A cada dois anos, as delegações do PCP cumprem a tradição e visitam as convenções do Bloco de Esquerda. Desta vez não houve convidados de partido nenhum por causa da pandemia — o Bloco mandou, simbolicamente, um link para os partidos de esquerda poderem assistir ao longe — mas não foi por isso que a ‘sombra’ dos comunistas deixou de pairar sobre o Centro de Desporto e Congressos de Matosinhos.

Os bloquistas dedicaram estes três dias de reunião para, de forma mais ou menos subtil, sugerir que os comunistas deveriam ter sido “mais firmes” com o PS e para definir, por contraste com o PCP,  a sua posição em relação ao Governo. A tese do Bloco é clara: se os comunistas não teimasse em dar a mão a António Costa, o PS teria de ceder às exigências da esquerda ou claudicar.

As críticas dos bloquistas tiveram direito a resposta. No Facebook, o deputado do PCP António Filipe mostrou estar atento à convenção e acusou o Bloco de colocar em risco a governação e a estabilidade do país. “Por irónico que possa parecer, se podem fazer esse discurso [crítico em relação ao Governo] devem-no à atitude responsável do PCP.”

Isto porque, recordou o comunista, “se o PCP tivesse feito o mesmo” — mais: se tivesse “juntado os seus votos à direita e ao BE” — o país estaria a “viver com os duodécimos de 2020”, com cortes nos salários dos trabalhadores em lay-off e o SNS “mais à míngua”. Mas mais: “Sabe-se lá com que Governo” viveria então o país — e “que discurso” faria então o BE. “Mas também ninguém pergunta”.

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Estratégias diferentes à esquerda

Apesar de nunca se terem sentado à mesma mesa de negociações, os dois partidos estão atentos e utilizam a posição um do outro para se definirem em relação ao PS. Desta vez, num momento de particular tensão: pela primeira vez desde o arranque da ‘geringonça’, no último Orçamento do Estado votaram de formas diferentes, com o PCP a viabilizar o documento e o BE a votar contra. Os comunistas entendem que o Bloco desistiu de lutar; os bloquistas acreditem que o PCP ofereceu a estabilidade política de bandeja.

Esta semana, o clima à esquerda já tinha começado a aquecer — e as comparações também. Primeiro, pela voz do PCP: dias antes da convenção bloquista, os comunistas marcavam uma conferência de imprensa para fazer exigências ao PS relativas à execução orçamental e para acrescentar uma crítica com destino direto ao BE. “A ação e posicionamento do PCP não se confundem com os que abdicaram de intervir e lutar para vencer resistências e opções do PS”. O PCP colocava assim o Bloco no plano da desistência — uma acusação que não parecia muito diferente da acusação de “deserção” que o PS tem lançado aos bloquistas.

Essa clivagem marcou naturalmente esta convenção. Para os bloquistas, a força que falhou para obrigar o PS a ir mais longe — a nível orçamental e não só — terá sido mesmo a do PCP: “Na negociação anterior, se toda a esquerda tivesse sido firme, teria sido possível alterações importante na legislação laboral. Teria sido possível impor ao Governo uma prestação social consistente que garantisse que ninguém ficava para trás nem abaixo do limiar da pobreza no contexto da crise e das restrições à economia”, dizia o líder parlamentar interino, Jorge Costa, em entrevista ao Observador.

“Não há razão para a queda do Governo ou para uma crise política”

A constatação sobre os incumprimentos do Governo a nível orçamental — que foi, de resto, uma das razões apontadas pelo Bloco para virar as costas ao Executivo no último OE — foi incluída logo no discurso de Catarina Martins no arranque da convenção: “Nas discussões com o Governo ao longo do ano passado, conseguimos bons compromissos. Mas não foram cumpridos. Não foi feito o que tinha que ser feito. Por isso, se nos dizem que basta a palavra dada, lembro que a palavra vale desde que leve a decisões no tempo certo”. É essa exigência, diz o BE, que o PCP não está a provar ter.

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Horas antes do arranque oficial dos trabalhos, numa entrevista ao Observador que serviu também para lançar esta convenção Vichyssoise, Pedro Filipe Soares — líder parlamentar, atualmente a gozar licença de paternidade — ironizava. “O BE definiu o seu voto num OE que achámos que não estava à altura de um voto favorável. O PCP teve uma opinião diferente e atualmente está diariamente a criticar a execução do Governo… Constato é essa realidade: diariamente, ouvimos os dirigentes do PCP a fazer essa crítica. Ora já tínhamos alertado para estas insuficiências várias.”

Questionado sobre se o Governo escolheria manter uma posição que o BE classifica como “arrogante” e “autossuficiente” por sentir que continua a ter boas hipóteses de chegar a entendimentos com o PCP, o líder parlamentar chegou a sugerir que sim, que Costa dava os comunistas como adquiridos. “Admito que há contas que são feitas e Costa, do ponto de vista do jogo político-partidário, tem demonstrado ser bastante hábil e essa calculadora deve andar sempre com ele. No entanto, o país exige muito mais do que meras contas de mercearia política”.

Na convenção, também em conversa com o Observador, insistiu: se a esquerda fosse firme nas negociações, mas a esquerda toda — leia-se PCP — seria possível obrigar o PS a mexer, por exemplo, na legislação laboral, um dos principais pontos de desacordo à esquerda e uma das condições do Bloco para olhar para o futuro Orçamento.

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Gusmão deixou apelo, mas clima está azedo

Este domingo, dia final de convenção, houve uma só voz que subiu ao palco para estender a mão ao PCP: foi o caso de José Gusmão, eurodeputado, que defendeu que para a esquerda poder ser “exigente”, os partidos têm de “falar melhor entre si” e assim “falarem mais alto” com o Governo, juntando-se para usar na prática a “força” que a esquerda tem.

No entanto, feito o balanço de uma convenção que está a terminar, Gusmão soou a uma voz isolada: nem do lado do BE nem do PCP parece haver uma estratégia de entendimento à esquerda, mesmo que até insistam nos mesmos dossiês — a aposta tem passado mesmo por mostrar que a opção do vizinho é que está errada.

O Bloco continua convicto de que tomou a decisão certa quando anunciou o voto contra o OE — nessa altura, já com a garantia de que o documento seria viabilizado com os votos do PCP – e retira das sondagens mais recentes que, apesar do tropeção presidencial (Marisa Matias teve menos de metade dos votos que tinha conseguido em 2016), a estratégia foi a correta e o padrão das intenções de voto não mudou.

De novo, também por comparação com o PCP: como dizia este sábado Marisa Matias em entrevista ao Observador, o partido entende que se a votação nas presidenciais fosse um “castigo” por causa do Orçamento, então o candidato do PCP, João Ferreira, teria saído reforçado — e isso não aconteceu.