A maioria absoluta esfumou-se e não há quem acredite, entre os partidos de esquerda, que voltará tão cedo a ser hipótese. O caminho é outro: pensar em blocos que juntem a esquerda e a direita, uma conta que os partidos estão a fazer e que já alimenta conversas sobre uma espécie de geringonça 2.0 — um novo acordo mais exigente, com um programa mais claro e a apontar para o futuro, corrigindo, no fundo, as insuficiências da primeira versão dessa solução.
Os partidos que poderiam estar envolvidos numa solução deste género asseguram que, para já, não existem contactos — os cálculos mais concretos só poderão ser feitos na noite das eleições, tendo em conta o número de deputados que cada um conseguir somar, no caso de ser alcançada uma maioria de esquerda no Parlamento. Mas todos têm na cabeça os protagonistas que poderiam levar a bom porto uma solução deste género: Mariana Mortágua, Paulo Raimundo — sendo que o PCP se mostra mais cético do que o Bloco sobre um cenário destes –, Rui Tavares e, no caso de vencer a disputa interna pela liderança do PS, Pedro Nuno Santos.
Ainda assim, por agora, a ordem é uma e é igual para (quase) todos: não falar do assunto. Se é verdade que o tempo político acelerou e que os partidos começam a ser questionados sobre um potencial cenário de acordo muito mais cedo do que previam, também é verdade que a proximidade de eleições os obriga a manter a estratégia que vinham traçando até aqui e a demarcarem-se o mais possível, para já, do PS absoluto.
Depois, resta um dilema: perceber a melhor forma de lidar com Pedro Nuno Santos, um possível líder socialista com “ares de esquerda”, como se comenta nos corredores dos antigos parceiros da geringonça — “ares” que o podem ajudar a construir uma alternativa à esquerda ou, por outro lado, a engolir eleitorado bloquista e comunista. Caso os “ses” que levariam a este cenário se cumpram — Pedro Nuno Santos ganhar o PS e a esquerda conseguir maioria no Parlamento –, o caminho é de gelo fino e a negociação será dura.
Nova geringonça já não seria programa de reversões
O primeiro dado que se dá por certo entre estes partidos é que a geringonça, tal como foi construída em 2015 e executada nos anos seguintes, será “irrepetível”. Na altura, a esquerda uniu-se para afastar a direita de Pedro Passos Coelho do poder, entendendo-se para formar uma frente histórica que começasse a deixar para trás os anos da troika. Agora, o que se entende entre estes partidos é que o entendimento teria de ser bem mais do que “um programa de reversões” que tentasse corrigir o passado — em vez disso, a esquerda precisa de um programa “a olhar para a frente”.
Ou seja, se na altura a geringonça arrancou com uma série de objetivos definidos para acabar com os cortes do período da troika — e foi desmantelando quase todas as medidas que levaram ao “enorme aumento de impostos” de Vítor Gaspar ou revertendo privatizações, por exemplo — a ideia é que desta vez seria preciso negociações que levassem a um entendimento mais profundo entre os partidos, em vez de um “programa de mínimos”.
Esta tese vinga no Bloco de Esquerda, onde se fala na necessidade de chegar a acordos em áreas como a Habitação, a Educação e a Saúde — sendo que nestas duas últimas será preciso “fazer as pazes com os profissionais”, ouve o Observador (curiosamente, é a mesma expressão que Pedro Nuno Santos utilizou no seu espaço de comentário na SIC para defender que o excedente orçamental também deveria ser usado para pacificar os profissionais que têm estado “em guerra” com o Governo).
Até porque à esquerda se entende que essas guerras são uma das principais fontes de alimentação do ressentimento social que acaba por dar votos ao Chega — pelo que há urgência em tentar responder às reivindicações destas classes profissionais.
De resto, o guião foi deixado por Francisco Louçã, no Expresso. Primeiro, o fundador do Bloco afirma que as esquerdas podem “lembrar que a geringonça foi o remédio que protegeu o país da bolha autoritária que é uma maioria absoluta”, mas é preciso mais: desta vez, o desafio que se coloca não será “a substituição de um Governo de direita”, mas “a resposta estrutural a problemas criados ou agravados pelo Governo cessante”, dos salários à Saúde, Habitação, Educação ou política ambiental.
Tudo isto “exige agora um programa mais profundo e detalhado do que em qualquer momento do passado”: “Só vencerá a direita uma esquerda que seja mais exigente do que nunca”, conclui o fundador, politicamente muito próximo de Mortágua.
A líder bloquista tem, de resto, deixado claro que os objetivos do Bloco para estas eleições estão alinhados com esse cenário: por um lado, vencer a direita; por outro, marcar o futuro e ser “determinante para as soluções que contam”, garantindo que quer ter “uma palavra a dizer” nas políticas que “irão para a frente” em Portugal. A disponibilidade está lá; falta garantir que o cenário pós-eleitoral permite que as negociações aconteçam.
PCP entre a luta e a influência: “Caminho depende do reforço da CDU”
Do lado do PCP, as respostas são mais turvas e estabelecem, para já, um dado como certo: a disponibilidade, ou não, dos comunistas irá depender da força que tiverem para influenciar um hipotético Governo do PS. “Para lá de múltiplos cenários que se possam conjeturar, a principal questão que se coloca nas próximas eleições legislativas é pois o reforço do PCP e da CDU”, lê-se no comunicado que transmite as conclusões da última reunião do Comité Central. “Será o reforço do PCP e da CDU que irá determinar tal mudança de rumo, a política necessária”.
Ao Observador, o dirigente e ex-deputado comunista João Oliveira deixa todos os cenários em aberto: consoante os deputados que tiver, o PCP poderá escolher entre um caminho de “luta e resistência” ou outro de “conquistas e avanços”.
“Essa questão vai estar colocada com grande clareza. O que vier a acontecer depende dos resultados”, assume. “Se tivermos mais força, mais capacidade de influência, haverá uma perspetiva de poder haver resposta ao aumento de salários, à perda de poder de compra, à medidas de salvação do SNS — com um reforço do PCP ficam mais perto de ser concretizadas. O caminho que o país pode fazer no dia 11 resultará em saber se há reforço da CDU”.
Que o PCP não fará da hipótese Pedro Nuno Santos uma espécie de salvação da esquerda, é mais do que certo: o partido tem avançado com críticas duras ao representante da ala esquerda do PS em várias frentes, lembrando que o ex-ministro não “chega virgem” (expressão do dirigente comunista Bernardino Soares) a este momento de crise política. Na CNN, Bernardino acusou Pedro Nuno Santos de, apesar de “ter umas nuances” que servem para “falar um eleitorado mais à esquerda”, ser tão a favor das “contas certas” como o resto do PS.
Mas também deixou a sua esperança de que o debate aconteça “em torno de propostas concretas” e das “opções para futuro”, em áreas como Saúde e Habitação: “Talvez aí Pedro Nuno Santos tenha maior clareza”. No mesmo comentário, Bernardino frisou que o Governo mais estável dos últimos 20 anos foi aquele em que o PS se viu obrigado a “negociar à esquerda”: “Foi o Governo com menos casos, com mais medidas, e que apesar de tudo, com todas as insuficiências do posicionamento do PS, recuperou coisas positivas para os portugueses”.
Conclusão? Sempre que o PS teve menos peso à esquerda “fez pior”, sempre que foi “condicionado” melhorou. “Julgo que é esse o debate que vamos ter de ter no espectro mais à esquerda no panorama político português nas próximas eleições. Espero que Pedro Nuno Santos ou José Luís Carneiro estejam disponíveis para o fazer”, rematou.
Um dos primeiros nomes comunistas que se atiraram contra Pedro Nuno foi o vereador lisboeta e dirigente João Ferreira, que no Twitter lembrou que “o PS é o PS”, seja o de Pedro Nuno Santos ou o de Francisco Assis, agora seu aliado: “Não serão homens providenciais a abrir caminho a uma política progressista, de esquerda. Será a relação de forças entre partidos. Decisivo será um PCP reforçado. Em 2024 como em 2015″.
Depois, em resposta a um comentário que lhe pedia para não focar as suas forças no ataque a Pedro Nuno, o dirigente comunista elaborou sobre a hipotética “construção” de uma alternativa. “Pense assim: a qualidade da construção depende dos tijolos utilizados. Nem todos são iguais. Essa construção não se fará só com o PCP, isso é certo. Mas que precisamos de muitos mais tijolos destes não é menos certo”.
Partidos trabalham sozinhos e evitam falar no futuro
O que é certo é que, mesmo que essa alternativa possa estar no horizonte, quase ninguém quer falar dela agora. A começar pelos próprios pedronunistas. Se o candidato socialista é conhecido por ser um fã, além de artífice, da geringonça original — ao contrário do oponente, José Luís Carneiro, que abriu a campanha com críticas à hipótese de o PS se juntar a partidos que são anti-NATO — o mais certo é que para já não faça questão de relembrar publicamente o seu empenho nos acordos à esquerda.
“O PS tem de trabalhar o seu eleitorado no seu espaço de autonomia para conseguir o melhor resultado possível”, diz ao Observador um dos socialistas envolvidos na campanha pedronunista. O que não invalida a segunda parte do raciocínio: “Não é preciso dizer quem é o candidato que depois das eleições conseguiria fazer uma geringonça…“.
Para já, Pedro Nuno Santos tem de se concentrar não na mensagem que já passou — a simpatia pela geringonça e por políticas associadas à ala esquerda do PS — mas na que lhe falta passar: a ideia de que também consegue conquistar o eleitorado do centro.
A ideia de não insistir em raciocínios que já estarão, de qualquer forma, enraizados na cabeça do eleitorado também cola junto do Bloco, onde se dá por certo que esta será uma “disputa eleitoral” por blocos — até porque um pouco por toda a esquerda se vão desvalorizando as garantias de Luís Montenegro de que não planeia fazer nenhum tipo de acordo com o Chega. A convicção nas hostes bloquistas é também que, se Pedro Nuno — “rosto da geringonça” — vencer o PS, não haverá eleitores que não tenham a hipótese de uma nova geringonça na cabeça.
Para já, a ideia é clara: tanto Bloco como PCP querem concentrar-se nos erros da maioria absoluta. Até porque têm uma desforra na agenda: há dois anos, os votos da esquerda foram engolidos pelo PS, que desenhou uma campanha de apelo ao voto útil, oferecendo-se como única alternativa real a uma frente de direita que, garantia, poderia incluir o Chega. O PS seria sinónimo de estabilidade, ao contrário dos partidos de esquerda que acabavam então de chumbar a sua proposta de Orçamento.
O partido que fala mais abertamente sobre o assunto é o Livre, de Rui Tavares. Uma geringonça “diferente da de 2015” poderá ser um cenário em cima da mesa, assumiu Tavares em entrevista à SIC — para o Livre, teria de ser um acordo “que dependa de negociações feitas a priori, que demorem o tempo que tiverem de demorar, que tenham compromissos claros” e colocados por escrito. Mas, para lá chegar, precisa de ir “roubar votos” a quem “teve maioria absoluta”, de forma a conquistar um grupo parlamentar (neste momento Tavares é deputado único).
Após dois anos de maioria absoluta acidentados, no mínimo, a esquerda espera que os seus eleitores já não caiam nessa “armadilha”. É preciso “discutir a política da maioria absoluta”, insistem bloquistas e comunistas. E, pelo meio, pôr a esquerda a “afirmar a sua diferença”, para evitar ser confundida com o PS, mesmo que este se apresente como estando, desta vez, mais à esquerda, caso Pedro Nuno vença a disputa interna.
No fundo, desta vez é preciso mostrar aos eleitores “porque é que vale a pena” votar à esquerda do PS, resume uma fonte bloquista, lembrando os efeitos do voto em massa no partido de António Costa, em 2021. “Há uma frustração de expectativas” mesmo entre quem votou PS na altura, frisa João Oliveira.
A esquerda parte com líderes novos para a estrada: Paulo Raimundo é uma estreia absoluta e contava com mais tempo para fazer a sua travessia para conquistar notoriedade, agora radicalmente encurtada; Mariana Mortágua não tem esse tipo de problemas, sendo que o Bloco ficou satisfeito pelo acerto do timing de saída de Catarina Martins, justificado no início do ano com um ciclo eleitoral que parecia mais acelerado do que se esperava e que poderia por isso pedir uma nova líder, pronta para combates futuros.
Esse futuro chegou mais cedo. Agora, resta à esquerda rumar à campanha com ataques ao PS pós-absoluto — seja ele qual for — prontos a disparar, na esperança de crescer e evitar a ameaça do voto útil. Depois, se conseguir travar a direita e conquistar a uma maioria de deputados, chegará o tempo de conversar.