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TIAGOCOUTO/Observador

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Entrevista a Ana Gomes: "Quando a Alemanha disser que há eurobonds, os holandeses vão pastar para outras paragens"

Costa disse mata, Ana Gomes diz esfola. Antiga eurodeputada socialista defende que Europa tem de agir já: é make it ou break it. Este é tempo de pôr tudo em suspenso. Quem sabe até as presidenciais.

Se alguém pensasse que o confinamento em casa tinha deixado Ana Gomes mais branda nas palavras que usa, pode ler a entrevista que se segue para perceber que essa ideia é um engano. A ex-eurodeputada continua de língua afiada para criticar o que entende dever ser criticado e ainda por cima tinha mais duas ou três para acrescentar às palavras duras usadas pelo primeiro-ministro à saída do Conselho Europeu de quinta-feira, relativamente aos governantes holandeses. Não só são “their master’s voice”, a expressão inglesa para voz do dono, como irão “pastar para outras paragens” no dia em que a Alemanha mudar de ideias em relação à mutualização da dívida. Isto, claro, se esse dia chegar.

Em entrevista ao programa “Vichyssoise”, da Rádio Observador (pode subscrever o podcast aqui, aqui ou aqui), Ana Gomes diz que estamos num ponto decisivo do projeto europeu (make or break, outra vez em inglês) e que é preciso uma resposta comum com urgência. Também por isso faz uma avaliação positiva quanto à atuação do primeiro-ministro, embora não o deixe completamente sem as orelhas a arder. A ele e a Marcelo, claro. Mas se as presidenciais já foram tema quente da política nacional, nestes dias de pandemia saíram completamente do lume. De tal forma que Ana Gomes até admite que as próximas eleições não se venham a realizar na data prevista: “Estamos em estado de emergência! Está tudo suspenso, até as prestações do crédito vão ser suspensas até setembro”, diz. E assim, deixa mais uma vez sem resposta a pergunta que já um clássico: vai ou não candidatar-se a Belém?

Ana Gomes num país que suspendeu tudo… até as presidenciais?

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Ana Gomes, como é que tem sido esta quarentena? Temos visto alguns diretos televisivos com as famosas estantes a servir de cenário. Tem aproveitado para ler?
Jornais, sobretudo, porque a cabeça não dá para fixar muito mais. Eu devia aproveitar era para escrever, mas ainda me consegui concentrar.

E o que é essa leitura lhe tem trazido, mais preocupações ou mais otimismo?
Muita preocupação. Isto é uma crise sem precendentes. A comparação é a II Guerra Mundial – que eu não vivi mas de que ouvi contar histórias. E, se calhar, do nosso ponto de vista, ainda é pior que a II Guerra, porque o país, como sabemos, não entrou nessa guerra. Mesmo os países que entraram conseguiram manter a produção e passaram a direcioná-la para a guerra. E neste momento, há setores significativos da economia que foram, pura e simplesmente, paralisados. É até difícil que se reconvertam, embora tenha havido já histórias de sucesso de reconversão.

E do ponto de vista pessoal, como é que tem sido gerir estes dias?
Como toda a gente, para além das implicações para o país e para o mundo, que espero que nos levem a mudar de vida em muitos aspetos que precisam de ser mudados, naturalmente que estou preocupada com a minha família. Estou confinada com o meu marido, que é de um grupo de risco, e não posso ver os nossos filhos, não posso ver os nosso netos, e isso é muito duro. Nunca na minha vida, na minha geração, vivemos uma coisa assim.

Sobre presidenciais: "Acha que há condições para haver eleições se estivermos ainda num estado de emergência prolongado? "
Ana Gomes

Foi eurodeputada durante muitos anos. Ficou dececionada com o resultado do Conselho Europeu desta quinta-feira, que deu sinais de que a Europa mais uma vez não está unida, mesmo numa situação de pandemia? Ou já não tinha grandes expectativas?
Fiquei dececionada, mas não o suficiente para desistir. Conheço os mecanismos da Europa e conheço os Die Hards neo-liberais que mais uma vez se fizeram ouvir. Percebo perfeitamente o primeiro-ministro português e apoio-o inteiramente. Procurei, aliás, replicar em língua inglesa (no Twitter) o sentimento da repugnância que ele expressou em relação à forma como o ministro holandês das Finanças se referiu ao “risco moral” das eurobonds – o que, obviamente, não é aplicável.

Mas ficou surpreendida?
Não estou surpreendida porque sei como é que algumas destas pessoas funcionam. Não é razão para desistirmos. Pelo contrário, é para nos unirmos. Neste momento, somos mais do que éramos em 2008 e isto não tem paralelismo com essa crise. É muito mais grave. E se eu já nessa altura achava que era absurda a evocação do risco moral, agora ainda mais. É razão para irmos à luta.

Depois do Parlamento Europeu, Ana Gomes tem-se destacado como ativista anti-corrupção e é apontada como candidata da esquerda a Presidente da República

JOÃO RELVAS/LUSA

Ir à luta e fazer o quê?
Em última análise, fazer aquilo que sugere um conhecido analista alemão, o Wolfgang Munchau: os países que subscreveram a carta que António Costa subscreveu, e que depois deste Conselho Europeu até já serão mais, avançarem eles próprios com uma emissão de coronabonds, conjunta, coisa que não pode deixar de ser tida em conta pelos ministros da zona euro. Aliás, parece que foi a senhora Lagarde a primeira pessoa a falar na possibilidade de eurobonds, o que faz todo o sentido. Eles terão de forçar a mão daqueles que resistem. Quem tem a chave deste jogo é a Alemanha. Os holandeses são só their master’s voice (a voz do dono). No dia em a Alemanha decidir que há coronabonds, os holandeses e os finlandeses e outros que tais, vão pastar para outras paragens.

Pode ser a Alemanha aquele país de que António Costa falava, de que não seria por esse país que esta pretensão iria por aí abaixo?
Ele foi muito diplomata. Eu se tivesse no lugar dele faria exatamente o mesmo. Porque ele sabe, como eu sei, como sabemos todos, que em última análise isso depende apenas da Alemanha, o país mais beneficiado com a zona euro. No dia em que a Alemanha quiser que haja eurobonds, há eurobonds. A Alemanha faz este jogo. Manda os cães de fila para a frente, fica a ver como param as modas (o que é típico não só da Alemanha como da patroa, a senhora Merkel) e depois um dia, decide. António Costa não quer hostilizar a Alemanha, quer dizer as coisas como deve ser. Houve é uns países que se prestaram a receber os epítetos, que ele bem utilizou.

"Os holandeses são só 'their master's voice'. No dia em a Alemanha decidir que há coronabonds, os holandeses e os finlandeses e outros que tais, vão pastar para outras paragens".
Ana Gomes

A Europa aguenta mais este choque? O projeto europeu pode estar aqui em causa?
Acho que isto é make or break para a Europa. Tem de ser muito rápida, a decisão da Alemanha. É um país com responsabilidades acrescidas, por ser o principal beneficiário da zona euro. E não é com manifestações mais ou menos genuínas de solidariedade, como a que ainda ontem víamos num vídeo do presidente Steinmeier, ou em declarações de ministros com a Itália, a Espanha e aqueles que estão a sofrer. É com atos concretos. E um ato que demonstre a solidariedade face a um problema global, e em que precisamos absolutamente de uma resposta.

Os líderes europeus têm falado da necessidade de uma resposta coordenada.
Mais do que coordenada, precisamos de uma resposta comum europeia. Esse tempo é agora. Há medidas importantes que já foram tomadas e que nunca o teriam sido se não houvesse o “ok” alemão. Ursula Von Der Leyen não faria o que fez, designadamente na expansão do Pacto de Estabilidade e Crescimento, se não tivesse o acordo alemão. Mas mais do que isso, é preciso os eurobonds ou coronabonds ou até, se quiserem, os Merkelbonds. Precisamos de uma injeção brutal de dinheiro para sustentar a economia enquanto esta crise dura, como estão a fazer os EUA.

E os eurobonds podem ser essa solução.
A Europa precisa de uma injeção de dinheiro na economia, sem a tal assimetria injusta que permite aos países que têm menos dívida ter juros mais baixos ou até negativos, como é o caso da própria Alemanha, enquanto outros como nós e a Itália pagariam juros absurdos. É para isso que servem os eurobonds: para termos um esquema de mutualização da dívida por média de juros da zona euro que não penaliza uns países mais do que outros, visto que ninguém tem culpa desta crise (ou a ter, temos todos).

E acredita que só com essa emissão de dívida mutualizada é que se pode resolver a crise que se segue?
Sim, mas isso só para medidas que cada estado-membro vá tomar a nível nacional. Depois é também preciso um plano conjunto europeu.

"Nunca na minha vida, na minha geração, vivemos uma coisa assim".
Ana Gomes

O tal plano Marshall, ou plano Von der Leyen?
Na semana passada chamei-lhe Plano Úrsula, chamem-lhe o que quiserem. Mas é preciso isso para o relançamento da economia. Não podemos continuar nos mesmos erros, continuar num esquema turbo-capitalista que desconsidera as implicações na natureza e que depois resulta em situações como esta de contaminação entre animais e seres humanos.

Ouvimo-la aqui a elogiar António Costa no que disse ontem na conferência de imprensa depois do Conselho Europeu. Acha que ele tem condições para ter um cargo de destaque no quadro europeu nos próximos tempos, depois de tudo isto passar? 
Acho esse tipo de especulações completamente extemporâneas. Não interessa nada agora. Isso nem lhe deve passar a ele pela cabeça. Esta crise é de tal maneira abaladora dos fundamentos da própria UE e de cada um dos Estados que não se pode estar com esse tipo de especulações neste momento, e não me parece que isso passe pela cabeça do primeiro-ministro. Eu sou insuspeita porque quando tenho de o criticar também critico, mas quando acho que ele anda bem, digo que ele anda bem.

Em entrevista ao programa "Vichyssoise" da Rádio Observador, Ana Gomes acrescenta críticas às críticas já deixadas por António Costa à Holanda

JOÃO RELVAS/LUSA

E ele anda bem neste contexto de crise?
No que diz respeito ao plano europeu e à atuação no Conselho Europeu, não só pelo que se terá passado lá dentro, mas também pela expressão pública de desagrado relativamente às posições que lá foram expressas, acho que ele andou bem. É exatamente este tipo de capacidade, nomeadamente de calibrar a resposta, como vimos quando poupou a Alemanha e pôs o foco sobre os que tiveram posições mais frontais de desacordo em relação às coronabonds, que alguém se valoriza no jogo europeu. Mas, neste momento, isso está completamente arredado das preocupações dele, e também das nossas. Há outras coisas mais importantes nas quais temos de ser exigentes com o primeiro-ministro.

A nível nacional, devemos ser mais exigentes com o primeiro-ministro ou ele está a cumprir nesta situação de crise tão grave?
Acho que ele está a cumprir, e é essa a perceção que prevalece no conjunto dos portugueses. Ele tem surpreendido pela positiva pela sua presença, pela sua intervenção. Ainda que não seja uma intervenção exclusiva, e bem, também tem dado o protagonismo necessário aos ministros responsáveis pelos diversos setores: Saúde, Economia, Administração Interna, a intervenção da ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, também tem sido extremamente útil e positiva, e ele próprio não se tem furtado a dar a cara. Não quer dizer que não haja coisas que ele possa corrigir, ninguém é perfeito. Não esteve bem há dois ou três dias naquela entrevista à TVI quando ele disse que não havia nenhuma falta de material para proteção dos profissionais de saúde…

Foi demasiado otimista?
Toda a gente está cheia de relatos de pessoal médico a dizer que esse material não existe. O que não dizem é que muito desse material não existe porque em muitos casos o material foi roubado logo no princípio da crise. Ninguém diz isso. Ele existir, existia. Isto também me dizem alguns médicos. Possivelmente foram roubados por alguns desses abutres que há por aí e que estão a tentar ganhar dinheiro com a crise, comercializando por preços imorais algum deste material desviado dos hospitais.

"António Costa tem estado bem. Não quer dizer que não haja coisas que ele possa corrigir, ninguém é perfeito. Não esteve bem há dois ou três dias naquela entrevista à TVI quando ele disse que não havia nenhuma falta de material para proteção dos profissionais de saúde."
Ana Gomes

E o Presidente da República, tem estado à altura deste momento?
O Presidente da República decidiu passar à quarentena auto-imposta e houve mérito nessa decisão: de repente o país acordou todo. Havia muita gente a desvalorizar a ameaça e com essa decisão do Presidente da República toda a gente acordou. Eu falo por mim. Abalou de alguma maneira as consciências no país. Mas ele devia ter feito esse auto-confinamento em Belém, que aliás tem um apartamento. Trabalhei em Belém com o general Ramalho Eanes e sei bem. Em Belém, o Presidente da República podia ter tido acesso a melhores meios de comunicação. Ou seja, o auto-isolamento não se devia ter refletido também numa má comunicação do Presidente com os portugueses. Teria sido importante continuar a comunicar.

Sobre as presidenciais, mantém a porta entreaberta para uma candidatura a Belém, ou esta pandemia pode gerar ainda mais dúvidas na corrida, quer para a candidata Ana Gomes quer para o recandidato Marcelo Rebelo de Sousa?
Respondo a essa pergunta da mesma forma que respondi àquela sobre as aspirações do primeiro-ministro a cargos europeus: acho que é completamente extemporâneo.

É extemporâneo agora, mas a verdade é que o calendário mantém-se, ou não?
Estamos em estado de emergência. Estamos em estado de emergência! Está tudo suspenso, até as prestações do crédito vão ser suspensas até setembro.

As presidenciais também devem ser suspensas?
Agora o fundamental é vencer o vírus, e sabemos que não é uma questão só nacional, é global. Depois veremos em que estado está a economia e o país. A última vez que me fizeram essa pergunta sobre presidenciais, eu disse ‘ainda tanta água vai correr sobre as pontes’. E ainda não estávamos sequer neste isolamento auto-imposto, ainda o país não tinha acordado para a gravidade desta crise. Portanto, não tenho mais nada a acrescentar em relação ao que disse.

Mas o calendário mantém-se, há um mandato presidencial que vai acabar inevitavelmente no final deste ano…
Acha que há condições para haver eleições se estivermos ainda num estado de emergência prolongado?

Então as presidenciais poderiam ser suspensas também, é isso?
Se não tivermos condições para fazer campanha eleitoral, se se mantiverem as medidas de distanciamento social, etc, eu espero que não, espero que já tenhamos ultrapassado isso, mas sabemos lá, não posso excluir nada. Acho que não vale a pena estar a gastar o nosso latim com essa questão neste momento.

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