Em 1954 um relatório da FAO realça o quase perfeito dispositivo de prevenção e combate a incêndios, gerido pelos Serviços Florestais (SF), que defendia a floresta pública e comunitária portuguesa. O relatório chamava a atenção para o facto da defesa das matas privadas (a larga maioria) ser executada pelos proprietários e populares, sem equipamentos adequados, técnica ou coordenação. A desorganização agravava-se em incêndios de maior dimensão, a que podiam ocorrer unidades militares, alguns corpos de bombeiros e os SF. Dada “a riqueza e importância estratégica para o país” (estávamos em 1954!) recomendava-se que se investisse na gestão das matas privadas e se executassem medidas preventivas, expandindo a este património privado o dispositivo que protegia as matas sob gestão pública.
Após grandes incêndios na década de 50 e 60 (como o de Sintra, onde morreram 25 soldados, em 1966) reuniram-se comissões ministeriais e publicaram-se estudos técnicos, tendo o Estado iniciado a extensão do dispositivo público dos SF à floresta privada, alargando em 3km o raio da sua intervenção para além das matas públicas (20% do país e quase 40% do território a norte do Tejo), também expandindo as redes viária, de vigilância e de meios aéreos. Publicou-se o primeiro diploma legal que definiu o sistema de proteção das florestas, o DL 488/70. Porém, provavelmente devido à falta de recursos financeiros (eram então absorvidos pela guerra colonial cerca de 1/3 do PIB) e à complexidade em atuar na propriedade privada, a resposta do Estado foi lenta, incompleta e insuficiente. Com o 25 de Abril de 1974, outras prioridades de desenvolvimento económico e social surgiram.
Contudo, em 1981 a FAO e o Banco Mundial de novo recomendavam a existência de um sistema profissional de prevenção e combate a fogos, aproveitando as competências técnicas que existiam acumuladas em mais de 100 anos de experiência.
Na sequência das áreas ardidas no final da década de 1970 o poder político, pressionado para obter resultados no curto prazo, encetou uma transformação populista e radical. Em vez de expandir e reforçar um sistema profissional a todo o território (como os estudos referidos recomendavam e outros países, como Espanha, o faziam), o Estado retraiu a sua esfera de atribuições, limitando-se à sensibilização, à detecção e à gestão de áreas públicas e comunitárias.
Doravante, o DL 327/80 atribui aos municípios a responsabilidade de proteção civil e aos privados a gestão dos combustíveis e aceiros. Na área do combate, através da dupla tutela dos recém-criados Serviço Nacional de Bombeiros e Serviço Nacional de Proteção Civil, é dinamizada uma parceria público-privada com as associações humanitárias de bombeiros voluntários, atribuindo-lhe o exclusivo do combate, apesar da sua notória inexperiência e impreparação.
Optou-se assim por municipalizar a coordenação da prevenção e também o combate, uma vez que em cada concelho e em muitas freguesias iam surgindo corpos de bombeiros, aliás em parte dependentes das autarquias. Sem conhecimentos técnicos e apesar das melhores intenções, o sistema evoluiu numa perversa aliança entre municípios e bombeiros, tutelada e financiada pelo Estado, reforçando a cada ano o combate (meios materiais e pagamento de deslocações e de equipas de bombeiros voluntários), em detrimento da prevenção.
Após os incêndios de 1991 e 1995, um outro relatório técnico (Stauber), realça a necessidade de uma estrutura profissional que se dedique à prevenção e ao combate. A Lei de Bases da Política Florestal (Lei n.º 33/96), aprovada por unanimidade e em ainda em vigor, prevê no artigo 10.º, n.º 2, alínea e) uma organização com essas características. Mas, ao mesmo tempo, o Governo decide desmantelar os seus Serviços Florestais centenários! Apesar da redução de importância económica e da expressão territorial da agricultura e do aumento da relevância da floresta e das suas funções ambientais, degradou-se o nível do serviço público (outrora operacional e eficaz), e a máquina burocrática focou-se na aprovação de planos e estratégias virtuais e na distribuição dos dinheiros que chegavam de Bruxelas.
Com o desordenamento da edificação no território, a expansão peri-urbana, o fim da agricultura de subsistência que defendia as aldeias dos fogos, a ausência de gestão activa dos espaços florestais e a desorganização silvopastoril, os incêndios foram ficando cada vez maiores, o que exigiu que o sistema se especializasse nas tarefas de defesa das populações, sem nunca conseguir internalizar e formalizar as competências e standards internacionais de combate aos incêndios florestais.
Em 2003, o sistema colapsa e é lançada uma Reforma Estrutural do Sector Florestal, que procura reunir o compromisso dos agentes, reforçando o papel da prevenção que fica inscrito no novo diploma que define o sistema (DL 156/2004). Em 2005, no âmbito dos estudos técnicos entretanto encomendados pelo Estado à universidade, a proposta técnica do Plano propõe a criação de uma organização unificada que execute a prevenção e também combata incêndios (na linha do que constava da dita Reforma Estrutural).
Outros estudos recomendaram a profissionalização do sistema que deveria proteger a floresta, nomeadamente, relatórios norte-americanos (2003 e 2004), o estudo de 2005 da COTEC (de iniciativa presidencial) e um relatório de peritos chilenos no mesmo ano. Mais uma vez e pressionado para obter respostas no curto prazo, após o desastroso Verão de 2005, o Governo redistribuiu as responsabilidades por três instituições (ICNF, GNR e ANPC) e reforçou a dimensão da proteção civil, conferindo aos municípios mais poderes, nomeadamente a aplicação de coimas a quem não limpar em torno das habitações (o que se viria a revelar inútil, já que os autarcas mostraram uma eficácia quase nula).
Apesar do reforço substancial de meios operacionais e orçamento, do qual resultou a melhoria na eficácia do ataque inicial, de 2010 a 2016 são recorrentes os grandes incêndios. Com gestão ou sem gestão, com montado de sobro ou carvalhal, com eucalipto, pinho ou áreas protegidas, tudo arde, à medida que a proteção civil vai relegando para a 4.ª prioridade a defesa dos espaços florestais. Nestes incêndios, e sem a presença do entretanto extinto Grupo de Analistas e Utilizadores de Fogo, mais uma vez se evidenciam as faltas de conhecimento técnico e capacidade organizacional para grandes ocorrências.
O nosso atraso em adoptar as melhores práticas ressalta quando comparamos o decréscimo de área ardida (medida pela incidência do fogo – área ardida total/área florestal) que países também expostos ao êxodo rural, à falta de gestão florestal e ao agravamento meteorológico conseguiram como Espanha, França, Grécia e Itália. Depois das propostas de 1954, 1965, 1981, 1996 e 2005 que recomendam um dispositivo integrado de prevenção e combate de raiz florestal, o que impede o Estado de assegurar a proteção do maior recurso estratégico nacional? Para mais um recurso que suporta 2% do PIB, mais de 10% das exportações, distribui riqueza por milhares de proprietários e operadores silvo-industriais e que contribui para exportar, em valor, o suficiente para pagar os bens alimentares que anualmente importamos? Como no filme de Truffaut (baseado no romance de Ray Bradbury), estamos alienados e ninguém se importa que o conhecimento impresso nos livros seja queimado a 451º Fahrenheit, a temperatura a que arde o papel? É esta a sociedade do conhecimento?
As soluções possíveis aparentam estar bloqueadas no status quo de um sistema de proteção civil baseado no voluntariado e na fragmentação operacional e administrativa do poder local. A opinião pública, largamente não esclarecida, é levada a acreditar, erradamente, que um problema complexo se resolve com soluções simples, isto é, se houver menos ignições, se houver melhor detecção e mais meios aéreos e, ultimamente, se houver menos eucaliptos!!
Apesar de ineficaz e ineficiente, o sistema – que em 2017 volta a colapsar – “evoluiu na continuidade” com acréscimos marginais decrescentes, renovando e consumindo cada vez mais recursos públicos e com piores resultados. Em Pedrógão o sistema de proteção civil (nacional e municipal) não soube sensibilizar a população, não assegurou que as faixas em torno das habitações e estradas estivessem limpas e, por fim, não foi capaz de ler o contexto onde se estava a desenvolver o fogo (porque não tem essas competências técnicas). Em resumo: não soube reagir adequadamente.
A floresta e os seus proprietários florestais não são desculpa ou a causa. São vítimas de abandono e de políticas públicas que, com a justificação da “defesa da floresta”, apenas servem para financiar outros setores e interesses instalados.
Para o futuro, e realçando as alterações climáticas e a necessidade de proteger as pessoas e a floresta, há que reconhecer os erros e transformar o sistema. Só evoluir não basta, como os mais de 4 milhões de hectares queimados desde 1980 assim o demonstram! À proteção civil o que é da proteção civil. À floresta o que é da defesa da floresta. Dada a natureza do problema (abandono de todo o espaço rural) é necessário ter capacidade para coordenar e executar políticas públicas de longo prazo (na agricultura, energia, ordenamento, floresta e ambiente) que contribuam para reduzir o risco de incêndio, garantir a efetiva execução de programas de redução da carga combustível em escala e em locais críticos e ter um sistema de combate que saiba aproveitar as oportunidades criadas, sendo eficaz na manobra dos meios mobilizados para os grandes incêndios florestais.
A complexidade das causas do problema só pode ser abordada (seja na prevenção, seja no combate) através do uso intensivo do conhecimento científico e técnico que existe nas universidades e é operacionalizado pela engenharia portuguesa, para cada região, mas isso exige o comprometimento do poder político com programas de longo prazo, enfrentar os interesses e a consequente atribuição de meios e responsabilidades. Estarão os partidos representados na Assembleia da República disponíveis para isso?
Esperemos que desta vez haja lideranças que, partindo do conhecimento técnico e científico, saibam ler o tempo e os verdadeiros desafios do país e consigam superar as resistências e os interesses do curto prazo, que desde há décadas impedem a defesa das florestas e a salvaguarda das pessoas e lançam para uma inexorável degradação mais de 2/3 do nosso território. Esperemos que a discussão das grandes opções do Plano e do correspondente orçamento de Estado, dê já um sinal de mudança e compromisso com a transformação que urge iniciar.
Tiago Oliveira é doutor em Engenharia e João Pinho é mestre em Planeamento Regional e Urbano