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Não há Serra do Pilar, não há rio e nada se estende até ao mar. Mas há um velho casario que mal chegamos a Eisenach nos prende o olhar. É bem no cimo de uma das maiores colinas da cidade da antiga RDA que jaz o velhinho Hotel Fürstenhof. Ainda não está morto, mas também não parece haver paliativo possível para salvar as ruínas daquele que já foi o maior hotel da região. Desde as termas, aos casamentos, às grandes festas e convenções, até Adolf Hitler passou por aqui e discursou perante um salão de baile completamente cheio.
Hoje, por entre grades e cadeados, trava-se uma luta nos tribunais pelo futuro do hotel — ou do que resta dele. De ícone da hotelaria da classe alta até parque de diversões de exploradores de locais abandonados, o Observador visitou o velho Fürstenhof na reta final de um processo que ainda não deu resposta à pergunta que todos fazem em Eisenach: afinal, o hotel vai continuar de pé ou não?
A visita de Hitler, que “despediu” o chefe da polícia
A história do Hotel Fürstenhof começa há quase 200 anos. 170, para sermos mais concretos. Foi nesse ano que, do alto de uma colina de Eisenach, Samuel Liebetrau preparou os terrenos que um dia veriam crescer o mais imponente edifício da região. O espaço passou de mão em mão: o geólogo Johann Georg Bornemann comprou as terras em 1861 e construiu lá a “Villa Bornemann”. Quando morreu, dois arquitetos decidiram ampliar o espaço e reconstruí-lo. Foi aí que nasceu, em maio de 1902, o “Kurhaus Hotel Fürstenhof”. O primeiro nome significa “casa de spa”. O terceiro é uma espécie de “local dos príncipes”. E foi mesmo isso que o Fürstenhof foi no princípio da sua vida, como se pode ler na primeira brochura de sempre do espaço.
A classe média alta agarrou-se ao portentoso edifício e tentou transformar a cidade a partir daí. O objetivo era tornar Eisenach numa cidade-termal, aproveitando o spa do Fürstenhof como ponto de partida. Não correu bem e as termas ficaram-se só pelas quatro (ou mais) paredes do edifício. Mas nem foi por aí, pelas quentes águas, que se notabilizou o grande hotel. A joia da coroa era mesmo o grande salão de baile. Na altura da inauguração, já lá cabiam 1.800 pessoas, o que bastava para ser desde logo o maior salão de eventos de todo o estado da Turíngia. Com tamanho sucesso, cedo a capacidade foi aumentada para 2.000. E de repente, todo um mundo cabia no Fürstenhof: “É um espaço que tem um significado para as pessoas. Muitos dos moradores de Eisenach casaram ali. Fizeram-se no hotel muitas festas, grandes eventos culturais, convenções. Sem dúvida de que foi o melhor hotel da região durante muito, muito tempo”, explica ao Observador o vice-presidente da Câmara Municipal de Eisenach, Christoph Ihling.
Tal sucesso não passou despercebido aos grandes poderes políticos. Um salão para dois milhares de pessoas, com boas instalações, e numa região central da Alemanha? Claro que os casamentos ficaram em stand by e a colina passou a ser cenário para eventos políticos, ainda mais numa altura de grande instabilidade. No final da década de 20 e início de 30, os véus das noivas caíram e foram substituídos pelos cartazes das inúmeras campanhas eleitorais. Era no “Der Ehemalige Festsaal” — o grande salão de baile — que todos queriam fazer comícios. E entre todos, uma figura que marcou a Alemanha e o mundo: Adolf Hitler.
A primeira vez que o “Führer” pisou o chão do Hotel Fürstenhof, ainda não tinha esse título. Era “apenas” presidente do NSDAP, o partido nazi alemão. Foi a 13 de janeiro de 1927, seis anos depois de ter assumido a liderança do partido, mas ainda longe do início da II Guerra Mundial. Nessa altura, Hitler estava proibido de falar em público em alguns estados da Alemanha. Por exemplo, na Baviera, só em março desse ano foi autorizado a fazer comícios. Com limitações dessas, era habitual haver casa cheia onde podia falar livremente e foi isso que aconteceu no Hotel Fürstenhof. O salão de baile encheu e não coube mais ninguém. Num espaço com capacidade para 1.800 pessoas, dizem os jornais da época que estavam mais de 1.700. Mas nada comparado com a segunda ocasião em que visitou Eisenach.
Aí, já com o salão a permitir a entrada de 2.000 pessoas, a segurança foi apertada, tal como toda a gente na sala. Hitler falou novamente a 23 de outubro de 1932, a poucos meses de se tornar chanceler alemão, mas já com essa convicção formada. Foi o orador principal de um evento da “concelhia” do partido nazi. Aí, Hitler já era Hitler, e por mais apoio que reunisse, também juntava anticorpos. E um deles estava na polícia de Eisenach. “O chefe da polícia de Eisenach da altura tentou evitar que o Hitler falasse aqui. Disse que não era seguro, que a cidade não conseguiria garantir a segurança do Führer, que não era boa ideia. Certo é que Hitler foi mesmo e passado uns tempos o chefe da polícia seria afastado. Forçaram-no a reformar-se”, explica Christoph Ihling. Talvez o saudoso chefe tivesse razão, porque apenas cinco meses depois, a bandeira nazi, de suástica bem visível, foi içada pela primeira vez na Câmara Municipal da cidade.
Hitler foi sem dúvida a maior figura a ficar hospedado no Fürstenhof, mas não foi o único personagem político. Wilhelm Pieck, primeiro e único presidente da República Democrática da Alemanha, passou por lá, tal como Erich Honecker, antigo Presidente do Conselho de Estado da Alemanha Oriental. Mas nenhum bateu a lotação conseguida por Hitler. Ainda assim, diz o vice-presidente da Câmara Municipal de Eisenach, Christoph Ihling, a passagem do líder nazi pelo hotel não é hoje muito valorizada: “A passagem do Hitler por cá é apenas um ponto da longa história do hotel. Aliás, nem é um facto conhecido por toda a gente aqui na cidade”.
Demolir ou não: eis a questão
Quando planeámos a visita ao Hotel Fürstenhof, o desejo — ainda que com algum receio — era entrar no edifício. A beleza das ruínas valia o risco. Porém, fomos barrados ainda antes da porta. Para além do espaço estar ainda mais deteriorado do que as fotografias faziam prever, também os gradeamentos e cadeados colocados à volta da fachada não deixam ninguém passar. Pelo menos os menos aventureiros. “Era frequente exploradores entrarem aqui. Havia empresas especializadas em sítios abandonados que criavam visitas guiadas pagas e tudo. Faziam sessões de fotografias. Entretanto o dono do terreno proibiu mesmo e colocou a vedação. Ainda assim, há quem arrisque”, explica fonte da autarquia de Eisenach.
E estando no terreno percebe-se porquê. Passar ao lado do Fürstenhof é como regressar ao passado. O que não ruiu está intacto como nos anos 90′, quando fechou. Depois da II Guerra Mundial, o setor da hotelaria alemã teve uma acentuada queda na procura. Nos anos 50′, até sofreu um “rebranding” e passou a chamar-se “Hotel Stadt Eisenach”, recuperando o nome original em 1991. Mas aí, já era tarde demais. Longe dos tempos áureos, o Fürstenhof fechou portas em 1996 e desde aí — há quase 30 anos — que ninguém lhe tocou. As fotografias do que resta do interior mostram isso mesmo e daí também a curiosidade para explorar, travada agora pelos donos e pela autarquia. E são precisamente estas duas partes que têm estado em confronto.
A luta já dura há vários anos, mas tem conhecido os maiores desenvolvimentos nos últimos três. Em 2021, o Tribunal Administrativo de Meiningen ordenou à autarquia de Eisenach que autorizasse o proprietário do terreno a demolir o edifício. Sem possibilidade de pedir recurso, a Câmara recorreu então para o Tribunal Administrativo Superior de Weimar, esperando ainda uma já longa decisão. O objetivo, diz Christoph Ihling, vice-presidente da Câmara Municipal de Eisenach, é impedir uma demolição total e sem plano: “Não vamos deixar que mandem abaixo o hotel. Só o permitiremos se houver abertura e planos para fazer um novo edifício. É isso que defendemos. Só deve haver demolição se houver uma nova opção para aquele espaço. Somos contra demolirem o hotel e o espaço ficar vazio. E queremos saber quais são os planos primeiro”, diz ao Observador.
E por enquanto o plano passa por apartamentos de luxo, mas sem preservar a fachada ou qualquer característica original do hotel. Desde 2004 que a proteção do Fürstenhof foi suspensa, tendo em conta a degradação do espaço durante a época da RDA. Mas vinte anos depois, a autarquia não desiste dessa proteção. “O nosso grande desejo é que haja ali, naquele espaço, um grande edifício. Que seja visto como era visto o Fürstenhof. Que tenha a mesma frente, que seja semelhante. Um edifício que mantenha a identidade da cidade. Não queremos construção barata ali, só à procura de dinheiro fácil. Tem de ser um bom edifício, com uma frente bonita, com arquitetura de topo. É isso que as pessoas querem ver ali e era isso que gostávamos que acontecesse”.
Por enquanto, a decisão ainda não está tomada e não há previsão de quando será conhecida. Resta esperar e viver nas memórias que o antigo hotel deixou para a região. E essas, explica Christoph, vão manter-se sempre: “O hotel é um edifício muito especial. Parecia um castelo, era muito muito bonito. E está muito bem construído. É um dos lugares que conseguimos ver a partir de toda a cidade. Mesmo quem está de passagem, de carro, e atravessa este nosso pequeno vale, dá de caras com o edifício. É por isso que é importante para nós”.