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(Artigo de 15 de novembro de 2017 que é republicado e atualizado a 6 de setembro de 2019 a propósito da morte do ex-Presidente do Zimbabué)
Robert Mugabe, um dos líderes pós-independência mais célebres de toda a África e também um dos que governo com maior brutalidade, morreu esta sexta-feira aos 95 anos. Para a História, fica um homem que chegou a estar na vanguarda dos movimentos de libertação da África colonial e do nacionalismo africano, conseguindo nessa fase inicial a atenção de muitos dentro e fora do mundo ocidental. Porém, já com os olhos do mundo em cima, Mugabe passou invariavelmente outra imagem ao longo das décadas em que governou: para ele, tudo valia para ter poder.
Nasceu a 21 de fevereiro de 1924, na aldeia de Kutama, então na Rodésia, filho de um carpinteiro e uma doméstica. Ali, a pouco mais de 90 quilómetros da capital Harare, Mugabe teve uma educação católica, numa escola de jesuítas. “Era um daqueles trabalhadores silenciosos que são infalíveis, usava cada minuto do seu tempo. Já na altura, não era muito dado a risotas”, disse ao The Guardian, num perfil do ditador em 2001, um dos padres responsáveis por aquela escola.
As descrições que sobram dos tempos de Mugabe daqueles tempos, apontam invariavelmente para um jovem sério, pouco dado a brincadeiras e que, de uma maneira ou de outra, viria a ter voos mais altos, bem para lá de Kutama. Essa certeza foi partilhada intensamente por duas pessoas. Uma delas foi o padre Jerome O’Hea, professor muito próximo de Mugabe que chegava a pagar do seu bolso as mensalidades da escola secundária daquele jovem.
A segunda pessoa a fazê-lo, e talvez com uma intensidade ímpar, foi a mãe de Mugabe. No livro “Dinner With Mugabe”, publicado pela jornalista sul-africana Heidi Holland em 2008, um dos irmãos de Mugabe, Donato, conta que a mãe, Bona, cultivava um favoritismo de Robert entre os seus filhos que até à mesa de jantar chegava. “A nossa mãe explicou-nos que o padre O’Hea lhe tinha dito que o Robert ia ser alguém importante, um líder”, recordou Donato. “A nossa mãe acreditava que o padre O’Hea trazia uma mensagem de Deus e levava isso muito a sério. Quando a comida não chegava para todos, ela dizia: ‘Dá ao Robert’. Mas ele recusava sempre e dizia que não queria comer.”
Bona tinha esperanças de que o seu filho predileto chegasse a padre — mas de uma esperança não passou. Mugabe chegou a ser professor da escola primária em Kutama, mas em 1949, aos 25 anos, ganhou uma bolsa de estudo para a Universidade de Fort Hare, na África do Sul. O facto de aqueles serem os tempos do apartheid em muito contribuíram para formar o carácter daquela escola segregada: composta exclusivamente por alunos negros, a Universidade de Fort Hare tornou-se num bastião anti-colonialista. Além de Mugabe, passaram também por ali homens que mais tarde viriam a deixar marcas, como Desmond Tutu e Nelson Mandela.
Foi uma experiência transformadora para Mugabe, como mais tarde recordou. “Cheguei a Fort Hare vindo de um país onde a maior parte dos negros tinha aceitado serem governados pela Europa tal como as coisas estavam. A maior parte de nós achava que o único a fazer seria tratar dos nossos problemas dentro do próprio sistema. Depois de Fort Hare, houve uma mudança radical nas minhas opiniões”, disse.
Em 1958, fez as malas e partiu para o Gana, inspirado pelo facto de, um ano antes, aquele ter sido o primeiro país africano a libertar-se do colonialismo. Mugabe era um grande admirador do “libertador” do Gana, Kwame Nkrumah, com o qual procurou inspirar-se — de tal forma que, nos intervalos das aulas que dava numa escola, Mugabe assistia a aulas no Instituto Ideológico Kwame Nkrumah. Foi também no Gana que Mugabe conheceu a sua primeira mulher Sally Hayfron. Em 1960, voltou com ela para a Rodésia, comprometido com uma mudança de rumo que iria mudar a sua e, mais tarde, a de tantos outros: ia deixar o ensino e entregar-se de corpo e alma à política.
Quando voltou, passou a integrar o Partido Nacional Democrático (NDP, na sigla inglesa), mas cedo se incompatibilizou com aquele partido, que via na negociação uma ferramenta entre outras para, gradualmente, conseguir terminar com o regime de segregação. Mugabe queria mais e mais depressa, e por isso fundou a União do Povo Africano do Zimbabué (ZAPU, na sigla inglesa).
Em 1963, Mugabe foi detido logo após ter feito um discurso que chamava “cowboy” ao primeiro-ministro da Rodésia, Ian Smith. Um ano mais tarde, foi condenado pelo crime de sedição — altura em que começava também a Guerra da Rodésia. Na prisão, onde estava encarcerado com outros militantes contra o governo minoritário branco, Mugabe tornou-se numa espécie de orador motivacional para todos eles. “Estes meses, estes anos, durem eles o que durarem, não devem ser desperdiçados”, dizia.
Foi na prisão que Mugabe recebeu uma notícia que viria a moldar o seu carácter, adotando uma postura altamente vingativa perante o regime. A notícia foi-lhe dada pela irmã Sabina, que foi visitá-lo à prisão, em 1966. Do outro lado do vidro, quando segurou no telefone para falar com o irmão, Sabina já tinha lágrimas a escorrer pela cara. A notícia era dura: o filho que Mugabe teve com Sally, Nhamodzenyikaque, morreu com três anos e meio na sequência de um ataque de malária. Mais do que a morte do filho em si, foi o facto de Mugabe ter sido impedido de ir ao funeral de Nhamodzenyikaque que mais lhe custou — e que nunca esqueceu.
Em 1975, Mugabe foi solto da prisão e imediatamente foi para Moçambique, onde encontrou a mulher. Ainda no tempo em que Mugabe esteve preso, foi a partir daquela ex-colónia portuguesa que foram lançadas várias ações de guerrilha contra as tropas de Ian Smith — e assim continuou, já com Mugabe em liberdade e em posição de tomar decisões. Ali visitava vários campos de treino militar, nos quais deixava instruções muito mais de carácter ideológico do que militar. A política era o seu campo e isso confirmou-se em 1977 quando passou a liderar a União Nacional Africana do Zimbabué (ZANU, na sigla inglesa), que pouco depois viria a adotar a designação de ZANU-PF.
Foi dele que partiu a certeza de que a via violenta era o único caminho para fazer frente ao governo de Ian Smith, também ele com armas erguidas — certeza essa que o afastou irremediavelmente de Joshua Nkomo.
Foi assim até 1979, ano em que a Guerra da Rodésia chegou ao fim. Reunido em Londres sob o olhar atento da recém-eleita primeira-ministra conservadora Margaret Thatcher, os emissários de cada um dos lados acordaram, no que ficou conhecido como o Acordo de Lancaster House, o fim da Rodésia do Sul e também o fim da governação exclusivamente reservada a brancos. Em troca, Mugabe, que uma vez dissera que “nenhum dos exploradores brancos vai poder ficar sequer com um hectare de terra”, aceitou inscrever na Constituição uma garantia de que durante um período de 10 anos não haveria expropriações de terras agrícolas aos seus proprietários, exclusivamente brancos. Assim, fundou-se a República do Zimbabué, independente do Reino Unido.
Em 1980, a ZANU de Mugabe venceu as eleições, conquistando 57 entre 100 assentos parlamentares, à frente da ZAPU de Joshua Nkomo. Mugabe era, à altura, um homem respeitado nacional e internacionalmente, um ícone da libertação africana que merecia o epíteto de “guerrilheiro dos intelectuais” e cuja causa chegou a merecer uma música de Bob Marley.
Um homem aquém de Mandela
A insuspeita Thatcher chegou a descrever Mugabe como um homem inteligente — nem que fosse por comparação. Quando conheceu Nelson Mandela, a primeira-ministra britânica comentou: “Não é tão inteligente quanto Mugabe”.
Essa não é, porém, a frase inteira — e o contexto que Thatcher fez para falar dos dois homens acabou por ser, de certa forma, profético quanto à maneira como Mandela e Mugabe viriam a ser recordados. “Todos aqueles que visitaram Mandela na prisão ficaram impressionados com a sua coragem e dignidade”, disse. “A minha experiência é igual. Mandela tem uma dignidade e uma autoridade naturais. Não é tão inteligente quanto Mugabe, mas é muito mais simpático.”
Mugabe e Mandela chegaram a ser tidos como nomes equivalentes. Ambos constavam na mesma lista de líderes africanos que se dedicaram primeiro à causa anticolonialista e mais tarde contra a segregação de brancos e negros nos seus países. Chegaram a estar presos na mesma altura — embora Mugabe, que passou 12 anos atrás de grades, tenha tido menos de metade dos 27 anos de cárcere de Mandela.
A seu tempo, tanto Mugabe como Mandela fora libertados e conseguiram que os cidadãos dos seus países escolhessem com liberdade quem queriam que os governasse. Mas é aqui que a História deixa de tê-los lado a lado.
Enquanto Nelson Mandela iniciava a tarefa hercúlea de unir os dois lados da África do Sul pós-apartheid (tarefa longe de estar concluída e que tem sofrido quase tantos revéses como avanços), Mugabe começava a inscrever o seu nome na lista de líderes autocráticos africanos da segunda metade do século XX — estatuto que durou até quarta-feira, 15 de novembro de 2017, dia em que um golpe de Estado o confinou a prisão domiciliária.
Desde então, Mugabe passou a viver entre uma vida de discreta reclusão e constantes viagens até Singapura, país onde recebia tratamentos médicos e onde acabou por morrer, esta sexta-feira, aos 95 anos.
Dois anos antes de morrer, naquele que foi um dos seus últimos discursos na qualidade de líder do Zimbabué, Mugabe ainda remoía o seu passado, criticando o legado de Mandela e puxando o brilho ao seu. “O mais importante para o Mandela foi a sua libertação da prisão e mais anda. Ele deu valor àquela liberdade mais do que a qualquer coisa, mas esqueceu-se das razões que o levaram a ser preso”, disse, num discurso partidário.
Mugabe deixa para trás um legado trágico, com um país e com uma economia arruinados e uma inflação ímpar no mundo. Além disso, as quase quatro décadas de poder de Mugabe são marcadas por dois episódios de repressão.
Um deles, o massacre de Matabeleland, é um genocídio internacionalmente reconhecido — mas que alguns países convenientemente ignoraram. O outro, a expropriação de terras, é a razão da pobreza generalizada do país que, em tempos, foi conhecido como “o cesto do pão do sul da África”.
É sobre esses dois episódios marcantes da História de Zimbabué sob a liderança de Mugabe que entramos agora em pormenor.
O massacre de Matabeleland: execução do Zimbabué com o savoir-faire da Coreia do Norte
Em outubro de 1980, depois de ter vencido as eleições de abril do mesmo ano, que fizeram dele o primeiro primeiro-ministro do Zimbabué, Mugabe fez uma visita oficial à Coreia do Norte. Chegado ao regime eremita, foi recebido por Kim Il-Sung. Em solo norte-coreano, deixou-se encantar pelo Juche, a variante do marxismo-leninismo que ainda hoje é a ideologia de Estado da Coreia do Norte. Quando regressou ao seu país, era um “homem mudado”. Além de distribuir livros com discursos e citações do ditador norte-coreano entre os seus funcionários mais próximos, era frequente o The Herald, jornal estatal do Zimbabué, publicar artigos elogiosos para o regime da Coreia do Norte.
A afinidade não se limitou à ideologia e estendeu-se até aos negócios. Naquela mesma visita, Mugabe e Kim Il-sung assinaram um acordo onde os norte-coreanos garantiam formação e armamento para formar uma brigada militar de elite, externa e superior a todos os outros braços do jovem exército zimbabueano.
Em 1981, chegaram enfim ao Zimbabué 106 instrutores militares da Coreia do Norte com a missão de formar 3500 soldados fiéis ao partido de Mugabe, o ZANU-PF. O historiador especialista na Coreia do Norte Benjamin R. Young escreve que depois de uma tentativa falhada com um primeiro grupo de militares — que ficaram conhecidos na capital, Harare, pelo seu “estilo de vida esbanjador e falta de disciplina” — surgiu aquela que ficou conhecida como a Quinta Brigada, treinada pelo major general Sin Hyon Dok.
“A Quinta Brigada respondia apenas perante Mugabe e consequentemente via-se acima da lei”, escreve Benjamin R. Young no NK News.
Nos primeiros anos da independência do Zimbabué, a maior preocupação de Mugabe era manter-se no poder, livre de rivais que pudessem chegar à sua altura. Para o ZANU-PF, de Mugabe e maioritariamente com origens na tribo Shona, a primeira e maior preocupação era o ZAPU-PF, de Joshua Nkomo, apoiada pela etnia Ndebele predominava.
Numa tentativa de não perder nenhum dos gestos dos seus rivais, Mugabe convidou para o seu governo alguns membros do ZAPU-PF. Entre estes, estava o próprio Joshua Nkomo, que ficou com a pasta do Ministério da Administração Interna.
A aliança era frágil e durou pouco. Em 1981, Mugabe reorganizou o seu executivo e expulsou os membros do ZAPU-PF. Como reação, as facções militares do ZANU-PF e do ZAPU-PF, que nunca procederam a um verdadeiro desmantelamento após a guerra civil que terminou em 1980, voltaram a contar espingardas. Em 1982, o ZAPU-PF, com destaque para Joshua Nkomo, foi acusado de estar a preparar um golpe de Estado.
Em 1983, a tensão atingiu um pico. Num discurso em Matabeleland, Mugabe foi direto. “Temos de lidar com este problema sem hesitações”, disse, segundo o livro Mugabe: Power, Plunder, and the Struggle for Zimbabwe’s Future, do jornalista britânico Martin Meredith. “Não chorem se durante este processo os vossos familiares forem mortos. Onde houver homens e mulheres a dar comida aos dissidentes, quando chegarmos lá acabamos com eles.”
O alvo estava escolhido: as populações civis de Matabeleland, da etnia Ndebele, onde o apoio ao ZAPU-PF de Joshua Nkomo era predominante. Seguiu-se um genocídio que, em Shona, o dialeto usado por grande parte dos apoiantes do ZANU-PF, ficou conhecido como Gukurahundi. Ou seja, algo como “as primeiras chuvas que ajudam a separar o trigo do joio”.
Ao todo, os 3500 soldados da Quinta Brigada terão matado cerca de 20 mil pessoas da etnia Ndebele, sob a acusação de serem dissidentes ou de colaborarem com eles. A execução foi zimbabueana, mas o savoir-faire era norte-coreano.
A barbárie daquele genocídio está bem explícita nos vários relatos recolhidos no relatório “Breaking the Silence”, da autoria Comissão Católica Pela Justiça e Paz no Zimbabué. Um dos testemunhos pertence a uma rapariga de 15 anos que foi levada da sua casa a meio da noite, juntamente com três irmãos mais velhos. Sob escolta da Quinta Brigada, foram escoltados para um campo. Foram colocados num grupo de 62 reféns que primeiro torturados e, depois levados para a margem do rio Cewale para serem executados.
“Um dos meus irmãos morreu logo, com uma bala na barriga. Por sorte, sete conseguiram sobreviver apesar de terem levado tiros. A mim atingiram-me na coxa esquerda”, conta a sobrevivente. “A Quinta Brigada matou alguns deles, mas dois dos meus irmãos e eu fingimos que estávamos mortos. Só passado algum tempo é que conseguimos ir para casa”, prossegue o relato. Dias depois, aquela força militar chegou a fazer buscas à casa desta família, onde encontrou um dos irmãos da sobrevivente. Inesperadamente, não lhe fizeram nada. Já estava gravemente ferido. “Ele tinha ferimentos de balas no peito e no braço. Mais tarde, tiveram de lhe amputar o braço ao nível do cotovelo e mais tarde no ombro”, recorda. Outro irmão foi amputado no pé.
Outro relato é feito por uma mulher grávida em cuja casa elementos da Quinta Brigada entraram. Queimaram-lhes a palhota onde viviam, juntamente com todos os seus bens e também roubaram todo o dinheiro que tinham. Depois começaram a disparar contra o marido da sobrevivente. “Acusaram-no de ter uma arma, mas ele não tinha nenhuma. Dispararam contra ele. Falharam os dois primeiros tiros, mas ao terceiro acertaram na barriga e mataram-no”, conta. Depois, foi a sua vez de ser espancada, enquanto a sogra assistia a tudo. “Eu disse-lhes que estava grávida e eles responderam-me que não devia ter crianças”, conta. Depois, os militares bateram-lhe repetidas vezes com coronhadas de espingarda na barriga. O bebé morreu dentro da barriga da mãe. “A criança nasceu mais tarde, aos pedaços”, conta a mãe. “Primeiro a cabeça, depois a perna, um braço, o corpo. Bocado a bocado.”
Em 1987, foi consumada uma reaproximação entre o ZANU-PF e o ZAPU-PF, com a assinatura de um armistício entre Mugabe e Joshua Nkomo. No acordo, ficou estabelecido o fim do ZAPU-PF, que passaria a integrar o ZANU-PF. Além disso, Joshua Nkomo foi nomeado como vice-presidente do Zimbabué — e Mugabe, após uma revisão constitucional que tornava aquele país num sistema presidencial, foi nomeado Presidente. Joshua Nkomo governou ao lado de Mugabe até 1999, ano em que morreu.
O genocídio dos Ndebele permanece, ainda nos dias que correm, uma ferida para aquele povo do sul do Zimbabué. Só vários anos depois é que Mugabe reconheceu — e apenas em parte, nunca falando de genocídio — a gravidade do que se passou em Matabeleland entre 1983 e 1984.
No serviço fúnebre de Joshua Nkomo, Mugabe deu um primeiro passo ao reconhecer que as matanças do início dos anos 1980 foram “um ato de loucura”. “Matámo-nos uns aos outros, destruímos a propriedade de cada um, foi errado e os dois lados tiveram culpa”, disse.
Numa entrevista para o livro “Dinnner With Mugabe”, o ditador do Zimbabué falava daquele genocídio como se dele tivesse dependido a formação da democracia zimbabueana. “O que foi o Gukurahundi? Havia um partido com uma guerrilha que queria reverter a democracia neste país. E foi tomada uma ação. E, sim, pode ter havido excessos dos dois lados”, disse. “Da minha parte, não há arrependimento pelo facto de nós termos de defender o nosso país. Mas os excessos, onde aconteceram, sim.”
À altura, o genocídio de Matabeleland foi pouco merecedor da atenção dos media internacionais e também dos líderes internacionais. “Os britânicos mal deram pelo massacre de Gukurahundi e nem sequer o condenaram”, escreve Heidi Holland, que no se livro fala com Peter Carington, ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido entre 1979 e 1982 e responsável pelo acordo de Lancaster House, que puseram um fim à guerra civil do Zimbabué e criaram as condições para as eleições de 1980. Quando a autora lhe pergunta sobre Gukurahundi, Peter Carington responde: “Será que varremos esse problema para debaixo do tapete? (…) Acho que sim, não é?”, para depois explicar que na altura do massacre propriamente dito já não era ministro.
Em maio de 2017, surgiram novas provas de que o Reino Unido sabia o que se estava a passar em Matabeleland, tendo escolhido ainda assim manter uma abordagem mais amigável em relação a Mugabe e ao seu recém-formado governo. A revelação, apenas possível graças ao trabalho da investigadora Hazel Cameron, da University of St Andrews, foi feita após a publicação da troca de correspondência do alto comissário de Londres no Zimbabué, Robin Byatt, e o ministério dos Negócios Estrangeiros.
Numa dessas trocas de correspondência, Robin Byatt escreveu que “se quisermos ter influência nas decisões do Zimbabué, tenho a certeza de que a nossa melhor tática para continuar a oferecer uma postura compreensiva e construtiva, em vez de simplesmente criticá-los”. Mais tarde, após uma reportagem do programa Panorama, da BBC, ter levantado a ponta do véu da barbárie em Matabeleland, Robin Byatt criticou o jornalista Jeremy Paxman por apresentar “uma versão sensacionalista e sombria dos acontecimentos”.
Programa de Via Rápida para a Reforma Agrária, o eufemismo letal que dizimou a economia do Zimbabué
Durante as negociações que transformaram a Rodésia no Zimbabué, houve um assunto que quase bloqueou as conversações que juntaram à mesma mesa o líder do ZANU-PF, Mugabe; o líder da ZAPU-PF, Joshua Nkomo; e Ian Smith, o último primeiro-ministro da Rodésia. As negociações contaram com a mediação de Peter Carington, ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido entre 1979 e 1982.
Do lado de Mugabe e de Joshua Nkomo, havia uma exigência simples: as terras que pertenciam a agricultores brancos iriam passar para as mãos da população negra do Zimbabué. A ideia não foi bem recebida por Ian Smith, que representava a minoria branca da Rodésia, nem por Peter Carington, já que era uma minoria de agricultores britânicos que detinha a maioria da terra arável daquele país.
O compromisso final, conhecido como o Acordo de Lancaster House, contemplava concessões de parte a parte. Ficou acordado que durante um período de 10 anos, nenhum programa de “venda obrigatória” de terrenos iria afetar os agricultores brancos. Assim, só vendia quem queria e só comprava quem queria. Para que tudo isto fosse possível, mesmo que isso não tenha ficado escrito no Acordo de Lancaster House, o Reino Unido comprometeu-se com assistência financeira ao Zimbabué, para compensar o facto de a reforma agrária não ser tão rápida quanto Mugabe quereria.
A cedência por parte do Reino Unido tinha o cunho do Partido Conservador — primeiro com Margaret Thatcher na liderança, depois com John Major. Ao todo, até 1996, foram dados 44 milhões de libras ao Zimbabué, que foram usados para comprar terras aos brancos para dar aos negros.
Enquanto isso, foram poucas as terras que passaram das mãos dos agricultores brancos para os negros, organizados em cooperativas — e, salvaguardados pela garantia de Londres, que lhes assegurava que só teriam de vender se e o que quisessem, apenas venderam as terras menos rentáveis e de pior qualidade. Ainda assim, o sistema então em funcionamento conseguia manter um equilíbrio ténue entre as aspirações de Mugabe e a manutenção do património dos agricultores brancos. Depois, Tony Blair foi eleito primeiro-ministro — e tudo deu uma volta de 180 graus.
Em 1997, o governo trabalhista pôs um fim a tudo isto. A política que deu a cara pelo corte foi a secretária de Estado para o Desenvolvimento internacional, Clare Short. “Somos um governo com diferentes antepassados, sem ligações a antigos interesses coloniais”, escreveu então a política trabalhista. “Nós reconhecemos as questões muito importantes que dizem respeito à reforma agrária. Estaríamos dispostos a apoiar um programa para a reforma agrária que passasse por uma estratégia de erradicação da pobreza, mas não de outra forma.”
Foi assim que o Reino Unido de Tony Blair anunciou que queria fechar a torneira ao Zimbabué de Mugabe. E foi desta feita que o ditador zimbabueano arranjou a desculpa perfeita para pôr em prática a reforma agrária que lhe foi negada em 1980.
Numa primeira fase, vários agricultores brancos foram obrigados a vender as suas terras — obrigação a que muitos resistiram. Perante esta postura, Mugabe e os partidários do ZANU-PF subiram o tom. “Se os colonos brancos puderam tirar-nos as nossas terras sem pagar, nós podemos, de uma forma semelhante, simplesmente tirar-lhas sem pagarmos por elas”, explicou então Mugabe.
A situação escalou nos anos seguintes. Em 2000, Mugabe promoveu um referendo a constituição onde, na proposta defendida pelo Presidente, seria possível expropriar as terras aos agricultores brancos. Contra as expectativas do regime, o “Não” ganhou com 54,7% dos votos — algo que foi possível com os votos dos colonos brancos e sobretudo com o apoio do então recém-formado Movimento para a Mudança Democrática (MDC, na sigla inglesa), de Morgan Tsvangirai.
Ainda assim, a reforma agrária avançou. O governo de Mugabe aprovou o Programa de Via Rápida para a Reforma Agrária. Em suma, não passava de um eufemismo para o que se viria a seguir: invasões por parte de ex-guerrilheiros e milícias afetas ao regime a quintas de colonos brancos, onde era deixado um rasto de destruição.
Ao todo, foram mortos 12 agricultores brancos, a maior parte enquanto defendiam as suas quintas das invasões levadas a cabo por grupos de veteranos de guerra. Ainda maiores são os números da violência cometida contra os trabalhadores negros que era empregados nas quintas alvo de expropriação. Segundo um relatório de 2002 da Human Rights Watch, entre 2000 e a publicação daquele documento as milícias do ZANU-PF mataram 26 trabalhadores. Além disso, 11 foram violados, cerca de 1600 foram agredidos e pelo menos 3 mil foram impedidos de voltar às suas casas. A Human Rights Watch referia à altura que, entre os trabalhadores vítimas das expropriações, uma maioria de 47,2% apoiava o MDC, 43,6% não tinham ligações políticas e só 4,7% apoiavam o ZANU-PF.
“Eu estava a voltar da loja quando vi várias pessoas a chegar, rapazes e mulheres”, conta uma enfermeira à Human Rights Watch. Perguntaram-lhe onde era o escritório da quinta. “Depois disseram-me que estava a ser muito lenta a responder. Bateram-me com um pau no braço. Então levaram-nos para um espaço aberto. Estavam a dizer: ‘Para a frente ZANU-PF, abaixo o MDC’. Depois, pegaram noutro rapaz e sovaram-nos. A seguir, foram-se embora.”
O chamado Programa de Via Rápida para a Reforma Agrária teve consequências desastrosas para a economia e agricultura do Zimbabué. Longe de preencher o ideal de uma distribuição das terras aos trabalhadores rurais negros — a maioria apoiantes do MDC —, as terras foram distribuídas de forma desigual a correligionários do ZANU-PF. Muitas das terras deixaram de funcionar como verdadeiras quintas, mas antes centros do ZANU-PF a partir dos quais eram feitas campanhas intimidatórias, e não raras vezes violentas, contra apoiantes da oposição.
Desde então, a agricultura do Zimbabué entrou em declínio. Em tempos, o país era conhecido como o “cesto do pão do sul da África”, que tinha na sua agricultura a sua maior fonte de riqueza — graças ao cultivo do tabaco, algodão, milho, café e também à carne de vaca. Agora, a braços com uma seca extrema e cercado por sanções internacionais, o Zimbabué tem de importar para comer. Cerca de um quarto da sua população tem dificuldades de acesso a comida e pouco mais de metade da sua superfície arável é cultivada.
Anos depois, apesar do fracasso da agricultura do Zimbabué, e consequentemente da sua economia, Mugabe tem continuado a defender a tomada de terras agrícolas. “Queremos paz, e a paz não requer uns ficarem com a fatia do leão e outros ficarem com a fatia do babuíno”, disse em 2014. Na mesma ocasião, disse ainda: “Nós não mandámos os brancos embora. Nós tirámos-lhes as terras de acordo com o que os britânicos e nós acordámos, durante o governo de Margaret Thatcher”. E continuou, atirando farpas a um dos seus alvos preferidos da cena internacional, Tony Blair. “Se a Inglaterra de Blair já não queria pagar pelas terras, será que nós devíamos ter cruzado os braços e ter dito: ‘Oh, santo Deus, rezo em nome pai, do filho e do espírito santo’?”
O tema — e o tom — são recorrentes em Mugabe. Em 2017, voltou à carga, deixando a entender que poderia haver novas expropriações para os poucos agricultores brancos que ainda estão no Zimbabué. “Descobrimos que só na província de Mashonalad Este há 73 agricultores comerciais que ainda estão a ocupar as quintas, quanto o nosso povo não tem terras”, disse, num discurso em junho de 2017. “Vamos tomar aquelas terras e redistribuí-las pelos nossos jovens, alguns dos quais não beneficiaram do programa de reforma agrária.”
E em agosto do mesmo ano falou dos agricultores brancos que foram mortos a partir durante as expropriações, garantindo que não ia haver nenhuma investigação àqueles homicídios. “Sim, houve aqueles que nós matámos quando eles resistiram. Nós nunca vamos julgar aqueles que os mataram. Pergunto uma coisa: porque que é que haveríamos de prendê-los?”