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Passar horas a milhares de metros de profundidade, no escuro e a baixas temperaturas, só para ver os destroços de um navio. Atravessar a Patagónia de mota ou escalar o monte Evereste. Ou, mesmo num sítio paradisíaco, levar o corpo ao limite para tentar perceber como se sobrevive numa ilha isolada durante dias. Para quem só quer férias para descansar, exemplos destes podem parecer descabidos, mas há quem ambicione colecionar experiências deste género. E, quanto mais distante se estiver do conforto do dia-a-dia, melhor.
É a lógica de fazer o que ainda não foi feito – ou aquilo que ainda só foi feito por um grupo restrito de pessoas. Por isso, há quem abra os cordões à bolsa e gaste centenas de milhares ou até mesmo milhões em experiências extremas, que hoje em dia até já podem ultrapassar os limites da Terra.
É o chamado turismo extremo, uma vertente do turismo de aventura, mas que quebra as barreiras do comum passeio quando se fala de preços e de risco associado. Neste campo, experiências como viagens ao espaço ou a descida ao oceano profundo são alguns dos exemplos mais conhecidos.
O desaparecimento do submersível Titan durante uma expedição para ver de perto os destroços do Titanic deu destaque a este género de experiências, fora do alcance do comum dos mortais. Mas, afinal, o que move a elite a testar os seus limites desta forma? Não é uma questão linear de explicar, mas o mercado está em expansão.
“Quando temos tudo, temos tendência a acrescentar o que nos falta”, explica Mónica Seabra-Mendes, diretora do programa de Gestão de Luxo da Católica Lisbon Business & Economics e fundadora da plataforma Affluencial. E, para este tipo de turista multimilionário, “se não tiver perigo real, não tem piada”. “É um banho de realidade, o diametralmente oposto [da vida habitual]. É esse o gozo, o saber que se é capaz.”
O que move um turista de luxo mais aventureiro?
A vontade de explorar e a curiosidade em relação ao desconhecido sempre fizeram parte da natureza humana. As viagens para locais remotos ou a tentativa de explorar as profundezas do mar não são novas, mas existiam numa lógica de exploração científica. Mas há quem esteja a retirar a componente científica às expedições e a transformá-las em turismo puro. A OceanGate, a empresa responsável pelo submersível Titan, é apenas um dos exemplos de companhias a explorar o fundo do mar com meros curiosos (e endinheirados).
Mas, afinal o que é move um turista com um grande poder de compra a querer uma experiência que desafia os limites? “São fatores diferentes uns dos outros”, começa por explicar Francisco Silva, subcoordenador do mestrado em Turismo da ESHTE. “Em termos gerais, precisamos, numa primeira fase, de ter as nossas questões básicas asseguradas; quando as temos todas continuamos em busca de alguma coisa.” Num cenário em que alguém já “fez milhões e tem tudo o que dá no dia a dia algum conforto”, o que acontece é que “a vida pode entrar um bocadinho na banalidade”. “Por isso procuram na viagem, na descoberta, nos desportos, questões como adrenalina, aventura, o desconhecimento, as grandes emoções.” Além disso, admite que as pessoas “querem fazer coisas diferentes”, já que “é uma forma de se valorizarem e de se projetarem.”
“Ir fazer uma viagem espacial, para além da enorme experiência, é ter algo na sua memória que é como se fosse um quadro ou um diamante raro – algo que a maioria dos seres humanos não consegue fazer ou ter. E, nós seres humanos, também somos muito motivados para nos diferenciarmos uns dos outros. “
Nuno Abranja, diretor do departamento de turismo do Instituto Superior de Lisboa e Vale do Tejo, reconhece que “as práticas turísticas que desafiam as pessoas ao seu extremo já acontecem há muitos anos, até para visitas a cenários de guerra”. Tudo sempre associado a um “público com maior poder de compra”. “É prática as pessoas pagarem bastante” pelas viagens, explica, até “pelos seguros e equipamentos de proteção”.
Mónica Seabra-Mendes, da Católica Lisbon Business & Economics e fundadora da plataforma Affluencial, acrescenta outro tema às motivações: as redes sociais. Antes, quem fazia experiências raras só podia partilhar “num círculo restrito”, entre os amigos e a família. “As redes sociais também permitem mostrar o estatuto do que eu faço e não só o que eu tenho.”
Nem todos os milionários têm o mesmo apetite por adrenalina
A partir do momento em que o turismo começou a tornar-se cada vez mais especializado e segmentado, começaram a desenvolver-se teorias para categorizar os diferentes tipos de turistas. A teoria de Plog, criada pelo investigador Stanley Plog, é usada há décadas para distinguir os perfis dos viajantes.
“Plog foi um pouco como que um pioneiro, é um dos autores mais conhecidos na tentativa de dividir e categorizar o perfil dos turistas”, refere Francisco Silva, da ESHTE. “Dividiu-os em três grandes grupos, sendo que os alocêntricos ou aventureiros é um grupo que, mesmo assim, é muito amplo.”
“O perfil mais comum das pessoas que praticam este turismo extremo é o alocêntrico”, explica Nuno Abranja. “São as pessoas que procuram os desafios, adrenalina, os confins das origens, procuram realmente algo que não está massificado”, seja por “razão de desafio da sua própria personalidade ou eventualmente até por uma razão social”. Habitualmente, viajam mais e para mais longe e escolhem destinos “que não são tão comercializáveis”.
Do outro lado do espectro estão os turistas psicocêntricos, “as pessoas que fazem férias sempre no mesmo local em locais que são conhecidos, que são seguros e que não arriscam nada.”
A grande maioria dos viajantes está algures entre os dois pólos, os chamados turistas mediocêntricos, que “podem num momento fazer um turismo mais arriscado e no outro fazer um menos arriscado.” Nuno Abranja dá alguns exemplos: quem faz as chamadas férias “sol e mar para descansar no verão” mas que faz “safaris no inverno, algo que desafia mais”.
Turistas de luxo em Portugal não pedem aventuras ‘fora da caixa’
Ser-se um turista alocêntrico não é necessariamente sinónimo de se querer embarcar em aventuras como a expedição para ver os destroços do Titanic. A Quintessentially, empresa global dedicada à gestão de lifestyle e focada no mercado de luxo, nunca teve tantos membros como agora. O número é “mantido em segredo”, já que “um dos principais pilares da relação com os membros é a privacidade e a confidencialidade”, explica Paulo dos Santos, o ponto de contacto para o mercado português.
Há uma lista de espera em Portugal para se ser membro deste grupo e aceder a serviços especializados de concierge, viagens ou eventos. Quem tiver um amigo ou conhecido que já seja membro tem prioridade.
Paulo dos Santos conta ao Observador que, “o negócio é relativamente pequeno” em Portugal. “É um país pequeno, somos só dez milhões. Uma boa parte dos nossos membros em Portugal hoje em dia não são portugueses, são pessoas que se mudaram para Portugal pela qualidade de vida que o país oferece.” O cliente português representa “se calhar menos de 20% da base de clientes locais”. Angola é um “dos mercados mais fortes”, mas também há “suecos, pessoas da Geórgia, americanos, brasileiros… é um bocadinho diverso”.
Globalmente, a Quintessentially já recebeu pedidos de experiências extremas, mas “são relativamente pequenas em termos de percentagem”. “Aquilo que assistimos é que, cada vez mais, os membros querem experiências únicas, mas querem privacidade.”
Em Portugal, não há grande apetite por aventuras extremas, pelo menos entre os membros da Quintessentially. “Entre os membros baseados em Portugal não temos nada que seja fora da caixa. Mas em termos de membros globais sim.”
“Nunca tivemos nenhum pedido, nem em Portugal nem a nível global, para uma experiência de submersível” como a do Titan da OceanGate. “Tivemos membros que já fizeram a viagem ao espaço, outros que, na altura assinaram primeiro com a Virgin Galactic, do Richard Branson, mas depois os processos foram demorados e acabaram por não acontecer.”
Depois de um percurso acidentado, só na próxima semana é que a Virgin Galactic vai iniciar as viagens regulares ao espaço. A discrição gere o negócio, mas Paulo dos Santos admite que tem aumentado o interesse de membros globais por estas viagens regulares da Virgin, que rondam os 450 mil dólares (413,6 mil euros) por pessoa.
A implosão do Titan pode travar o mercado destas experiências?
Não há uma bola de cristal para prever se o incidente com o submersível Titan, em que morreram cinco pessoas, incluindo o CEO da OceanGate, pode afastar quem tem mais posses deste tipo de experiências.
Nuno Abranja acredita que este “episódio não será nada positivo para este tipo de turismo”. Mas também há quem tenha opiniões diferentes sobre o assunto. “Vai sempre haver pessoas a querer fazer coisas mais ousadas, até pela questão do desafio”, refere Francisco Silva, da ESHTE. “Há pessoas a fazer turismo de guerra, há um bocadinho turismo de nicho para praticamente tudo.”
O subcoordenador do mestrado em Turismo recorre ao exemplo da subida ao Evereste. “Todos os dias morrem pessoas a fazer desportos de aventura extremos. A quantidade de pessoas que morre a subir os pontos mais altos do mundo e, particularmente o Evereste, é muito significativa.” Já nesse cenário “o risco é muito grande e é cada vez mais para uma elite, porque o investimento é brutal, é muito caro”, além da “exigência também física e psicológica significativa”. Francisco Silva argumenta que “não é por existirem mortes ou acidentes muito graves numa única expedição que impede quem quer participar”. “Isto é mais ou menos a mesma coisa.”
Paulo dos Santos, da Quintessentially, acredita que, “provavelmente” o incidente do Titan até se possa traduzir em mais atenção a estas aventuras extremas. “Obviamente que ninguém gosta de ir para uma experiência e acabar por morrer nela. Mas acho que, no caso do submersível, o mercado vai abrir mais.” O responsável da empresa teoriza que “provavelmente as regras vão mudar em relação ao que são os certificados necessários para fazer este tipo de aventuras ou experiências”, mas que, por outro lado, “o ser humano gosta deste tipo de desafios.”
“Apesar do desastre, não acho que vá reduzir o mercado. Acho que, pelo contrário, vai haver uma corrida para alguém fazer submersíveis que sejam seguros”, acredita.
Jovem de 19 anos que viajou com o pai no Titan estava “aterrorizado”. Só foi porque era Dia do Pai
A vontade de ficar para a História, do fundo do mar até ao espaço
Há nomes da lista dos mais ricos que não quiseram ficar apenas pela participação em aventuras mais radicais e criaram as suas próprias empresas na área. Richard Branson, Elon Musk e Jeff Bezos são alguns dos nomes mais conhecidos a jogar neste campeonato.
“Recentemente este tipo de turismo começou a interessar aos multimilionários, que tentam de alguma maneira desafiar-se a si próprios para criar projetos que possam ficar na história”, explica Nuno Abranja. Dá como exemplo Richard Branson, que anda “há anos a tentar fazer do turismo espacial uma prática”. “Acredito que, para muitos destes multimilionários, [empresas destas] são brinquedos, são desafios. Como têm acesso aos recursos podem fazer algo do género.”
Nuno Abranja acredita que a principal motivação destes magnatas “não será a de lucrar, porque investem muito para que estas coisas se desenvolvam”. “Procuram essencialmente ficar na história, procuram a fama… Vamos acreditar que muitos deles são nobres ao ponto de sentirem que querem fazer algo para melhorar a humanidade.”
Elon Musk, da SpaceX, tem sido um dos mais ativos a argumentar que quer a exploração espacial para colonizar Marte. Criou o programa espacial da companhia em 2001 e, especialmente nos últimos anos, a empresa tem estado empenhada no desenvolvimento de um foguetão reutilizável. No ano passado, a SpaceX também já assegurou viagens até à Estação Espacial Internacional (ISS, em inglês). Três empresários, Larry Connor, Mark Pathy e Eytan Stibbe pagaram cada um 55 milhões de dólares (50,5 milhões de euros) por um lugar na viagem e estadia na ISS.
Curiosamente, mesmo sendo uma das poucas pessoas no mundo a ser dono de uma empresa de exploração espacial, Musk ainda não foi ao espaço, ao contrário de Jeff Bezos ou Richard Branson. Ambos já ultrapassaram, em 2021, a Linha de Kármán, que fica a 100 quilómetros de altitude em relação ao nível médio do mar. Nos Estados Unidos, de onde partem muitas destas missões, o limite convencionado para considerar alguém um astronauta dita que tenha de se ultrapassar os 80 quilómetros de altitude.
O primeiro multimilionário em 2021 a alcançar o tão ambicionado estatuto foi Richard Branson, a 11 de julho, a bordo da VSS Unity, da sua Virgin Galactic. Branson chegou aos 86,1 quilómetros de altitude. A aeronave tinha capacidade para levar seis pessoas a bordo, além dos dois pilotos. Nessa altura, a companhia explicava que tinha já 600 reservas feitas para as próximas viagens.
Passados quase dois anos desde que Branson foi ao espaço, a primeira missão comercial da Virgin Galactic está planeada para a próxima semana, numa janela temporal que vai de 27 a 30 de junho. As próximas missões estão programadas para o “início de agosto” e depois são esperados voos com uma periodicidade mensal.
Mas, ainda antes de tentar tornar-se um astronauta, Branson demonstrou vontade de explorar o fundo do mar, com a Virgin Oceanic. A empresa foi anunciada em 2011, como parte do sonho do britânico para alcançar os pontos mais inóspitos do planeta, incluindo os oceanos mais profundos. O sonho ficou pelo caminho e Branson concentrou-se nos esforços ligados ao espaço.
Jeff Bezos, o fundador da Amazon, fundou a Blue Origin em 2000. A 20 de julho de 2021, dia em que se assinala o aniversário da ida do Homem à Lua, Bezos entrou na cápsula New Shepard e alcançou a Linha de Kárman, numa expedição em que esteve acompanhado pelas pessoas mais nova (Oliver Daemen, de 18 anos) e mais velha (a pioneira da aviação Wally Funk, de 82 anos) a ir ao espaço. Na Blue Origin, um voo que dê o estatuto de astronauta pode custar entre 200 a 300 mil dólares por pessoa.
Em agosto do ano passado, Mário Ferreira, empresário da Douro Azul e da Mediacapital, tornou-se no primeiro português a ir ao espaço, justamente numa missão da Blue Origin, a 22.ª. Esteve durante anos inscrito para participar nesta aventura.
Um recorde, os 3.600km/h e a resposta aos críticos. A viagem de Mário Ferreira ao limite da Terra
Não chegou a ir na mesma missão que Hamish Harding, o empresário britânico que morreu a bordo do Titan, no Atlântico, mas cruzou-se com o explorador, que fez a 21.ª viagem da Blue Origin, em junho. O português chegou a ter bilhete reservado para ir na expedição da OceanGate, mas acabou por desistir. “Ganhei uma vida, mas perdi um amigo”, disse durante uma entrevista na TVI, esta quinta-feira.
Quando viu as imagens do interior do submersível Titan com mais detalhe, Mário Ferreira diz que sentiu “um calafrio”. Lembra-se de ter dito que não sentia “segurança na estrutura deste casco”, explicou sobre as razões que o levaram a mudar de ideias e a desistir da viagem para ver os destroços do Titanic.
Independentemente do motivo que faça o coração dos milionários bater mais depressa na procura por experiências cada vez mais extremas, e até dos desastres que possam acontecer pelo caminho, a exploração do fundo do mar ou o desconhecido do espaço vão continuar a flutuar no imaginário — mesmo de quem não tenha orçamento para estas aventuras.