Uma queixa em 1984. Outra em 1995. Uma carta ao bispo em 2003. Outra em 2005. E uma denúncia formal em 2009. Durante vinte e cinco anos, a Igreja Católica no Chile foi cega, surda e muda e preferiu não ouvir as graves acusações proferidas contra um dos seus grandes heróis. Não era possível — pensavam tanto a hierarquia como os fiéis — que o célebre padre Fernando Karadima, considerado por muitos um “santo vivo”, o maior angariador de vocações do país e o grande dinamizador da fé entre os jovens, fosse pedófilo.
Mas era.
Entre 2009 e 2010 — período marcado pela eclosão dos escândalos da pedofilia entre o clero na Irlanda e na Alemanha —, o caso de Karadima chegou ao Vaticano, que rapidamente percebeu que tudo era verdade. No ano seguinte, a Santa Sé considerou-o formalmente culpado e condenou-o a “uma vida de oração e penitência”. No país-natal, a justiça civil reconheceu a veracidade dos crimes, mas nada pôde fazer, uma vez que todos os delitos denunciados já haviam prescrito.
Fernando Karadima, criminoso condenado pelo Vaticano, ficaria assim, solto para viver mais uma década em liberdade, paz e sossego. Morreu na segunda-feira aos 90 anos, sem nunca ter enfrentado a justiça civil chilena. Na década que passou em liberdade, porém, Fernando Karadima continuou a lançar ondas de choque no Chile e, mais recentemente, na Igreja Católica a nível global. Foi o reacendimento do caso em 2018 que pôs o Papa Francisco sob fogo, obrigando-o a um pedido de desculpas público, que levou à demissão em massa de todos os bispos chilenos, que motivou a expulsão definitiva de Karadima e que contribuiu decisivamente para que o chefe da Igreja Católica desse um murro na mesa, erguesse a voz e convocasse os bispos de todo o mundo ao Vaticano para discutir o problema dos abusos sexuais no clero — cimeira que motivou, ao longo dos últimos dois anos, a mais completa revolução interna da estrutura eclesiástica no que toca ao combate à pedofilia.
Um santo vivo
Recuemos 90 anos. Fernando Karadima nasceu a 6 de agosto de 1930 em Antofagasta, no norte do Chile, mas mudou-se ainda durante a juventude para a capital do país, Santiago, a mais de mil quilómetros a sul do lugar de nascimento. Foi lá que, desde cedo, se envolveu nas atividades religiosas do ramo jovem do movimento da Ação Católica, à época liderado no Chile pelo célebre padre jesuíta Alberto Hurtado (que viria a ser canonizado em 2005 por Bento XVI), que tinha como objetivo promover a disseminação e a influência da fé cristã e da Igreja na sociedade civil.
O jovem Karadima foi um dos muitos chilenos que, naqueles anos de grande dinamismo religioso, acabaram por entrar nos seminários católicos.
Estudou no seminário da arquidiocese de Santiago e foi ordenado padre em 1958, com 28 anos. Logo no início da atividade sacerdotal, trabalhando numa das mais seletas paróquias do centro da capital chilena, construiu uma reputação inigualável no contexto eclesiástico do Chile. Na década de 1980, foi-lhe confiada a paróquia de El Bosque, num dos lugares nobres da cidade, ponto a partir do qual Karadima consolidou o seu poder.
No centro da cidade, o padre Karadima atraiu dezenas de jovens à Igreja e conseguiu transformar a paróquia de El Bosque num dinâmico centro pastoral e num autêntico berço de vocações. Vários jovens católicos optaram pela via do sacerdócio devido à influência de Karadima — e foi precisamente a partir daí que o sacerdote começou a tecer uma poderosa teia de influências dentro da estrutura eclesiástica. Por um lado, porque rapidamente se assumiu como o maior angariador de vocações da Igreja chilena; por outro lado, pelo menos cinco dos seus pupilos chegariam em pouco tempo a bispos, alguns deles a posições de relevo na hierarquia, ficando em lugares-chave para o protegerem quando o seu lado mais negro viesse a lume.
Com o passar dos anos, Karadima adquiriu uma relevância excecional na Igreja Católica chilena. Responsável pela conversão de jovens, pela transformação da fé entre os mais novos e pela angariação de dezenas de novos padres, passou a ser considerado uma espécie de “santo vivo” — e o padre não hesitava em usar o argumento de que havia conhecido pessoalmente e privado intimamente com Alberto Hurtado para intensificar esse sentimento entre a população. Autêntico ícone e símbolo do catolicismo chileno, Fernando Karadima tinha aquilo a que a Igreja Católica chama “fama de santidade” — um dos primeiros critérios para o Vaticano canonizar alguém. Na prática, já era considerado um santo ainda antes de morrer, e poucos tinham dúvidas de que a canonização fosse o caminho lógico quando morresse. Sobretudo entre a elite católica chilena, Karadima representava tudo aquilo que um padre devia ser.
Por isso, nem a hierarquia nem os fiéis quiseram acreditar quando um conjunto de jovens se chegou à frente, ainda na década de 1980, para dizer que por trás de toda aquela fama de santidade estava, na verdade, um padre pedófilo, abusador e manipulador.
A queda ao fim de 25 anos de denúncias
A máscara só caiu em 2010, quando quatro homens moveram um processo nos tribunais civis contra Fernando Karadima, à época já com 80 anos, alegando que o “santo vivo” tinha abusado sexualmente deles durante décadas. Os quatro chilenos fizeram parte da elite de jovens formados por Karadima na década de 1980 e, durante vários anos, suportaram os abusos. Porém, quando decidiram falar em público contra o idoso sacerdote, a opinião pública voltou-se contra eles: simplesmente, não era possível que tivessem razão. Karadima nunca o poderia ter feito.
Todavia, aconteceu — e o processo movido em 2010 não só permitiu concluí-lo rapidamente, como também revelou a inação da Igreja ao longo de mais de duas décadas.
James Hamilton, um médico de 44 anos que falou publicamente sobre os abusos que sofreu da parte de Karadima e um dos quatro subscritores do processo contra o sacerdote, explicou ao The New York Times em 2010 como tudo aconteceu. Fascinado pela figura de Karadima, Hamilton entrou na esfera de influência do padre ainda com 17 anos, quando foi escolhido para participar nas atividades da Ação Católica. Fernando Karadima tornou-se no seu conselheiro espiritual e na sua principal figura de referência, um “representante de Deus sobre mim”, como o próprio Hamilton descreveu. Porém, logo nas primeiras semanas, Karadima começou a abusar de Hamilton: primeiro com beijos na boca, depois com toques nos genitais, que o jovem tentava evitar. Os abusos evoluíram e mantiveram-se durante duas décadas.
Outra das vítimas, o empresário Juan Carlos Cruz, de 46 anos, explicou àquele jornal na mesma altura que também foi atraído por Karadima aos 17 anos, na década de 1980, mas num período de especial fragilidade: após a morte do pai. O relato é semelhante ao de Hamilton: os beijos na boca, os toques nos genitais e o controlo psicológico. “Este homem tinha poder total sobre mim”, disse Cruz ao The New York Times. “Eu só queria cometer suicídio, mas não tive coragem suficiente para o fazer e não queria fazer isso à minha mãe.”
A entrada da queixa assinada pelos quatro homens na justiça civil permitiu reconstituir uma história de queixas caídas em saco roto ao longo de mais de duas décadas.
No julgamento, um publicitário que passou a juventude na esfera de influência do padre Karadima revelou que, em 1984, ele e um grupo de paroquianos enviaram uma carta ao então arcebispo de Santiago, Juan Francisco Fresno, na qual explicavam os detalhes da “conduta imprópria” de Karadima com os jovens. Porém, a queixa não chegou longe. Em tribunal, o publicitário explicou que procurou saber que seguimento tinha sido dado à denúncia, mas que soube, através de uma pessoa que trabalhava no gabinete do cardeal, que a carta tinha sido “rasgada e deitada fora”.
Na década de 1980, Fernando Karadima estava no auge da sua popularidade e alimentava a Igreja Católica chilena com novas vocações como nenhum outro líder religioso. A instituição não se podia dar ao luxo de pôr a sua credibilidade em causa devido a queixas de abuso sexual contra a sua maior figura nacional.
A atitude manter-se-ia ao longo das décadas seguintes. Em 1995, foi a vez de José Murillo, um jovem paroquiano de El Bosque com 19 anos, confrontar o próprio Karadima devido aos abusos que sofria. Murillo contou, anos mais tarde, em tribunal que a resposta chegou na forma de ameaças verbais e físicas, por parte de Karadima e de um dos seus discípulos mais fiéis, o padre Andrés Arteaga, que mais tarde viria a ser elevado a bispo. “Eles humilharam-me e Arteaga tratou-me mesmo muito mal, questionando a minha inteligência e dizendo-me que eu devia deixar de estudar filosofia e passar a estudar teatro, e que devia ouvir mais o que dizia Karadima”, disse Murillo ao tribunal.
“Eu parei-o e saí [do quarto] a chorar”
O episódio concreto que dera origem ao confronto era consistente com os relatos de Juan Carlos Cruz e de James Hamilton. Tudo aconteceu quando Karadima chamou Murillo ao seu quarto para a confissão e deu um copo de uísque ao jovem para o “relaxar”. O padre começou, depois, a ouvir a confissão de Murillo enquanto lhe tocava na perna e nos genitais, lhe abria a braguilha e o procurava masturbar. “Eu parei-o e saí a chorar”, disse Murillo em tribunal, de acordo com as declarações citadas à época pela imprensa norte-americana. Durante parte do abuso, esteve presente um bispo, que Murillo não identificou.
José Murillo não desistiu de tentar levar Fernando Karadima à responsabilidade e, em 2003, escreveu uma carta ao cardeal Francisco Javier Errázuriz, entretanto nomeado arcebispo de Santiago, a denunciar todos os abusos. No ano anterior, o escândalo “Spotlight”, nos Estados Unidos, tinha chamado a atenção a nível global para o problema da pedofilia na Igreja Católica e forçado várias estruturas religiosas a admitirem o problema e a reforçarem as suas normas internas de prevenção. Foi o caso do Chile, que em 2003 tinha visto a Conferência Episcopal Chilena publicar um conjunto de linhas orientadoras relacionadas com o modo como deviam ser investigados estes casos. José Murillo viu ali uma oportunidade para voltar a alertar a hierarquia católica para o caso de Karadima, mas novamente sem sucesso. O cardeal Errázuriz recebeu a carta, leu-a e até enviou uma resposta a Murillo, garantindo-lhe que rezava por ele, mas não abriu um inquérito como mandavam as normas internas da Igreja. “Julguei que as acusações não eram credíveis naquela altura”, viria mais tarde a assumir.
A Igreja Católica só abriria uma discreta investigação preliminar ao caso no ano seguinte, quando James Hamilton admitiu à sua mulher que havia sofrido abusos por parte do padre Karadima — numa altura em que o casal atravessava um período conturbado motivado pelos traumas de Hamilton e que os conduziria ao divórcio. Através de pessoas que conhecia na estrutura da Igreja, a mulher de Hamilton fez o caso chegar ao gabinete do cardeal, que, confrontado pela segunda vez com relatos contra Karadima, ordenou a abertura de um inquérito preliminar. O padre Eliseu Escudero, encarregado de realizar a investigação, entregou um relatório ao cardeal em 2006 considerando as denúncias credíveis.
Ainda assim, o cardeal decidiu suspender a investigação, que ficou na gaveta durante três anos, porque considerava que os delitos em questão já haviam prescrito. Errázuriz fez aquilo que pode considerar-se uma operação de cosmética clássica do comportamento da Igreja ao longo das décadas: tirou Karadima da liderança formal da paróquia (mas manteve-o no ativo) e pediu pareceres ao Vaticano e a especialistas em direito canónico.
Na mesma altura, James Hamilton procurou ainda outra via para levar Fernando Karadima à justiça eclesiástica e enviou uma queixa formal a um outro bispo chileno, sem jurisdição sobre o sacerdote, para tentar que o assunto fosse discutido entre os bispos. Contudo, nunca recebeu resposta.
Parecia impossível tirar o tapete a Karadima, blindado por todos os lados por uma hierarquia católica que ele próprio ajudara a construir e a formar nas décadas anteriores.
Em 2009, os quatro homens que viriam a apresentar queixa às autoridades civis fizeram uma última tentativa e apresentaram uma denúncia formal ao tribunal arquidiocesano de Santiago. Sem uma resposta do outro lado, foram aos tribunais do Estado e falaram com os jornalistas. Mas, antes, ainda puderam ter um último vislumbre de como a Igreja Católica continuava a tentar desesperadamente proteger a imagem do seu santo vivo: em abril de 2009, como descreve o The New York Times, que entrevistou a vítima, o padre Juan Esteban Morales, um dos párocos da cidade de Santiago, visitou James Hamilton no seu consultório para lhe pedir que abandonasse a sua pretensão de anular o casamento. O motivo era simples: o pedido de nulidade do casamento explicava que o motivo por trás do casamento falhado eram os abusos que Hamilton sofrera desde os 17 anos às mãos de Fernando Karadima.
Para a Igreja, era urgente impedir que Hamilton fosse em frente com o pedido. O padre Juan Esteban Morales não usou de meias palavras: o processo podia “afetar gravemente a imagem” de Karadima, que era um dos padres mais influentes da Igreja Católica chilena.
Apesar da falta de resposta, o que é certo é que a arquidiocese de Santiago reabriu discretamente o processo em 2009 e envolveu o Vaticano. O próprio secretário de Estado da Santa Sé, Tarcisio Bertone, considerado o número dois da hierarquia eclesiástica global, esteve no Chile para falar com os bispos chilenos sobre o caso de Karadima (embora, oficialmente, a estrutura tenha negado que o tema da visita oficial tenha sido esse). Em junho de 2010, com a fase local do processo terminada, a arquidiocese de Santiago remeteu os autos para o Vaticano.
Num comunicado divulgado na altura pela arquidiocese, lia-se que o cardeal Errázuriz pedia ao Vaticano que levantasse o prazo de prescrição de dez anos (mais tarde, este prazo seria aumentado para vinte anos, mas o Vaticano tem a prerrogativa de o levantar em casos particulares) e que desse início formal a um julgamento canónico contra Karadima.
A queda de Karadima foi rápida e estrondosa. Embora o julgamento civil tenha acabado com a ilibação devido aos prazos de prescrição, o julgamento canónico demorou menos de um ano a concluir que o padre era mesmo culpado dos crimes de que o acusavam. A pena? Uma “vida de oração e penitência” num lugar longe dos seus antigos paroquianos e de todas as pessoas “que tenham sido espiritualmente orientadas por ele”. Apesar de a pena parecer relativamente suave, a verdade é que o julgamento de Karadima marcou definitivamente o modo como a Igreja Católica passou a olhar para os casos de pedofilia e abuso sexual dentro da estrutura.
Como lembrava na altura o jornal italiano La Stampa, no seu suplemento sobre as questões da política interna do Vaticano, o caso tornou-se num marco da luta contra os abusos dentro da Igreja por dois motivos essenciais: após anos a desvalorizar denúncias, a Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, levou a queixa a sério apesar da gravidade que uma condenação teria para a Igreja no Chile; e ao mesmo tempo, apesar de a justiça civil ter encerrado o caso, a justiça eclesiástica decidiu prosseguir com a investigação meticulosa e impor uma sentença dura (em termos religiosos) ao padre.
Karadima foi enviado para o isolamento num mosteiro chileno e, durante algum tempo, o caso permaneceu adormecido.
O pedido de desculpas do Papa
Ilibado na justiça civil e sujeito a uma pena que muitos consideraram apenas simbólica, Karadima representou para os chilenos, depois de 2010, uma ferida mal curada — sobretudo tendo em conta que a fama de santidade do padre antes do processo só reforçou o sentimento de traição sentido pelos católicos do Chile.
Por isso, em 2015, muitos fiéis não perdoaram que o Papa Francisco tivesse nomeado como novo líder da diocese de Osorno, no sul do Chile, o bispo Juan Barros.
Barros, então com 59 anos de idade, foi um dos pupilos de Fernando Karadima na paróquia de El Bosque. Desde então, Karadima era o seu conselheiro espiritual e principal figura de referência. Durante algum tempo, Barros foi mesmo secretário particular do sacerdote — e as vítimas de Karadima sempre o acusaram não só de ter testemunhado alguns abusos como também de ter usado, posteriormente, toda a sua influência eclesiástica para tentar evitar que o mentor fosse levado à justiça. A contestação à nomeação de Barros ganhou grande dimensão no Chile, sobretudo depois de uma petição com mais de mil assinaturas ter sido enviada ao Papa Francisco com o objetivo de reverter a nomeação. Contudo, a escolha foi mantida e Juan Barros assumiu mesmo funções como bispo de Osorno em março de 2015, numa celebração que esteve em risco de não acontecer devido à presença de centenas de manifestantes que tentaram impedir o bispo de entrar na catedral.
Barros acabou por conseguir entrar na catedral entre empurrões da multidão que empunhava cartazes com palavras de ordem como “Não ao cúmplice do padre Karadima!” Todavia, o bispo sempre negou a cumplicidade. “Nunca tive conhecimento nem pude imaginar os graves abusos que este padre cometeu contra as vítimas”, disse o bispo Barros numa carta enviada aos padres do Chile na semana antes da missa inaugural.
O bispo manteve-se na diocese durante três anos, mas sempre num clima de grande tensão. Mas o pico da crise aconteceria em janeiro de 2018, quando o Papa Francisco visitou o Chile.
Quando a visita do Papa ao Chile foi anunciada, o caso Karadima voltou às páginas dos jornais. Nos anos anteriores, vários escândalos de abuso sexual haviam causado polémica a nível global (principalmente na Austrália, onde o foco pendia sobre o cardeal de topo George Pell), e os fiéis chilenos viram na visita de Francisco uma oportunidade para voltar a pôr o seu maior escândalo em cima da mesa e para lhe exigir a demissão do bispo Juan Barros e uma pena mais dura contra o abusador Karadima. “Já passou o tempo de o Papa pedir perdão pelos abusos. É preciso ação”, afirmou Juan Carlos Cruz na antecipação da visita de Francisco. O clima era de grande tensão e eram esperados protestos em vários pontos do país por onde o chefe da Igreja ia passar.
Mas, em vez de serenar os ânimos, o Papa Francisco acabou por só inflamar a polémica. Em Iquique, a norte, perto da fronteira com a Bolívia, o Papa foi interpelado por um jornalista da rádio Bio Bio, que lhe perguntou sobre os protestos e a controvérsia em torno de Juan Barros (aprofundada depois de o bispo ter surgido em todos os eventos oficiais da visita). Francisco atirou, com ar sério: “No dia que me trouxerem uma prova contra o bispo Barros, então eu falarei. Não há uma única prova contra ele. É tudo calúnia. Está claro?”
As declarações de Francisco causaram grande choque entre as vítimas, que viram a sua queixa desvalorizada pela principal figura da Igreja Católica. O cardeal norte-americano Seán O’Malley, um dos elementos de topo da hierarquia global da Igreja, responsável pela comissão do Vaticano que coordena o combate aos abusos sexuais, repreendeu o Papa e acusou-o de causar “grande dor” às vítimas com as suas palavras. A polémica ganhou uma dimensão tal que o Papa se viu forçado a aproveitar a primeira oportunidade para pedir desculpas. “A minha expressão não foi feliz”, assumiu Francisco no voo de regresso a Roma. “O drama dos abusados é tremendo. O que é que sentem as vítimas? Tenho de pedir-lhes desculpa, porque a palavra ‘prova’ feriu.”
Papa pede desculpa por comentário sobre abusos sexuais: “A minha expressão não foi feliz”
O que é certo é que a viagem de Francisco ao Chile serviu decisivamente para colocar o assunto novamente no centro da agenda da Igreja. Ainda em janeiro de 2018, o Papa enviou ao Chile um dos mais importantes responsáveis da Igreja no combate aos abusos, com o objetivo de ouvir todas as queixas contra Juan Barros e Fernando Karadima. Três meses depois, as conclusões da nova investigação foram claras: tinha ficado muito por contar sobre o caso. O Papa assumiu publicamente as falhas na escolha do bispo e convocou todos os bispos chilenos para uma reunião inédita no Vaticano. Na sequência dessa reunião, que ocorreu em maio de 2018, todos os bispos chilenos puseram os seus lugares à disposição — e o Papa aceitou a demissão de vários deles, incluindo de Barros, que apesar de estar longe da idade da reforma continua até hoje sem funções atribuídas.
Um murro na mesa
Em setembro de 2018, chegou do Vaticano uma “decisão excecional”: o Papa Francisco decidiu expulsar Fernando Karadima do sacerdócio.
A decisão foi tomada e assinada pela mão do próprio Papa, apesar de já terem passado sete anos da condenação emitida pelo Vaticano. O próprio Vaticano explicou que a decisão era tomada no contexto da “potestade ordinária, que é suprema, plena, imediata e universal” na Igreja, do próprio Papa, que pode anunciar estas decisões excecionais sempre que está em causa “o bem da Igreja”. Portanto, apesar de não ter havido nenhuma evolução formal no caso do padre Karadima, o Papa Francisco entendeu que se impunha uma pena mais dura contra o sacerdote idoso — e expulsou-o da Igreja.
Papa Francisco expulsa padre que está no centro da polémica dos abusos sexuais no Chile
Toda a controvérsia do Chile, que se arrastou durante vários meses ao longo de 2018, desgastou fortemente a imagem do Papa Francisco no que respeita à crise dos abusos e foi um dos acontecimentos-chave que levaram o Papa, em setembro de 2018, a convocar os bispos de todo o mundo para uma cimeira inédita sobre os abusos de menores na Igreja Católica. A cimeira foi convocada após um ano marcado não apenas pelo caso do Chile, mas também pelo relatório da Pensilvânia (que revelou mais de mil casos de abuso cometidos por 300 padres naquele estado norte-americano) e pelo caso do cardeal Theodore McCarrick, que se tornaria no primeiro cardeal a ser expulso da Igreja por abusar sexualmente de menores. A reunião, que ocorreu em fevereiro de 2019 em Roma, foi o ponto de partida para uma autêntica revolução nas práticas e normas da Igreja Católica, que ao longo dos últimos dois anos produziu mais legislação interna do que nunca sobre o assunto — incluindo em Portugal.
Fernando Karadima ainda viveria mais quase três anos em liberdade, mas já como ex-padre caído em desgraça, depois da decisão de o expulsar. Longe da fama de santidade que lhe atribuíam no século passado, Karadima morreu na madrugada de domingo para segunda-feira, longe da ribalta, num lar de idosos onde vivia devido à sua fraca saúde. A sua morte foi anunciada discretamente através de um comunicado da arquidiocese de Santiago, em que a Igreja sublinhou o pedido a Deus para que aliviasse a dor das vítimas.
Num comunicado conjunto três das vítimas mais conhecidas de Karadima — Juan Carlos Cruz, José Murillo e James Hamilton — reagiram serenamente à morte. “Morreu Fernando Karadima, antigo padre católico que abusou sexualmente e espiritualmente de muitas pessoas, incluindo nós. Tudo o que tínhamos a dizer sobre Karadima já foi dito. Era mais um elo nesta cultura de abuso e encobrimento na Igreja. Estamos em paz e motivados para continuar a lutar para que estes crimes não se repitam, e por tantas pessoas que passaram por isto e que ainda não têm justiça.”
Até dezembro de 2018, o cardeal Francisco Javier Errázuriz, que inicialmente recusou investigar Karadima, era um dos principais conselheiros do Papa Francisco, fazendo parte do exclusivo grupo de nove cardeais conselheiros do pontífice. Em março de 2021, o sobrevivente Juan Carlos Cruz foi convidado pelo Papa Francisco para integrar a comissão do Vaticano que o aconselha relativamente à crise dos abusos. Até hoje, ainda não se sabe o verdadeiro número de vítimas do padre Fernando Karadima.