Ver a mãe a afastar-se do bungalow do ZMar não a deixa confortável. “Mamã!”, grita a criança de 2 anos — pequena demais para a quantidade de brinquedos que traz nos braços. Tem estado irrequieta desde que a polícia a foi buscar, a si e à sua família, a casa às 4h00 da madrugada da passada quinta-feira, 6 de maio. “Só me diz: ‘Mamã, quando é que vamos para casa? Eu quero ir para casa‘”, desabava Sandeep Kaur em conversa com o Observador. Ela gostava de poder responder a essa pergunta. Também ela própria a faz. “Eu não estou feliz aqui“, atira em inglês, num sotaque de difícil perceção.
Não percebe porque é que foi retirada da sua casa em São Teotónio, a cerca de 15 quilómetros do local onde agora está. Uma casa com três quartos, que são para si suficientes para as quatro pessoas e duas crianças que lá viviam. Tem comida — a que tinha nos armários e juntou à pressa na noite em que a polícia a foi buscar — suficiente para alguns dias. Mas pensar o que vai fazer quando acabar, só lhe traz mais perguntas: “Eu sou indiana. Eu quero comprar comida indiana e não posso ir ao supermercado. São as minhas necessidades. Onde é que vou? Como é que vou?”. Perdeu o trabalho porque não tem meio de transporte. Mas há uma pergunta que lhe traz ainda mais preocupação: “Tenho uma bebé. Como é que vou a um hospital, a uma farmácia? É um problema muito grande. A casa funciona, mas preciso de trabalhar”.
A casa, que é neste caso um bungalow de madeira, diz, é boa. O ZMar, acrescenta, também é bom. “É tudo ótimo, mas não para viver”, diz a mulher de 26 anos, para rapidamente acrescentar: “É ótimo para um piquenique, para o fim de semana, para o verão. Isto é um sítio turístico. Com uma bebé e com tanta bagagem, não dá“. Sandeep Kaur ainda teve algumas horas, mesmo que poucas, para arrumar o que tinha na sua casa em São Teotónio e levá-las consigo para o local para onde iam, até então desconhecido. A polícia bateu-lhe à porta por volta das 22h00 da noite e avisou. “Vocês vêm amanhã comigo”, reproduz Sandeep Kaur. Mas às 4h00 da madrugada regressou para os levar, num autocarro, até ao ZMar.
Meteu em malas e sacos tudo o que três anos a viver em Portugal lhe permitiu acumular. Ela, o marido, o primo e um amigo fizeram as malas com o choro da sua filha de fundo. Vontade de chorar não faltava também aos pais. “Isto é um problema muito grande”, vai repetindo Sandeep Kaur a cada palavra que diz. Não sabe como é que vai ganhar dinheiro nos próximos tempos. Sem carro ou qualquer outro transporte possível, não tem como ir trabalhar porque o campo de mirtilos fica a mais de 20 quilómetros dali. A bicicleta que a autarquia disponibilizou a todos os cerca de 30 imigrantes realojados neste eco resort na Zambujeira do Mar de pouco ou nada lhe serve.
Serve para alguns que trabalham em campos agrícolas ali perto. Outros só precisam delas para fazer o percurso, ainda longo para ir a pé, dos bungalows onde estão à entrada do ZMar: é nessa porta que as empresas para as quais trabalham os vão buscar de manhã e trazer de volta ao fim do dia. Não é o caso daquela onde trabalhava Sandeep Kaur.
A vida, agora dificultada pelas circunstâncias, já antes não era fácil: o marido teve de deixar de trabalhar nas estufas de morangos porque tem problemas nas costas. Valia-lhes os 700 ou 900 euros que a mulher de 26 anos recebia consoante trabalhasse oito ou 10 horas. Agora, nem com esse dinheiro pode contar. “Eu não sou uma criminosa. Só quero trabalho. Quero uma casa em São Teotónio. Lá, posso ir ao supermercado a pé, à farmácia”, explica. Até já tinha a promessa de uma vaga numa creche, em setembro, onde podia pôr a filha — que por enquanto ficava aos cuidados do primo.
Agora, olha para os dias que se avizinham com receio. “O futuro não vai ser bom para mim”, antevê. Se não percebe muito bem que requisição civil é esta — feita pelo Governo para colocar cerca de 50 imigrantes no ZMar e na Pousada da Juventude, em Almograve —, quanto mais saber o que significa a decisão do Supremo Tribunal Administrativo de suspender a providência cautelar interposta por vários proprietários de bungalows do Zmar para suspender essa mesma requisição civil.
Neste impasse, vai contando com o apoio da Segurança Social. “Eles dizem que se precisarmos de alguma coisa, escrevemos num papel e depois trazem. Para já, não preciso de nada. Só preciso de uma casa”, afirma. Mas também tem a ajuda dos proprietários que têm ido à sua casa, e às de outros, levar comida a quem precisa, recolher listas de mercearias ou apenas ouvir as suas histórias.
Imigrantes e proprietários partilham todos o mesmo espaço: um bloco de vários bungalows. Partilham ainda a incerteza. Vindos dos locais mais distintos do país, dezenas de proprietários têm ficado ali à espera que cheguem respostas. Também eles foram acordados perto das 3h00 da madrugada desta quinta-feira, 6 de maio: “Os cães a ladrar, a ladrar, a ladrar”.
Elisabete Purvis, de 58 anos, e o marido, Vasco Purvis, de 64, são donos do bungalow mais próximo do portão que foi arrombado pela GNR, na noite em que 28 imigrantes foram ali alojados. “Ainda não tinha adormecido. Estava no telemóvel e começo a ouvir barulho. Abro a janela, eram para aí uns 50 elementos do grupo de intervenção, com metralhadoras e cães“, relata Vasco Purvis, acrescentando: “Eu assustei-me”. Vestiu-se à pressa e saiu porta fora: “Vim cá para fora gritar com eles. Mas era preciso isto tudo? Somos alguns bandidos? É assim que se trata bem imigrantes?”
Sofia Paiva, vizinha do casal, também deu um pulo da cama. Da janela viu aquilo que lhe pareceu ser “um quilómetro de fila: carros da polícia, sirenes, carros de patrulha, o autocarro com os imigrantes”. “Para trazer 28 pessoas?“, questionou na altura e questiona agora. Vive no Porto e está há mais de uma semana no bungalow que comprou no ZMar. “Nós não sabíamos se estavam positivos [à Covid-19], se estavam em isolamento profilático”, comenta Vasco Purvis em conversa com o Observador acrescentando: “A GNR informou-os que eram todos cidadãos livres, estavam todos negativo e, por isso, iam poder circular por onde quisessem”.
Quando o dia amanheceu, alguns proprietários procuraram ajudar os novos vizinhos “para se sentirem integrados e seguros”, nas palavras de Elisabete Purvis. “Da maneira como entraram, pensavam que iam para um sítio onde não os querem. Houve alguns que pensavam que iam ser deportados“, conta. “O olhar deles era um olhar perdido e assustado”, completou o marido, acrescentando que às 6h00 ainda estavam cães da GNR a ladrar.
As dúvidas de Sandeep Kaur são muitas. “Se me levarem para outro lugar? Não sei. Ninguém me diz para onde vou, o que vai acontecer. Não sei o que vai acontecer comigo“, desabafa a imigrante indiana, acabando por regressar ao bungalow que lhe foi atribuído, com a filha ao colo. O seu marido espera-a debaixo do alpendre. Horas depois de ter falado com o Observador, a GNR começou a retirar alguns imigrantes do ZMar. Para onde vão? As dúvidas mantêm-se. Se há certeza neste momento, é essa: nem Sandeep Kaur, nem ninguém sabe o que vai acontecer.
Covid-19. Proprietários do Zmar defendem fim da requisição civil após retirada de imigrantes