaparece. A neurociência é a próxima paragem. “Uma coisa que pode ser disruptiva: o tema da neurociência, por exemplo. A manipulação do cérebro. Daqui a uns 30 anos vão poder pôr-te um capacete que te vai permitir comer no Mugaritz. Não é ficção-científica, a realidade virtual é um pouco isto, não é? Isto sim é vanguarda, poder comer sem comer — eu não gosto, mas é algo que acho disruptivo.”