Melhor jogador em Portugal: Chalana e Oliveira.
Melhor jogador lá fora: Maradona e Conti.
Jogador do futuro: Litos.
Ídolo dos seus tempos de criança: o trio Oliveira-Manuel Fernandes-Jordão.
Outros desportistas que admira: Björn Borg.
Onze ideal: Bento; Gabriel, Humberto, Eurico e Inácio; Carlos Manuel, Oliveira e Romeu; Jordão, Manuel Fernandes e Chalana.
O melhor filme: Os Salteadores da Arca Perdida.
O melhor estádio: Parque dos Príncipes, em Paris.
O melhor hobby: Cinema.
Comida preferida: Lombinhos de vitela e marisco.
Clube de infância: Benfica.
Isto é Futre em entrevista ao jornal desportivo Off-side, no ano de 1983. Muitos anos depois, ei-lo de novo em grande forma.
E esta fotografia, hein?!
Xiiiiiii, grande equipa. Isto é juvenis, 1980-81.
Isso mesmo. Conheces esta malta?
Ora bem, deixa-me cá ver: em cima, da esquerda para a direita, o Figueiras, guarda-redes. Depois, Rui Filipe, eu, o back direito Ferrinho, Dito e Jorge Tavares. Em baixo, Araújo, Eugénio, Luís Pereira e Quaresma.
Quem era o treinador?
Aurélio Pereira, o grande. Vou contar-te uma história engraçada com ele.
Conta.
De vez em quando, apareciam nos treinos do Sporting uns miúdos levados pelos pais. Não eram uns pais quaisquer: eram amigos deste e daquele, eram pessoas influentes. E levavam os filhos na esperança de os meter a jogar no Sporting.
Assim, sem mais nem menos?
Sabes como é, não é? A malta com poder acha sempre que pode entrar onde quer.
No Sporting, nem pensar. Imagino.
Imaginas bem, Ruizinho. Nesses treinos em que os miúdos apareciam levados pelos papás, o Aurélio ia ter comigo e segredava-me ao ouvido: “Hoje vou pedir para te agarrares à bola e partires a loiça toda”.
E?
Agarrava-me à bola e driblava por ali fora. Uma, duas, três vezes. Avançava, fintava, recuava, fintava outra vez e por aí adiante. Aquilo era um festim para não deixar dúvidas ao pai de que o filho não estava em condições de jogar àquele nível. Quando acabava o treino, o Aurélio virava-se para os pais e dizia-lhes “viu o mesmo que eu, não viu?” em jeito de não apareça cá nos próximos tempos.
Como eram esses tempos nas camadas jovens?
Maravilhosos.
Ganhaste alguma coisa?
Toda uma vida. Imagina: tinha 11 anos quando fui do Montijo para o Sporting e apanhava o barco todos os dias para treinar.
Com que idade foste para o lar do jogador?
Só aos 14. Passei lá um ano inteiro.
E como foi?
Pffffff, a loucura. No lar do jogador, via heróis de outras modalidades, como os do atletismo: Ezequiel Canário e os irmãos Castro. Só te digo isto: o Domingos e o Dionísio ficaram com o melhor quarto do lar. Como passavas o dia no lar, era frequente veres todos os jogos possíveis e imagináveis.
Lembras-te do quê em concreto?
Olha, andebol e basquetebol.
E jogadores?
Ia ver o Carlos Silva. Que guarda-redes de andebol, o gajo defendia tudo. No basquetebol, a figura era o Rui Pinheiro. Ele metia todas as bolas, umas atrás das outras.
E futebol que é bom?
Fazia assim: Alvalade num fim-de-semana, Luz no outro.
Luz?
Sim, claro. Quando o Sporting jogava fora para o campeonato, ia ver o Chalana. Não, brincas?
O Chalana, ‘tá boa.
Ia à Luz só para ver o Chalana. Era o meu ídolo. Como tinha o passe, metia-me num autocarro e lá ia eu. Nos domingos à tarde, era mais tranquilo. Nas quartas-feiras europeias, era mais divertido. Jogos à noite transmitiam sempre outra sensação. Se fosse um adversário conhecido, a adrenalina subia e de que maneira. Vi Bayern, Liverpool, M’Gladbach, Nantes. Grandes jogos, grandes ambientes. E, claro, o Chalana a partir aquilo tudo. Ele fintava com o corpo, só com o corpo. Sem tocar na bola. Vi adversários cair só com a finta de braços.
Chalana, esquerdino como tu.
Quando comecei a ver futebol com olhos de ver, tinha aí uns 10/11 anos, espetavam-me as memórias do Mundial-66. Epá, Portuga tinha Hilário, Vicente, Coluna, Jaime Graça, Eusébio, Torres, José Augusto. Tinha esses todos. Sabes em que me fixei nos movimentos todos?
Simões?
Claro, o esquerdino. Que , por acaso, jogava tão bem com o esquerdo como com o direito. Sempre me fixei nos esquerdinos. Há três grandes: Simões, Chalana e eu.
[risos]
Deixas-me entrar neste top?
Claro, bem-vindo. Quem é o quarto mosqueteiro?
Era aí que queria chegar. Durante um tempo, ainda pensei no Dani. O miúdo fez maravilhas naquele Mundial sub-20 no Qatar, em 1995. A forma como ele marcou o golo à Argentina foi divinal. Só que depois [e faz o gesto de levantar voo, com a mão esquerda].
E agora?
Bernardo, o nosso Bernardinho. O do Monaco. Vai ser o quarto esquerdino, tenho a certeza.
[mete-se de lado a primeira fotografia e exibimos a segunda]
E esta, hein?!
Isto aqui é o Sporting-Porto, para a Taça de Portugal.
Porque não o do campeonato?
Porque aí joguei a titular, com o número 10. Neste da Taça, entrei ao intervalo. Daí o 16.
Como foi?
Empatámos 1-1, após prolongamento, e fomos eliminados nas Antas, por 2-1.
Como sabes isso tudo?
Fácil, dérbis e clássicos puxavam por mim. Nem dormia na véspera.
Também eras assim nos juniores, juvenis e iniciados?
Claro, a adrenalina tomava conta de mim. Era uma coisa preciosa, a pressão. Uma vez, joguei a final de iniciados no sábado e a final de juvenis no sábado seguinte.
Ganhaste?
Perdi as duas. A primeira nos penáltis, com o Porto, em Leiria. A segunda com o Braga, em Coimbra.
Foste campeão alguma vez?
De juniores, em 1983. O meu último jogo foi nas Antas, com 40 mil nas bancadas. Ganhámos 2-1.
O teu último jogo?
Depois segui viagem para os EUA.
Com o Sporting?
Sim, digressão pós-época. Os juniores continuaram o campeonato, eu fui desviado para os seniores. Antes, ligeiramente antes, tinha-me estreado com a Portuguesa dos Desportos, num particular em Alvalade. Ganhámos 2-0 e houve porrada de meia-noite, porque eles [os da Portuguesa] pegaram-se com o árbitro. Cobóiada de meia-noite. Depois fomos para os EUA e jogámos quatro vezes.
Boa, a digressão?
Ganhámos os jogos todos de goleada.
Com o António Oliveira?
O Oliveira era o meu companheiro de quarto e já não era o treinador.
Sentia-se a pressão no ar?
Fazia faísca, aquilo era complicado com o Manel e o Jordas. ‘Tás a ver, um antigo treinador-jogador novamente na posição de jogador.
Jordas = Jordão?
Sim, génio.
Manel = Manuel Fernandes?
Outro génio. Às vezes, apanhava táxi do Montijo para o Sarilhos e o Manel dava-me boleia para Alvalade. No caminho inverso, também. Com sorte [Futre parte-se a rir], o Manel deixava-me em casa.
O treinador era o…
Venglos.
Foi ele quem te lançou?
Nem mais. Na pré-época 1983, em Lamego, o trabalho dele, juntamente com o preparador físico Radisic, serviu-me para a vida. Aquela coisa dos pesos fez-me bem, sabes? Ganhei corpo e força. Lançou-me num Sporting-Penafiel, da 1.ª jornada do campeonato.
Partiste a loiça toda?
Dizem que sim. Ao intervalo, 0-0. No fim, 5-1. O meu marcador era o José Eduardo, com quem tinha treinado diariamente no Sporting durante a época anterior. Com ele mais Barão e Virgílio. Duros, durinhos. O que me fica na cabeça é o golo do Penafiel, um penálti cometido por mim. Nem nos distritais.
Como?
Nem um defesa dos Distritais fazia aquilo. Digo-te, nunca mais me aproximei da grande área.
Nesse jogo?
Na vida. Nunca mais entrei na minha área. ‘Tá quieto.
Na outra área, marcaste dois golos.
Um ao Vitória, em Setúbal, e outro em Alvalade, ao Portimonense, ao senhor Vítor Damas.
Senhor?
O Vítor? O respeito é muito bonito. Ele era top, elegantíssimo. Marquei-lhe de livre directo. [passa a mão pelo braço esquerdo] Até me arrepio todo.
[trocamos-lhe as voltas e toma lá a terceira fotografia]
E esta, hein?!
Xiiiiiii, isto é a minha primeira vez a titular na seleção. No Restelo, ganhámos 1-0 à Bulgária. Golo do Gomes, de penálti.
Quem são estes aqui?
Em baixo, Bento, Frasco, Jaime Pacheco, Sousa, eu e Diamantino. Em cima, Eurico, Gomes, Inácio, João Pinto e Tardelli.
Tardelli?
É a alcunha do Lima Pereira.
G’anda pinta.
Pinta tem o Lima Pereira. E o Tardelli, já agora.
Isto já é em Setembro 1984. Como é que não vais ao Euro-84?
Lesionei-me num jogo dos sub-21. Rasgo-me todo, à conta de uma entrada de um jogador da URSS, se não me engano. Levei uma medalha daquelas. Que me marcou para toda a vida. Ainda fiz a recuperação, só que o Sporting meteu-me a jogar um jogo importante com o Benfica, nos juniores, e piorei. Se não fosse isso, ia ao Euro-84. Tenho a certeza, disse-me o José Augusto [seleccionador dos sub-21, depois dos AA no Euro-84].
Vais é ao Mundial-86, no México.
Nem me fales. Costumo dizer que chegámos lá primeiro que os mexicanos.
Nem correu tudo mal, ganhámos à Inglaterra.
Aquilo não foi a vitória contra a Inglaterra, foi a vitória contra toda aquela confusão.
Então?
Chegámos lá muito cedo. Demasiado cedo. Passámos a primeira semana à borda da piscina. Tudo bem, na boa. O problema é a segunda semana sem jogos oficiais. E a terceira. E por aí adiante. Não havia escapatória, [fala em tom irónico] fizemos greve só para animar o nosso dia-a-dia.
O dia-a-dia era puxado?
Puxado? A selecção estava mais dividida que nunca. No primeiro dia, vamos comer e só há uma mesa para todos os jogadores. Chegam lá os do Benfica mais os do Porto e separam-nas.
Ficavas com quem?
Ao lado do senhor Vítor.
O Damas?
Sim. Eu estava numa situação complicada. Era do Montijo e dava-me bem com todos os do Benfica. Só que era do Porto. ‘Tás a ver?
Tramado. Só jogaste a titular uma vez.
O último, com Marrocos. Foi um dos dias mais negros da minha vida. Fui eleito o jogador do ano e era eu e mais dez no Porto. Na selecção, banco. Inexplicável.
Isso é mau?
Nãããão, isso deu-me força para o futuro. Nunca esqueci essas lições durante o Mundial-86. Ajudou-me a ultrapassar problemas daí para a frente.
[guardamos a terceira fotografia e mostramos-lhe a quarta fotografia]
E esta, hein?!
Xiiiiiiii, isto é um Sporting-Porto em 1986.
[é mesmo, Março 1986] Como é que sabes?
O Oceano denuncia o filme todo. Ganhámos 1-0, golo de livre directo do Celso. Lembro-me perfeitamente de uma arrancada minha desde o meio-campo e o Oceano a perseguir-me insistentemente.
Que tal?
Dei-lhe três metros, cheguei à linha e cruzei. Alguém falhou o golo.
Um ano depois, vais para o Porto?
Sim, uma só época no Sporting. Ganhava 70 contos [350 euros] por mês e o FC Porto ofereceu-me 27 mil contos em três anos [134 mil euros] mais carro e casa. Falei com o Sporting e pedi-lhes 18 mil contos em três anos, 6 por ano. Eles disseram-me que estava louco e eu fui para o FC Porto a alegar falta de condições psicológicas. Aquilo que ainda hoje questiono é se Armando Biscoito, dirigente a quem pedi o aumento, chegou mesmo a falar com o presidente João Rocha sobre as minhas exigências.
Que tal a vida no Porto?
Os meus pais é que sofreram com essa mudança. A sua privacidade era constantemente ameaçada. Partiam vidros das janelas, batiam à porta, telefonavam a horas escandalosas. Talvez por isso, não sei, estou a especular, a minha mãe nunca me viu jogar ao vivo. E eu no Porto, uma cidade pequena, onde não podes sair à noite regularmente, se não estás marcado. O Octávio Machado [adjunto de Artur Jorge] ia bater-me à porta muitas vezes à meia-noite. Marcação cerrada. Se não fosse ele, não teria sido o Futre que todos conhecem. Precisava de uma carraça assim. No Porto, havia o polícia mau, que era o Octávio, e o polícia bom, o João Mota. Daí para cima, Artur Jorge e, depois, Pinto da Costa. Se fosses chamado ao pintinho, ui ui ui. Quer dizer, o Artur Jorge também era assim: ui ui ui. Se eu olhava nos olhos do Octávio a cada bronca, isso não acontecia com o Artur Jorge. Nem pouco mais ou menos. Baixava a cabeça e ouvia-o. Ele não te deixava meter o pé em ramo verde.
[e, voilà, uma foto do Atlético Madrid]
Por falar nisso de meter o pé, e aqueles penáltis hein?!
Ainda hoje vejo e revejo esses lances, e outros, em vídeos VHS e DVD’s. Às vezes, nem eu sei se foi penálti. Às vezes, é penálti claro. Outros, nem tanto [mais gargalhadas]. Okay, não é penálti pura e simplesmente.
Como eram os árbitros?
Havia para todos os gostos e feitios. Um deles, em Espanha, já sabia como era.
Quem?
Ramos Marcos, de Salamanca. Apitava quase todos os dérbis entre Atlético e Real. Já nos conhecíamos tão bem que ele sabia se era ou não penálti de acordo com o meu teatro. Se desse voltas e mais voltas no chão, ele não apitava. Se caísse e começasse a protestar como um louco, ele sabia que era era penálti. Era um código engraçado. Só com ele.
Algum caso mais flagrante?
Talvez em Coimbra, com a Académica. Há um primeiro penálti, em que sou mesmo carregado. O Gomes vai lá e falha. No último segundo, já com 1-1 no marcador, num relvado mais lamacento e escorregadio que sei lá o quê, alguém chutou lá de trás e eu atirei-me à bola como se fosse o primeiro sprint. Aproximo-me da área e empurro a bola antes do Kikas. Entro na área e dou um mergulho memorável. De filme, um daqueles para Óscar. E o árbitro, lá perdido no meio-campo, assinala penálti. O Kikas nem me tocou. Atirei-me mesmo. Prá aí um palmo de diferença, entre o joelho do Kikas e o meu. No Domingo Desportivo, só se vê que não é penálti à segunda repetição. O Porto ganhou aí o jogo, com um penálti do André. Só há um pormenor.
Então?
Muitas vezes havia penáltis sobre mim que não eram assinalados. E esses é que me faziam perder a cabeça. Quando o defesa batia-me forte e o árbitro nada de nada, ficava pior que estragado.
E o contrário?
Uyyyyy, tenho o Atlético-Osasuna em que se assinalam três penáltis sobre mim. Só marcámos o primeiro, falhámos os outros dois e eles empataram 2-2 a cinco minutos do fim. Isso é em 1990.
Dois anos antes, és eleito pelos próprios árbitros espanhóis o melhor piscinero da Liga.
Tem de ser com drama, senão… Eu, pelo menos, fazia isso. Atirava-me com estilo. Tem de ser. Só assim é que os árbitros caem na fita. Havia árbitros que me conheciam de ginjeira, sabiam da minha queda para o mergulho, e, mesmo assim, apitavam penáltis que não eram. Arrancar um penálti é como marcar um golo no sentido de ajudar a tua equipa a chegar ao objectivo.
Alguma bronca memorável por culpa de um penálti?
Espera aí, deixa-me ver. Logroño, 1989-90. Último jogo do ano, um nevoeiro denso. Fala-se em adiar o jogo, eu, como capitão do Atlético, quero jogar para evitar ir lá outra vez. Aquilo era tramado. Os adeptos muito apaixonados e tal. Vamos a jogo e há um penálti perto do fim, com 0-0. É sobre mim e fico no chão a rebolar, cheio de dores. Olho pelo canto do olho e o árbitro dá penálti. Continuo a queixar-me. Até sou substituído. Ganhámos 1-0, com esse golo de penálti do Manolo. O pessoal está furioso e o que fazemos nós? Apresento-me de braço ao peito na conferência de imprensa. Só para dar a ideia de. Sabes?
Estou a ver.
Não estás não. Só conseguimos sair de lá às tantas. E chegámos a Madrid quase de manhã. Mais valia ter adiado o jogo.
[toma lá a sexta fotografia]
Por falar em adiar, e esta hein?!
Xiiiiii, o Mário Soares. Foi ele que me safou da tropa.
Pois, já ouvi essa história.
Era para entrar ao serviço a 1 Setembro 1987, em Castelo Branco. Só que não podia, já tinha assinado com o Atlético e a minha vida estava a mudar. Fui à embaixada de Portugal em Madrid e falei com o Mário Soares pelo telefone. Na primeira vez, ele queria mesmo que regressasse a Portugal. À segunda, já não. Disse-me que era uma honra anunciar-me como primeiro português a ter estatuto de atleta de alta competição. Como resultado, ia ter um adiamento de oito anos do serviço militar. Disse-me: “Tens de prometer-me uma coisa: triunfa por Portugal”.
Já eras jogador do Atlético Madrid?
Exacto. Somos campeões europeus em Viena, 1987, e o Porto negoceia-me. Primeiro com o Inter.
O Inter?
Era eu e o Scifo, os desejos do presidente [Ernesto] Pellegrini. Até fomos jantar a casa dele e tudo.
Fomos, quem?
Eu, Jorge Nuno e D’Onofrio.
Percebeste alguma coisa?
Nãããã, não falava italiano. O D’Onofrio, sim. Era ele quem me explicava as coisas.
E assinaste?
Apareceu entretanto o Atlético Madrid, com o Gil y Gil.
Era um personagem.
Ele queria contratar-me e nem sabia quem eu era. Quando nos cruzámos pela primeira vez, ele aproximou-se de mim, olhou para os meus chinelos que diziam Futre e abanou a cabeça, como quem dizia “ah, és tu”.
Como era ele?
Amor-ódio. Quando estava bem-disposto, tratava-me por Paulinho. Quando estava virado do avesso, era hijo de puta para aqui e para ali. Ainda hoje penso no dia em que me contratou: de manhã, estava feito para o Inter; à tarde, estava numa discoteca em Madrid a ser apresentado a cinco mil pessoas. O Gil y Gil aceitou todas as condições do Porto e também as minhas. Quando digo todas, é todas. Mesmo. Nem desviou uma vírgula. Como a história do Porsche: pedi e ele deu-me sem pestanejar.
O amarelo?
Esse mesmo, era o único que havia no stand naquele dia.
[zascatrapás, outra fotografia do arco da velha; aí vão sete]
Do Atlético para o Benfica.
Este jogo com o Gil é na jornada seguinte ao dérbi com o Sporting.
Marcaste o 1-0. E aqueles festejos?
Esse festejo de braços no ar, na direção da bancada VIP, é para o Sousa Cintra.
Porquê?
Ele quis contratar-me, só que nunca chegou a aparecer com o dinheiro prometido.
Vai daí, foste para o Benfica?
Eles pagaram-me. Quando marquei o golo da vitória ao Sporting, festejei para o Sousa Cintra.
E ele sabe?
Sabe, sim.
Já estiveste com ele?
Reencontrei-o há poucos dias e estava a pensar “tu queres ver que ele vai dizer alguma coisa?”. Nada de nada. Vi-o, abri os braços e demos um grande abraço. Amigos como dantes. Falei-lhe do golo e ele “ó Paulo, isso já foi há muito tempo”. Assim é que é.
O teu melhor jogo no Benfica é o da final da Taça?
Sem dúvida alguma: Boavista, 5-2. Que tarde memorável. Saiu-me tudo tudo tudo bem. Tudo o que sonhei acordado.
Como assim?
Epá, é normal sonhares com jogadas no dia anterior. E tudo aquilo que sonhei virou realidade: dois golos, uma assistência e um penálti.
Dividias o quarto com quem?
Na véspera, o Hernâni. Geralmente era com o Fernando Mendes, do Montijo como eu. Dessa vez foi o Hernâni. Sonhámos alto e, olha, deu no que deu.
[caabuuuuum, Futre apresentado no Milan]
E este sonho aqui? Como é que vieste aqui parar?
Assinei pela Reggiana e estreei-me com a Cremonese. Marco um golo e lesiono-me com gravidade, numa falta ali junto à linha lateral. Só volto a jogar na época seguinte, em 1994-95. Faço uns 12/13 jogos. Quase a acabar a época, o presidente da Reggiana chama-me ao gabinete, dá-me um papel e põe-se a andar.
A andar, como assim?
Já vais ver: o papel era um faxe enviado pelo Milan.
Uauuuu.
O Milan queria que eu treinasse à experiência. ‘Tás ver, não? Eu treinar à experiência. Por isso é que o presidente deu-me o papel e saiu do gabinete. Foi ver se estava a chover. Fiquei ali a ler o papel umas duzentas vezes. Emoções mistas, não é? O campeão italiano quer-me. É o Milan, porra. Só que é à experiência e isso dá-me aqui a volta, sabes?
E depois?
Disse ao presidente que ia pensar no assunto. No dia seguinte, disse-lhe que ia aceitar o convite do Milan.
E lá foste.
Pré-época na Ásia, fui titular sempre e marquei no último jogo, com o South China, onde jogava o Pedro Xavier. Estava imparável, sentia-me bem, muito bem. Queria mostrar tudo ao Capello e dificultar-lhe a vida ao máximo. Era ainda o tempo dos quatro estrangeiros por equipa.
Quem eram eles no Milan?
Desailly, Savicevic, Boban e eu. Na Serie A, só podiam jogar três de início e um no banco.
Tu jogaste?
Fui uma vez para o banco e fui uma vez titular. Sagrei-me campeão na última jornada, 7-1 à Cremonese. Outra vez a Cremonese.
Mas então da pré-época até à última jornada, andavas onde?
Tive uma recaída e passei a época em recuperação. Dormi noites e noites em Milanello.
O centro de estágios do Milan?
Aí mesmo.
Sozinho?
Durante a semana, sim. Era obrigatório almoçar lá, disso ninguém se livrava.
E que tal?
Nem um pio. Com Capello, era assim.
Nada, nada?
Nem um pio. As regras eram mais que explícitas. Com o Capello, não havia cá brincadeiras. Ele era conhecido como Il Duro. O duro.
Aquele queixo denuncia muita coisa
Eheheheh, grande homem hein?! Um treinador de categoria internacional, fez maravilhas no Milan e também em Madrid, no Real. Era duro, disciplinado. Só assim é que se metia um plantel daqueles na ordem. Baresi, Maldini, Albertini, Baggio, Donadoni, Simone, Costacurta, Galli, Panucci, Di Canio. Este era um maluco.
O Di Canio?
Meu companheiro de quarto, o mais louco que alguma vez conheci e conhecerei. O homem não parava quieto e gostava de partilhar o seu conhecimento. Estamos a falar de conhecimento político e cultural.
Como assim?
O Di Canio mostrava-me livros e mais livros do Pasolini, filmes e mais filmes do Pasolini, queria que entendesse tudo aquilo, queria falar de todos os problemas e mais alguns. Que personagem, porra.
Imagino o reverso da medalha: tu ali sozinho sem o Di Canio, durante a semana?
Que tédio. Só que tinha de fazer isso se quisesse jogar. Não ia meter-me num carro e ir para casa todos os dias. A recuperação passava pelo conforto, tinha de descansar o joelho nos momentos livres. Por isso mesmo é que dormia lá. Sem mais ninguém.
E os jantares?
Sozinho.
Também?
Ruizinho, a malta da Primavera [juniores] jantava numa outra sala, ali ao lado. Havia uma ligação mas ninguém ousava passar essa porta. Havia o restaurante da Primavera e o restaurante da equipa principal. Não havia misturas. Eu não me podia juntar a eles e eles não se podiam juntar a mim. Percebes a mentalidade? Eles, da Primavera, não podiam jantar na sala da equipa principal. A não ser que saltassem para a equipa principal, numa semana ou outra. Só comiam naquela sala se fossem promovidos. Este se é muito importante. Dá que pensar, dá-te força.
E a tua força?
Havia dois psicólogos do Milan que entravam todos os dias no balneário. Quando o faziam, olhavam para a cara dos jogadores e, às vezes, até apertavam as bochechas enquanto faziam perguntas banais como “estás bem?” e “dormiste o suficiente?”.
Era um teste?
Era psicologia. Se eles achassem que este ou aquele jogador não estivesse bem, levavam-no ao gabinete para falar. Durante o período da minha lesão, sabes quantas vezes fui chamado ao gabinete?
Não sei.
Zero. Zero vezes. Essa é a minha grande vitória. Eles olhavam para mim e falavam comigo, estivesse eu a correr na passadeira ou a vestir-me, e nunca sentiram a necessidade de falar comigo. Estamos a falar de profissionais da coisa, homens que detetam problemas com um olhar.
[olha olha se não é Futre em Inglaterra]
És campeão italiano no Milan e assinas pelo West Ham.
O Milan quis renovar comigo, só que havia alguns objetivos pelo meio difíceis de rentabilizar. Decidi-me pela Premier League e fui para Londres.
O West Ham de Lampard e Ferdinand?
Xiiiiiii, eram tão putos. Lembro-me bem deles. Há pouco tempo, o Lampard estava em Madrid e ele soube que estava no mesmo restaurante que eu. Então, levantou-se e foi ter comigo. Beeeeem, grande honra como imaginas: o Lampard ainda lembrar-se de mim.
Como não, montaste lá um espetáculo daqueles?
Eheheheheh, o caso da camisola 10.
Conta lá pelas tuas palavras.
Primeira jornada do campeonato inglês, Arsenal-West Ham em Highbury. Estou muito bem no balneário e escrevem a equipa no balneário. Eu com o número 16. Bronca, claro. Chamo o Redknapp e digo-lhe que não, não pode ser assim. Ele pede-me calma, eu recuso-me a vestir o 16. Lá fora, o árbitro bate à porta a pedir para irmos a jogo. Nada feito, só vou se levar o 10. Redknapp diz que não. Então mando chamar o presidente.
Do West Ham?
Claro, só ele é que podia resolver o assunto.
E ele?
Estava lá metido na bancada VIP e armou-se uma barraca descomunal. Entretanto, já passa das 15 horas. Ou seja, o jogo já devia ter começado e nenhuma das equipas em campo.
E agora?
O Redknapp não ata nem desata.
E tu?
Abri a porta do balneário e fui-me embora.
Para onde?
Chamei o meu intérprete e a minha mulher e fomos todos para o hotel. Ainda vivia num hotel.
Apanhaste um táxi em Highbury?
Ya. E desliguei o telemóvel. No hotel, dei instruções para não me passarem chamadas. Nem queria ser incomodado. Estava determinado a ganhar o braço-de-ferro. Às tantas, lá ligo o telemóvel e aquilo era um sem fim de chamadas não atendidas. Na receção do hotel, mais do mesmo: recados e mais recados. O meu intérprete também tinha o telemóvel a ser bombardeado de chamadas. Quando lhe disse para atender, fiz a ressalva “é bom que eles entendam o meu ponto de vista, se não fico-lhes com o estádio”.
Hããã?
Ruizinho, o meu contrato dizia que ia jogar com o 10. Estava lá, escrito e assinado por baixo.
E o dia seguinte?
Tudo resolvido, entre advogados. E joguei com o 10.
Nove jogos.
É isso, o joelho deu mais problemas. Disse ao Redknapp para ficar descansado, ia encontrar-lhe um esquerdino como eu, também português.
Então?
Fui a Portugal, falei com o Porfírio, que estava no Sporting, fiz um vídeo à pressa, com as melhores jogadas dele, e levei ao Redknapp. No dia seguinte, Porfírio no West Ham.
G’anda malha.
O Porfírio era grande. Tinha feito um ano 1996 bem bom: foi ele que nos qualificou para os Jogos Olímpicos em Atlanta, com aquele golo à Itália na Luz, e o Oliveira levou-o ao Euro em Inglaterra. Havia ali futebol para dar e vender.
E que tal?
Ainda marcou uns golos. Ao Chelsea, se não me engano. Era bom, muito bom.
[aqui está o que é, a décima e última fotografia]
Só para acabar.
Uma só palavra: Sal-ti-llo.