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Geert Wilders parecia não acreditar. Quando às 9h da noite desta quarta-feira saíram as primeiras projeções dos resultados das eleições legislativas dos Países Baixos, o seu Partido pela Liberdade (PVV na sigla original) vinha não no habitual terceiro lugar, mas em primeiro, com 35 lugares previstos no Parlamento. O neerlandês tapou a cara com as mãos em sinal de espanto. “Tive de beliscar o braço”, confessou mais tarde.
O resultados finais seriam ainda melhores (37 mandatos). E no bar alugado pela equipa apenas três dias antes — quando as sondagens começaram a admitir a possibilidade de uma vitória do PVV —, soou a música “Eye of the Tiger”, da banda sonora do filme “Rocky”, para festejar. “Este é o dia mais bonito da minha vida política”, admitiu Wilders, que classificou a sua vitória como um sinal de que “os eleitores estão fartos” e que agora será possível colocar “os neerlandeses em primeiro lugar”.
A surpresa é compreensível. O PVV é uma partido de extrema-direita conhecido pela sua mensagem anti-Islão e eurocética, que até aqui contava com 20 deputados. Mas mais do que isso: esta é a primeira vez desde a II Guerra Mundial que o partido mais votado nos Países Baixos não é uma força política do centro.
Essas ficaram-se pelos 25 mandatos para o centro-esquerda (na aliança de socialistas e verdes liderada por Frans Timmermans) e apenas 24 para o centro-direita (o Partido Popular para a Liberdade e Democracia, VVD), que deu um tombo e perdeu 10 deputados. A que se somam vários grupos parlamentares mais pequenos, numa Câmara dos Representantes fragmentada onde existem agora 15 movimentos diferentes.
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Foi um resultado “surpreendente, provavelmente até para o próprio Wilders”, admite ao Observador Barbara Vis, professora especializada em Política da Universidade de Utrecht, que fala mesmo num resultado “histórico”. Diederick van Wijk, analista do Clingendael Institute, especializado na política europeia e neerlandesa, concorda, mas enquadra o resultado: “O cenário político tornou-se muito imprevisível com o colapso do anterior governo antes do verão e com a saída de cena de quase todos os líderes partidários”, acrescenta. “Entre eles incluiu-se o então primeiro-ministro Mark Rutte, que era chefe de governo há mais de uma década. Era o centro da gravidade e, quando saiu, deixou um vácuo político.”
Quem não terá ficado surpreendido com a vitória do PVV terá sido Paul Wilders, irmão do líder do partido de extrema-direita que há muito se afastou do irmão por discordar politicamente dele. Em 2017, depois das eleições legislativas em que Wilders conseguiu o seu melhor resultado até agora (segundo lugar, 20 deputados), o irmão mais velho fez uma previsão: “Seria um grande erro achar que isto ficou por aqui”, afirmou numa entrevista à revista The Atlantic.
“O ímpeto do Geert pode ter abrandado, mas os eleitores continuam por aí, só que mais dispersos. Tenho a certeza que ele vai tentar atraí-los e pode passar por repensar a forma como se expressa”, acrescentou Paul Wilders. “Até aqui, comportou-se de forma muito, muito extrema. Decidir baixar o tom da retórica pode ser uma decisão difícil para ele.” Mas eis que, seis anos depois, foi exatamente isso que aconteceu — e o resultado compensou para Wilders.
O partido de um homem só que meteu as ideias radicais “no congelador”
Por toda a Europa, vários líderes de partidos eurocéticos e de extrema-direita reagiram ao resultado eleitoral. Marine Le Pen falou numa “performance espetacular”, Viktor Orbán disse sentir um “ventos de mudança”, Matteo Salvini afirmou que “uma nova Europa é possível” e André Ventura garantiu que “a seguir será Portugal”.
Embora o resultado nos Países Baixos seja um claro sinal de pujança para a direita radical europeia, a vitória de Geert Wilders não é necessariamente transponível a papel químico para outros países. A começar pelo facto de que o PVV não ser uma força política igual às outras: é literalmente um partido de um homem só, “o único em todo o mundo que tem apenas um membro oficial”, como notou em 2019 um académico da Universidade de Utrecht, Koen Damhuis. Geert Wilders é o único membro do Partido da Liberdade, o que significa que não há congressos, fações internas, nem uma juventude partidária. Wilders escolhe as listas, é o único responsável oficial pelo programa eleitoral e pode decidir quaisquer coligações.
É a idiossincrasia de um partido criado por um homem que foge às convenções. Político há mais de 25 anos sem nunca ter exercido um cargo, deu nas vistas em 2006 quando abandonou o centro-direita e formou o PVV. Aí, lançou um programa radical e destacou-se com declarações polémicas: classificou como “escumalha” tanto marroquinos como jornalistas, disse que a Câmara dos Representantes é “um Parlamento a fingir” e comparou o Alcorão ao “Mein Kampf” de Adolf Hitler. Até hoje, continua a defender a abolição de mesquitas no país e pede o fim do “tsunami de requerentes de asilo e de migração”, incluindo a proposta de exigir um visto de trabalho aos cidadãos da União Europeia (o que quebraria as regras da Schengen). Nas questões europeias, propõe até um referendo à saída da própria União.
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Ao longo dos anos, tem sido alvo de várias ameaças de morte, razão pela qual não se sabe onde vive e é acompanhado de guarda-costas 24 horas por dia. “Temos de operar como uma organização de resistência semi-clandestina”, diz Martin Bosma, apoiante tido como principal ideólogo do PVV.
Contudo, o Partido da Liberdade não é a primeira, nem sequer a única, força política nos Países Baixos com um discurso de extrema-direita, lembra Diederick van Wijk: “Há já algum tempo que o PVV é o maior, mas existem outros como o FvD e o BBB”. Ao longo do último ano, o partido de Wilders nem sequer esteve em alta nas sondagens, atingindo um ponto baixo de apenas 7% durante a primavera de 2023.
Como se explica, então, o resultado das eleições desta quarta-feira?
Em primeiro lugar, é preciso olhar para a mensagem do partido, dizem os analistas ouvidos pelo Observador. Socialmente liberal nos costumes, o PVV combina propostas de reforço do Estado social com uma linha dura face à imigração — “Ele defende que as pessoas em dificuldades devem ser ajudadas, mas só aqueles a quem chama ‘Henk e Ingrid’, os holandeses que votam nele, e não os ‘Mohammed e as Fatima’”, resumiu o professor da Universidade de Amsterdão Matthijs Rooduijn ao The Guardian.
Essa é uma receita para o sucesso nos Países Baixos, aponta Barbara Vis: “Há uma grande fatia do eleitorado que é mais à esquerda na dimensão sócio-económica e mais à direita face à imigração. Como esta é a posição do PVV, já há muitos anos que o partido tinha potencial para colher muitos votos”.
Então por que é que isso só aconteceu agora?
A resposta pode estar no tom do próprio Wilders. “Com tantos rostos novos na cena política, a cara dele era familiar para os eleitores. E, para além disso, ele tornou-se muito menos radical nos debates, baixando o tom no seu estilo normalmente cândido”, aponta Van Wijk. A professora Vis concorda, destacando como, ao longo da campanha, Wilders disse que temas incluídas no seu programa como a proibição do Alcorão ou o encerramento de mesquitas seriam colocados “no congelador”. “O Islão está no nosso ADN, mas há coisas mais importantes agora”, resumiu o líder do PVV.
No último debate, Wilders disse mesmo que, caso se tornasse primeiro-ministro, seria um chefe do governo “de todos, independentemente da classe, daquilo em que acreditam ou das vossas origens”.
Questionada sobre se considera que Wilders se apresentou a estas eleições como mais moderado do que se mostrou até agora, Barbara Vis afirma que sim, mas apenas no que diz respeito aos debates. “No programa eleitoral não, de todo”, sublinha.
VVD “não fechou a porta” a coligação com Wilders e estratégia parece ter falhado
Mas pode uma mudança de tom explicar toda uma vitória eleitoral?
Há mais fatores que ajudam a decifrar a vitória de Wilders, dizem os especialistas. Em primeiro lugar está o facto de a imigração ser ter tornado o tema principal da campanha — “ e Wilders é quem domina o tema da imigração”, nota o analista Van Wijk. “As pessoas associam a imigração ao PVV”.
O número de chegadas de estrangeiros ao país mais do que duplicou ao longo do último ano (220 mil) e pode ser ainda maior este ano, o que tem potencial para ultrapassar o recorde de 2015, altura da crise de refugiados da Síria. Desta vez, contudo, a maioria dos requerentes de asilo são ucranianos e não refugiados vindos de países de maioria muçulmana, o principal alvo de Wilders.
Só que esta vaga migratória surge em paralelo a uma crise económica de aumento do custo de vida, inflação e problemas na habitação. Neste momento, estima-se que 830 mil pessoas num país de 17,5 milhões viva abaixo do limiar da pobreza. E há um rácio de procura nove vezes superior ao número de residências disponíveis, elevando o preço médio de uma casa para os 400 mil euros. Wilders defende que a crise é alimentada pela chegada de estrangeiros, que consomem recursos que poderiam ser aplicados a ajudar “os holandeses”.
Só que esse discurso deixou de ser um exclusivo seu, com partidos como o recém-criado Novo Contrato Social (NSC na sigla original) e até o histórico VVD a trazerem a imigração para o centro do debate como principal problema.
E essa proximidade trouxe outras consequências: a mudança de posição do maior partido do centro-direita face à possibilidade de se vir a coligar com o PVV no futuro. “Mark Rutte era muito claro: não faria uma coligação com Geert Wilders e o seu partido”, relembra Van Wijk. “A sua sucessora não foi tão clara a fechar a porta a uma cooperação com o senhor Wilders.”
Dilan Yeşilgöz-Zegerius foi ministra de Rutte, mas tentou distanciar-se da herança do antecessor. E isso incluiu dizer que não excluía totalmente a possibilidade de se aliar ao Partido da Liberdade no futuro. O resultado foi, diz Barbara Vis, “abrir a porta a uma coligação com o PVV, o que se revelou atrativo para muitos eleitores”, que preferiram dar força ao partido agora que sabiam não estar excluído de uma futura solução de governo. Um dos principais prejudicados, diz Vis, foi o próprio VVD, já que “os resultados mostram que cerca de 15% dos votos do PVV vieram de eleitores do VVD”.
A posição de Yeşilgöz-Zegerius tem sido vista por muitos nos Países Baixos como um erro. “O VVD tornou Wilders, que com Rutte tinha sido afastado para fora de campo durante anos, novamente relevante na política, ao oferecer-lhe espaço para se juntar ao governo e ao dar-lhe a prenda de ditar a agenda da campanha”, escrevia esta quinta-feira o jornal neerlandês NRC Handelsblad no seu editorial. Dentro do próprio partido também surgiram vozes críticas: “Isto foi um desastre catastrófico”, comentou um dos membros com o jornalista da Sky News Adam Parsons. “Não farei parte disto se isto fizer com que o Wilders se torne primeiro-ministro”, comentou outro.
Coligação à direita, com ou sem Wilders, é uma possibilidade. Mas implicará “cedências”
Resta saber se a possibilidade de Wilders se tornar de facto primeiro-ministro depois desta eleição se vai concretizar.
Esta sexta-feira, às 10h30 (hora local, 9h30 em Lisboa), a presidente da Câmara dos Representantes irá convidar os representantes de todos os partidos para se reunirem. De seguida, cada partido aponta um “batedor” para começar as negociações, que inicialmente se focam apenas no programa de governo. Mais tarde, quando houver sinais de um possível acordo, surge um “formateur” (normalmente o futuro primeiro-ministro) que começa a negociar a distribuição das pastas. Só depois se fecha um acordo e se procede à votação no Parlamento. Ao todo, o processo pode demorar meses — da última vez foram precisos 271 dias.
Neste momento, como Wilders foi o mais votado, está informalmente encarregado de tentar auscultar os partidos. “O mais provável é que tenhamos uma coligação de direita, com pelo menos quatro partidos”, prevê a professora Vis, destacando, porém, que ainda há muitas incertezas. “Um deve ser o BBB, partido dos agricultores, que tem muitos lugares no Senado e está desejoso de governar e de se juntar ao PVV. O estreante NSC indicou que não se queria coligar com o PVV, mas no discurso da noite eleitoral o líder, [Peter] Omtzigt, sublinhou que o seu partido está pronto para governar. E também não sabemos bem qual será a posição do VVD.” A líder do centro-direita, Yeşilgöz-Zegerius, limitou-se a dizer que não lhe parece provável que Wilders consiga uma maioria, mas disse que “é a vez dele provar” se o consegue ou não fazê-lo.
Dentro do Partido da Liberdade, há confiança. A mensagem é a de que a direita não tem outra alternativa, caso contrário teria de fazer uma coligação “com 10 partidos”, como apontou a deputada do PVV Fleur Agema. Tecnicamente, não seria preciso tanto: se o VVD e o NSC se aliassem a socialistas e verdes, bastava-lhes convencer mais dois partidos para obter os 76 votos necessários, como nota a Economist. Mas isso implicaria um verdadeiro bloco central, com cedências a forças políticas mais pequenas, e é por isso um cenário improvável.
No discurso da noite eleitoral, Wilders quis deixar claro que está disposto a ceder para formar um governo com o VVD e o NSC. “Estou disponível para fazer compromissos”, disse, acrescentando que compreende “que os partidos não queiram estar num governo com um partido que defende medidas inconstitucionais”. Por isso, prometeu, o PVV vai deixar de falar sobre “mesquitas, Alcorão e escolas islâmicas”.
“Agora está tudo nas mãos do NSC, do VVD e do BBB”, resume Van Wijk, destacando que estes terão de perceber se acreditam ou não nas promessas de Wilders. “Só podemos especular, mas o que é certo é que muitos pontos do programa do PVV são inconciliáveis com estes outros partidos.”
Há ainda a possibilidade, que foi levantada pela própria líder do VVD durante a campanha eleitoral, de a coligação não ser liderada pelo PVV — ou seja, com o cargo de primeiro-ministro a não ir para Wilders. Seria algo quase inédito na História dos Países Baixos, em que a única vez que o primeiro-ministro não pertenceu ao partido mais votado foi em 1982. E, dessa vez, não foi por divergências dentro da coligação de governo, mas porque a oposição se juntou para apresentar uma maioria alternativa à do Partido Trabalhista, num processo semelhante ao que ficou conhecido como “geringonça” em Portugal.
Diederick van Wijk diz que essa é “uma possibilidade”, mas sublinha que a situação é ainda “muito fluida”. Certo é que, diz, “de uma maneira ou de outra, Wilders vai ter de fazer cedências”. O tempo dirá se, para o líder do Partido da Liberdade, as cedências valerão a pena. Ou se, pelo contrário, o seu irmão Paul Wilders tinha razão quando, em 2017, disse ter a certeza que Geert não ambicionava ser primeiro-ministro: “Não tem nada a ganhar e tem tudo a perder. Ele sabe que não consegue cumprir as suas promessas, que são extremas. O sistema precisa de uma maioria para as aprovar e ele teria de fazer cedências. Ele quer ficar eternamente na oposição.”