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Quando voltou do Campo Eleonas, em Atenas, João Bernardo Silva criou uma bolsa de voluntariado para ajudar jovens naturais ou residentes na UE a terem "impacto na vida de outras pessoas"
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Quando voltou do Campo Eleonas, em Atenas, João Bernardo Silva criou uma bolsa de voluntariado para ajudar jovens naturais ou residentes na UE a terem "impacto na vida de outras pessoas"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Quando voltou do Campo Eleonas, em Atenas, João Bernardo Silva criou uma bolsa de voluntariado para ajudar jovens naturais ou residentes na UE a terem "impacto na vida de outras pessoas"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Foi voluntário num campo sobrelotado na Grécia onde poucos finais foram felizes: “O sentimento de revolta é comum a 100% dos refugiados”

Durante 5 meses de 2021 o advogado João Bernardo Silva trocou Lisboa por Atenas e foi voluntário num campo com 3.200 refugiados. Quando voltou, criou uma bolsa de voluntariado.

Dois dias depois da notícia que abanou a sociedade portuguesa é inevitável tocar no assunto. Mas porque prefere não falar diretamente sobre o caso de Abdul Bashir, o refugiado afegão que esta terça-feira matou duas mulheres no Centro Ismaili de Lisboa, João Bernando Silva propõe outro exercício.

Tem 27 anos, trabalha como advogado numa das mais conceituadas sociedades do país, é assistente convidado na Nova School of Law, e está a acabar o doutoramento em direito. Em 2021 passou cinco meses como voluntário num campo de refugiados na Grécia —  na mesma altura, o afegão Abdul Bashir, engenheiro de telecomunicações, então com 28 anos, vivia num campo idêntico, mas na ilha grega de Lesbos, já só com os três filhos, de 2, 5 e 7 anos; ele viúvo, eles órfãos de mãe, morta um ano antes num incêndio no campo onde a família se refugiou depois de escapar à guerra.

“Por regra, e por muito que o que vou dizer possa parecer horrível, um refugiado é um privilegiado, porque tem capacidade financeira para sair do país. No campo onde estive havia juízes, arquitetos, engenheiros, médicos, — cheguei a conhecer um cardiologista"
João Bernardo Silva, advogado e voluntário no Campo Eleonas

“É o privilégio da nascença e eu penso muito sobre isto. Se tivesse nascido mulher no Afeganistão, neste momento a minha vida era terrível. E se tivesse nascido na Ucrânia, o mais provável é que agora estivesse na guerra”, diz o advogado, para depois se recordar das centenas (milhares?) de pessoas que conheceu enquanto voluntário do Project Elea no Campo Eleonas, entretanto desativado em 2022 — dentro dos limites da capital grega, gerido pelo governo local, tinha capacidade para 1.200 pessoas mas alcançou, enquanto lá esteve, o limite máximo das 3.200.

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“Por regra, e por muito que o que vou dizer possa parecer horrível, um refugiado é um privilegiado, porque tem capacidade financeira para sair do país. No campo onde estive havia juízes, arquitetos, engenheiros, médicos, — cheguei a conhecer um cardiologista! Uma parte muito significativa das pessoas que lá estavam eram qualificadas e estavam ali porque conseguiram pagar a um traficante para as ajudar a sair do país. São pessoas vulneráveis, com um passado trágico, mas são pessoas formadas, são boas pessoas”, diz João Bernardo Silva, que de segunda a sexta-feira, entre agosto e dezembro de 2021, fez voluntariado no campo, distribuiu roupas e outros bens de primeira necessidade pelas tendas e contentores, deu aulas de várias disciplinas em inglês e francês e organizou inúmeras atividades e eventos culturais  — mas nunca conseguiu criar entretém mais concorrido do que os jogos de bingo, que juntavam refugiados de todas as idades, nacionalidades e religiões, com direito a prémios no final.

Os refugiados no Campo Eleonas viviam em contendores, tendas e estruturas de madeira, construídas pelos próprios residentes

“Agora, imagina o que é teres uma vida normal, estares habituado a salvar vidas, como o tal cardiologista, que era do Irão, e de repente estares a viver com a tua família, com os teus três filhos, em meio contentor, num campo de refugiados na Grécia. Organizares-te mentalmente exige um esforço psicológico que eu, por exemplo, acho que não teria”, admite o advogado.

“A vida destas pessoas, de repente e sem que elas próprias tenham feito nada por isso, passa a ser existir. Acordam, existem, almoçam, existem, jantam, existem — e no dia seguinte tudo de novo. Tudo isto, a juntar ao trauma da viagem, ao trauma vivido no país de origem, e à preocupação com a família que lá ficou. Nada depende deles, tudo o que podem fazer é esperar. Esperar que o pedido de asilo seja aceite para que a vida possa recomeçar. E muitas vezes esperam durante anos para ouvir um ‘não’. Ou até têm a sorte de arranjar um trabalho mas sem contrato, a trabalhar mais horas e a ganhar menos do que o colega do lado. É normal que a sensação de revolta cresça. O sentimento de derrota e de revolta é comum a 80%, 90%, 100% dos refugiados”, garante, para depois analisar o vídeo que Abdul Bashir gravou há já três anos e foi partilhado pela organização Red SOS Refugiados Europa — e vincar a linha que, reforça, nunca poderia ter sido transposta.

“Espero sinceramente que o sentimento de solidariedade, compaixão e empatia que a população portuguesa tem demonstrado, até na forma como abrimos as portas aos refugiados vítimas da guerra na Ucrânia, prevaleça em relação a populismos e ideias erradas e propagandeadas sobre terroristas e refugiados”
João Bernardo Silva, advogado e voluntário no Campo Eleonas

“Quando estás num contexto daqueles aprendes a ler as pessoas. Dá para perceber que ele já estava descompensado e isso é comum a muita gente, as pessoas choram, as pessoas perguntam, ‘O que é que eu posso fazer mais?’. Não é ingratidão com quem as recebe e lhes dá apoio, é desespero. No campo conheci pessoas que se tentaram suicidar, que se tentaram envenenar com ovos passados de prazo há meses. Agora, a maior parte das pessoas saudáveis, por muito que tenham estes sentimentos, não têm comportamentos impulsivos. Por muito que a revolta prevaleça, as ações que ele tomou não têm justificação”, continua.

Também (ou ainda mais) injustificáveis, defende, são algumas das posições e leituras assumidas publicamente por políticos e não só relativamente ao crime perpetrado no Centro Ismaili de Lisboa. “Espero sinceramente que o sentimento de solidariedade, compaixão e empatia que a população portuguesa tem demonstrado, até na forma como abrimos as portas aos refugiados vítimas da guerra na Ucrânia, prevaleça em relação a populismos e ideias erradas e propagandeadas sobre terroristas e refugiados.”

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A família cubana que passou três meses em trânsito e o sírio que perdeu o filho na explosão de uma mina

Agora já não é João Bernardo Silva que o propõe, mas podemos voltar ao exercício anterior: imagine que tem 25 anos e que passou o último ano imerso em trabalho (e pandemia), e está mesmo a precisar de parar. Vai de férias para um resort com tudo incluído? Faz uma escapadinha numa cidade europeia? Ou oferece-se como voluntário para um campo de refugiados na Grécia?

João Bernardo Silva, durante uma visita de estudo com residentes do Campo Eleonas, em Atenas

Em julho de 2021 o jovem advogado não teve um burnout — mas calcula que tenha andado lá perto. Na altura, para além das aulas e trabalhos do doutoramento, vinha de meses em que tinha acumulado o trabalho na Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados com o exame à Ordem dos Advogados e as aulas que tinha sido convidado a lecionar na Nova School of Law.

Lembra-se de que o deadline para submeter os relatórios do doutoramento era a meia-noite do último dia do mês. “Entreguei tudo às 23h58. Saí do escritório, fui a pé até casa, e no caminho tive uma descarga de cansaço. Nessa noite decidi que ia para a Grécia. Cheguei a casa e comprei os bilhetes, só no dia seguinte é que mandei e-mail à organização onde estive, e de que já tinha ouvido falar, através de pessoas que já lá tinham feito voluntariado, e falei com a minha família. Trabalhei até meio de agosto. No sábado, dia 17, estive a trabalhar, no dia 18 voei para Atenas. No dia seguinte fui para o campo.”

Inicialmente, o plano era ficar no Eleonas durante três semanas. Quando esse tempo chegou ao fim, vestiu o fato, foi direito ao trabalho, na Rua Castilho, em Lisboa, e informou o coordenador do departamento de direito público, urbanismo e ambiente, em que está integrado, que ia regressar à Grécia. Diz que estava preparado para tudo, até para se despedir: sempre tinha querido fazer voluntariado “que fizesse a diferença” e com as poupanças que tinha amealhado nos últimos três anos na Morais Leitão achava que conseguia aguentar-se pelo menos durante seis meses.

“Ver refugiados a manifestar-se pacificamente com cartazes a dizer ‘Deixem-nos viver’ e do outro lado ver uma cordilheira de polícias com escudos e armas pesadas foi uma das experiências mais revoltantes que já alguma vez tive”
João Bernardo Silva, advogado e voluntário no Campo Eleonas

No fim, não foi preciso chegar a tanto: “O João Tiago Silveira disse-me que achava que eu fazia muito bem e perguntou-me quando é que estava a pensar voltar. Disse-me que achava que conseguia manter-me naquele limbo durante 24 meses. Era para ir com uma licença sabática mas o escritório quis ajudar-me e continuou a pagar-me o salário”, recorda agora, quase dois anos mais tarde.

Dos cinco meses que passou no Campo Eleonas, onde chegou a assistir a uma revolta dos residentes, que bloquearam a entrada com o tronco de uma árvore, em protesto contra a intenção do governo grego de encerrar o complexo e transferir os refugiados para outros locais, mais remotos, recorda-se sobretudo do cheiro, um misto de sujidade, lama, lixo, especiarias, faláfels e kebabs — de que, apesar de tudo, diz, tem saudades —, e das pessoas com quem se cruzou.

“Houve quem tivesse chegado a fazer greve de fome contra o encerramento do campo. Imagina que és migrante ou requerente de asilo, depois de uma travessia enorme estabilizas finalmente num sítio, e obrigam-te a ir para outro, muito mais longe, no meio do nada, onde vai passar a ser ainda mais difícil arranjar trabalho e começar de novo. Ver refugiados a manifestar-se pacificamente com cartazes a dizer ‘Deixem-nos viver’ e do outro lado ver uma cordilheira de polícias com escudos e armas pesadas foi uma das experiências mais revoltantes que já alguma vez tive”, revela o advogado, que garante que ao longo do tempo que passou no campo viu muitas altercações e desentendimentos, a maior parte fruto até de revolta contra os voluntários, mas assegura também que nunca assistiu a agressões físicas.

O Project Elea tinha uma espécie de loja, onde os residentes podiam escolher peças de entre a roupa doada. Os restantes bens essenciais não alimentares eram distribuídos pelos voluntários

Uma vez, recorda, chegou mesmo a ser ele o destinatário dessa fúria, num dia em que chegou a um dos contentores, ocupados por famílias da comunidade africana, oriundas sobretudo do Congo e da Costa do Marfim, a empurrar o carrinho de supermercado do Project Elea, em que os voluntários faziam a distribuição regular de bens essenciais, já sem fraldas tamanho 4 e 5. “Era um pai desesperado, precisava de fraldas para o filho e nós já não tínhamos. O tom de voz sobe, o peito cresce, as altercações de intensidade maior até costumam ser com voluntários”, tenta justificar, garantindo que tudo não passou disso mesmo e que nunca sentiu medo no campo.

Para além de afegãos, iranianos, sírios, congoleses e costa marfinenses, no Eleonas estava alojada uma única família cubana. João Bernardo estava de saída, já passava das 19h30, quando os viu chegar — estranhou ouvir espanhol, naquele sítio onde só se falava árabe, persa e francês, e foi tentar ajudar.

“A primeira coisa que ele me disse foi: ‘Fiz isto por amor’. Quando me disse que vinha de Cuba, nem queria acreditar: ‘Estamos na Grécia, como assim, vens de Cuba?!’. Contou-me que se tinha manifestado contra a educação que a filha estava a receber na escola e que a partir daí tinha ficado na lista negra das autoridades. Houve ameaças, agressões e visitas incómodas da polícia. Até que finalmente decidiram fugir. ”, conta o advogado.

“'Venho da Síria, o meu filho morreu há três semanas, pisou uma mina. E eu estava ao lado dele, quase de mão dada com ele'. Isto toca-te. Sentes-te privilegiado mas sobretudo sentes-te pequenino. Tudo o que um refugiado procura é paz, é segurança”
João Bernardo Silva, advogado e voluntário no Campo Eleonas

Ao todo, com o pouco que conseguiram guardar nas mochilas que levavam, pai, mãe e filhos, de 7 e 2 anos, tinham passado os últimos três meses em trânsito, até finalmente chegarem à Grécia, pela mão de traficantes. “Apanharam um avião de Cuba para a Rússia, e depois viajaram de comboio e autocarro, com traficantes de pessoas. Chegaram a uma altura em que ou iam para Itália, mas era mais caro e tinham de entregar os passaportes, ou para a Grécia.”

Apesar de ter deixado a vida toda para trás, pelo menos esta família de cubanos mantinha-se junta. Só por isso estas quatro pessoas eram infinitamente mais afortunadas do que o sírio que João Bernardo também viu chegar ao campo absolutamente sozinho, com os parcos pertences que tinha amarrados ao tronco, presos por elásticos sob as roupas que vestia às camadas.

De telemóvel em punho e tradutor do Google a funcionar, tentou acalmar o homem e levou-o a comer um faláfel, estava cheio de fome, não comia há dias. Foi aí que aquele homem alto, na casa dos 50, se debulhou em lágrimas e lhe deu uma amostra do que tinha deixado para trás: “Venho da Síria, o meu filho morreu há três semanas, pisou uma mina. E eu estava ao lado dele, quase de mão dada com ele”, recorda o advogado, emocionado. “Isto toca-te. Sentes-te privilegiado mas sobretudo sentes-te pequenino. Tudo o que um refugiado procura é paz, é segurança. Um refugiado foge da guerra com o que tem na mão, não foge porque quer uma casa e melhor qualidade de vida.”

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Uma laranja com sabor a casa e muitos finais infelizes

Naquele campo improvisado numa zona industrial de Atenas, no espaço de três campos de futebol, estavam na altura mais de três mil pessoas, num espaço originalmente pensado para pouco mais de mil.

Ocupados os contentores, de oito por quatro metros, onde viviam, em média, 12 pessoas, seis para cada lado, com um minúsculo espaço partilhado ao meio, onde cabia uma base de duche, uma sanita e uma pia, começaram a ser montadas tendas. E depois delas estruturas de madeira, construídas com paletes pelos próprios residentes, que encontraram ali uma espécie de negócio imobiliário paralelo —  que, de acordo com o antigo voluntário, podiam custar entre 180 e 250 euros, “mais materiais”.

Para além de uma cozinha comunitária, havia lava-louças comunitários. E casas de banho portáteis, como as usadas em locais de construção ou festivais de verão.

Qualidade de vida era tudo aquilo que não existia ali. E com o passar do tempo, também foram florescendo os negócios paralelos, uns bem-vindos, como os barbeiros ou as bancas de kebabs ou faláfel, outros nem tanto, como o da prostituição, que também existia à vista de todos, com consumo de álcool e drogas à mistura.

Vinha daí muito do desespero dos residentes, que tudo o que queriam era ver aprovados os respetivos pedidos de asilo ou arranjar trabalho fora do campo, uma das duas formas possíveis de recomeçar a viver, mais do que a existir.

“Os bombeiros levam quatro vezes mais a chegar ao campo do que a outra zona da cidade. E não é por ficar mais longe… Imagina um incêndio num contentor, um bebé de um ano com um braço preto, todo queimado, e a ambulância leva duas horas a chegar… Tudo porque são refugiados”
João Bernardo Silva, advogado e voluntário no Campo Eleonas

João Bernardo Silva diz que uma das duas frases que mais lhe ressoam na memória foi a que lhe disse um dia um refugiado afegão: “Estou cansado de ter sonhos, quero é começar a ter memórias”. A outra, saiu da boca de um sírio: “Nós não escolhemos onde nascemos mas, apesar de tudo, estou feliz por ter nascido onde nasci”, parafraseia o advogado, para depois garantir que a maior parte das pessoas com quem se cruzou tinha como objetivo (ou sonho) regressar aos países de origem. “Eles não querem roubar os nossos empregos e ficar na Europa. Querem que as coisas se normalizem nos seus países para poderem voltar.”

Por muito que prefira agarrar-se às memórias felizes, como a de Ahmed, o miúdo iraniano que o conquistou com uma laranja — “Em árabe, laranja é ‘portugal’, ele sabia que eu era português e quis dar-me uma, descascou-a e obrigou-me a comer” —, concede que as histórias tristes são inevitavelmente em maior quantidade.

“O Ali era uma pessoa que estava integrada, que conseguiu arranjar um trabalho fora do campo, que conseguiu até arrendar uma cave para morar. Fez tudo para ter asilo, mas durante três anos nunca conseguiu. Soube recentemente que no ano passado voltou a ser rejeitado e saiu para a Alemanha, mais uma vez, pelos mesmos meios, mais uma vez, através de tráfico humano”
João Bernardo Silva, advogado e voluntário no Campo Eleonas

E, garante, não revela nem metade daquilo por que passou e, sobretudo, viu passar. “Não gosto de falar da Grécia… Por exemplo, os bombeiros levam quatro vezes mais a chegar ao campo do que a outra zona da cidade. E não é por ficar mais longe… Imagina um incêndio num contentor, um bebé de um ano com um braço preto, todo queimado, e a ambulância leva duas horas a chegar… Tudo porque são refugiados.”

O pior? Mesmo quando parece que o final, contra todas as expectativas, vai ser feliz, acontece frequentemente alguma contrariedade. Ali, também iraniano, esteve três anos no Campo Eleonas, onde chegou com 20 anos, depois de uma viagem de três semanas e oito mil dólares com traficantes pelas cordilheiras do Irão e até à Turquia, onde finalmente apanhou um barco para a Grécia. “Tinha 16 anos quando, com uns amigos, imprimiu e distribuiu uns panfletos a alertar para a corrupção, durante umas eleições locais. A partir daí passou a ser um alvo. Um dia disse aos pais que ia jogar futebol e saiu do país, nunca mais os viu”, revela o advogado, que admite ter violado as regras e feito amigos entre os residentes do campo — chegou até a partilhar refeições com alguns deles, nos seus contentores e tendas, o que era estritamente proibido.

João Bernardo e Ali na Casa Elea, depois de mais um dia de aulas e atividades

“O Ali falava inglês perfeito, persa e árabe, trabalhava numa cadeia de hotéis em Atenas mas sem contrato e abaixo do salário. Pediu asilo e teve várias rejeições, porque faltava um papel. Era uma pessoa que estava integrada, que conseguiu arranjar um trabalho fora do campo, que conseguiu até arrendar uma cave para morar, fora do campo, fez tudo para ter asilo, mas durante três anos nunca conseguiu. Soube recentemente que no ano passado voltou a ser rejeitado e saiu para a Alemanha, mais uma vez, pelos mesmos meios, mais uma vez, através de tráfico humano.”

“You good, you very good”: pelo menos duas bolsas de voluntariado no valor 500 euros por ano

Apesar de reconhecer que este é um dos maiores desafios que se colocam atualmente à União Europeia, impossível de resolver sem mais dinheiro e políticas de integração, João Bernardo Silva diz que consegue pelo menos vislumbrar uma luz ao fundo do túnel, que poderá pelo menos por fim “ao aproveitamento dos operadores económicos das vulnerabilidades destas pessoas”: “A União Europeia tem um diploma em preparação que vai obrigar as empresas a demonstrar na sua cadeia de valor o impacto que têm em matéria de direitos humanos e de ambiente”.

Idealmente, um dos objetivos da diretiva, que deverá ser aprovada ainda em 2023, será por fim a violações dos direitos dos trabalhadores, como as que fizeram o congolês Nelson voltar às aulas do Project Elea depois de um mês a trabalhar fora do campo: “Trabalhava 12 horas por dia, sem estar documentado e a receber abaixo do salário mínimo. Disse-me que não era o que tinham combinado e que não ia continuar a humilhar-se”, recorda o advogado.

“Num dia estava de calções do Marítimo a comer faláfel, no outro de fato em reuniões com clientes a tratar de assuntos de milhões, é fácil criares fantasmas, dormires mal à noite. É muito difícil, mas consegui aceitar que a minha realidade é esta e não tenho de deixar de viver a vida porque há pessoas em dificuldades”
João Bernardo Silva, advogado e voluntário no Campo Eleonas

Quando finalmente regressou a Lisboa e ao Funchal, de onde é natural, perto da véspera de Natal de 2021, João Bernardo Silva trazia consigo a certeza de que queria voltar a trabalhar como advogado — mas a “ressaca emocional” de tudo aquilo que viveu e das pessoas que deixou para trás foi muito difícil de ultrapassar. “Lá estás em piloto automático, só quando voltas é que começas a processar.”

Assim que chegou, pôs-se à prova e experimentou outro exercício: “Fui almoçar ao Café de São Bento, comer um bife. Quis perceber se ia sentir-me mal ou hipócrita. Num dia estava de calções do Marítimo a comer faláfel, no outro de fato em reuniões com clientes a tratar de assuntos de milhões, é fácil criares fantasmas, dormires mal à noite. É muito difícil, mas consegui aceitar que a minha realidade é esta e não tenho de deixar de viver a vida porque há pessoas em dificuldades”, explica.

O que não significa que não tenha decidido continuar a ajudar, se bem que de outra forma, à distância e por interposta pessoa. As bolsas de voluntariado “You good, you very good” nasceram em 2022, com nome inspirado na pequena Zahra, síria de apenas 10 anos, que era uma espécie de teste Covid do Campo Eleonas — “Estávamos em pandemia. Ela olhava para as pessoas e dizia ‘You good, you no coronavirus’. Quando cheguei, e não me conhecia, dizia sempre que eu era mau e tinha Covid. Depois, com o tempo, passou a adorar-me: ‘You good, you very good’”.

“Eu sou um privilegiado, recebo bem, tenho uma vida estável, posso dar-me a esse luxo, ajudar quem quer ajudar mas não consegue e ver o impacto na vida de outras pessoas”
João Bernardo Silva, advogado e voluntário no Campo Eleonas

Todos os anos, no início do ano, o advogado tenciona abrir candidaturas aos jovens entre os 18 e os 28 anos, nacionais ou residentes num estado-membro da UE, que tenham projetos de voluntariado no estrangeiro e nas áreas que mais considera: migrações e refugiados, alterações climáticas, educação, saúde, desporto, novas tecnologias e igualdade de género.

À partida serão atribuídas pelo menos duas bolsas, de 500 euros cada. Mas João Bernardo Silva diz que, se as candidaturas se justificarem, tem abertura para conceder mais apoios — “Eu sou um privilegiado, recebo bem, tenho uma vida estável, posso dar-me a esse luxo, ajudar quem quer ajudar mas não consegue e ver o impacto na vida de outras pessoas”.

Este ano, o prazo de inscrição termina a 5 de maio. No ano passado, diz que recebeu mais de uma dezena de candidaturas, vindas de Portugal, Itália, Reino Unido, Espanha, França e Alemanha.

O advogado chegou a partilhar refeições com alguns dos residentes, nos seus contentores e tendas, o que era estritamente proibido

Acabou por escolher um estudante espanhol, licenciado em educação social e com várias experiências de voluntariado, em Espanha e na Grécia, que colaborou com várias ONGs sediadas em Atenas, e uma jovem italiana, também licenciada em direito e com um segundo mestrado em direitos humanos, que fez voluntariado na Grécia, na European Lawyers in Lesvos.

Diz que o email que ela lhe enviou, há meses, a contar que, depois de lá ter trabalhado como voluntária, acabou por ser contratada pela organização de advogados e está atualmente baseada em Tessalónica, a preparar requerentes de asilo para irem a entrevistas, foi “possivelmente” o melhor que já recebeu na vida. “Costumo dizer, sem vergonha, que as bolsas são um ato de egoísmo: sinto que, através dos outros, estou a contribuir para um mundo melhor. Contribuí para esta pessoa mudar o mundo dos outros.”

Chegou a Portugal há um ano, vive em Odivelas, é viúvo e descrito como “calmo”. Quem é o atacante que matou duas pessoas no centro Ismaili?

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