Estranha noite eleitoral aquela que se viveu no Hotel Epic Sana Marquês. O PSD não vencia eleições desde 2015. E, mesmo nessas legislativas, António Costa, perdendo, deu os primeiros sinais daquilo que viria a acontecer – uma maioria alternativa de esquerda que formaria a ‘geringonça’. Quase dez anos depois, seria de esperar que o ambiente no quartel-general da Aliança Democrática, instalado em Lisboa, fosse de euforia. Não foi. Apesar da compreensível felicidade de sair das urnas com mais votos e mais mandatos do que o PS, ninguém ignora que a margem foi demasiado curta para as expectativas que se criaram, que a corrida foi demasiado renhida para o que era suposto e que o Chega será, inevitavelmente, um obstáculo demasiado pesado à governação.
Nos corredores, nas conversas informais, por telefone, dirigentes e militantes base do PSD e do CDS foram reconhecendo que, fora o cataclismo que seria uma derrota, claro, o pior dos cenários se confirmou: o próximo ciclo político será, em teoria, de grande instabilidade. O resultado ideal – uma maioria com AD e IL não se confirmou – e Luís Montenegro terá agora de fazer aprovar Orçamentos do Estado e qualquer medida estrutural no Parlamento sabendo que terá uma oposição determinada à esquerda (91 deputados, entre PS, BE, PCP, PAN e Livre, que, presumivelmente, podem chegar a 93 com os ciclos da emigração) e 48 parlamentares do Chega, que venderão caro qualquer voto a favor na Assembleia da República.
O caminho é muito, muito estreito. Olhando para os dados que existem (ainda faltam eleger quatro deputados), e excluindo a hipótese de haver uma moção de rejeição (Pedro Nuno Santos já disse que não o fará), para fazer passar o próximo Orçamento do Estado, Luís Montenegro precisará do voto a favor do Chega porque a abstenção não basta; isto porque a esquerda toda junta terá sempre mais deputados que AD e IL. Um bico de obra, portanto.
Para já, o que se vai percebendo no núcleo mais restrito de Montenegro é que será preciso adaptar o próximo governo às circunstâncias: será mais político do que tecnocrata, pensado para a gestão do dia a dia e para o combate, e preparado para a eventualidade de ter de ir novamente a votos daqui a um ou dois anos. Se tanto. Depois há outras decisões que importam tomar e que Luís Montenegro não quis esclarecer esta noite. À cabeça, saber se integra ou não outros partidos no Executivo. Se é possível assumir com relativo grau de certeza que o CDS vai fazer parte do elenco governativo, muito provavelmente já não fará grande sentido negociar com IL eventuais lugares de governo, tendo em conta que as duas forças ficaram longe da maioria à direita sem Chega.
Tendo a AD ficado assumidamente longe das perspetivas internas e externas que tinha – em termos percentuais, PSD e CDS juntos não tiveram muito mais votos do que quando concorreram separados em 2022 –, ainda não houve tempo para grandes balanços. Mas há três aspetos inegáveis: o projeto encabeçado por Luís Montenegro não disparou como se previa; o mapa eleitoral continua a demonstrar algumas fragilidades do PSD a sul – ficou atrás do Chega em Faro, Beja, Setúbal e Portalegre; e o discurso do “não é não” a André Ventura, que deveria ter servido de apelo ao voto útil e esvaziado o Chega, não surtiu o efeito antecipado. É verdade que é impossível saber que resultado teria tido Montenegro se tivesse admitido alianças com Ventura; mas a mensagem do cordão sanitário ao Chega não terá sido tão apreendida pelos eleitores como pretendiam as direções dos partidos que compõem a AD.
De todo em todo, e este é o copo meio-cheio, o PSD terá oportunidade de conseguir fazer algo que não conseguia fazer há quase dez anos: governar. À luz de qualquer critério que possa ser usado, e faltando ainda os quatro deputados dos círculos da emigração (que, à exceção de 2022, costumam ser repartidos equitativamente por PS e PSD), Luís Montenegro é o vencedor destas eleições. Apesar das declarações contraditórias que André Ventura tem feito sobre o tema, não é de esperar que o Chega apresente uma moção de rejeição ao programa de governo, o que significa que Montenegro tem condições para cumprir a outra parte do plano de sempre: governar à espera de ser derrubado e utilizar novas eleições para conquistar uma maioria reforçada, tal como fizeram António Costa (2022) e Aníbal Cavaco Silva (1987).
Dramatização começa hoje
De resto, assim que subiu ao palco para discursar – uma intervenção relativamente curta, sem grandes demonstrações de euforia, em linha com o clima que se vivia na sala do quartel-general da AD, em Lisboa –, Montenegro começou precisamente por apresentar o guião que deverá ser seguido pela coligação até ao fim do ciclo que agora se inicia: quem quiser derrubar o próximo governo terá de assumir a responsabilidade.
“A todos é exigido que deem ao país condições de estabilidade e de governabilidade. Não me eximo à principal responsabilidade, que será minha, mas é preciso também exigir aos outros que cumpram aquilo que foi a palavra do povo português. Para termos governabilidade e estabilidade há que apelar ao sentido de responsabilidade de todos quantos se vão sentar na Assembleia da República em representação do povo português”, foi sublinhando Luís Montenegro.
Já na fase dedicada às perguntas da comunicação social, Luís Montenegro foi desafiado a dizer se espera ou não que o Chega possa fazer cair um governo da Aliança Democrática mais cedo do que tarde. Não respondeu, mas fez automaticamente a ligação entre André Ventura e Pedro Nuno Santos. “O PS teve muito menos votos e muito menos mandatos. A minha expectativa é que estejamos todos à altura daquilo que é servir o interesse do país e o interesse dos cidadãos. O que se pede ao PS é que respeite a vontade do povo português. A minha expectativa é que o PS e o Chega não constituam uma maioria negativa para impedir o governo da AD.”
Ora, esta tentativa de Montenegro de colar estes dois partidos é uma forma evidente de preparar o terreno para o que aí vem: de cada vez que PS e Chega ficarem na mesma fotografia a chumbarem medidas da Aliança Democrática, será mais um argumento para a lista de Luís Montenegro. O líder do PSD chegou ainda a criticar Pedro Nuno Santos por ter anunciado de antemão que pretende votar contra um futuro Orçamento do Estado com a assinatura da Aliança Democrática antes sequer de o conhecer. Apesar de tudo, o bloqueio é uma evidência: a margem de manobra de Luís Montenegro para aplicar o programa e as medidas da AD é manifestamente muito reduzida.
Ventura com a espingarda na mão
A cúpula do PSD sempre antecipou que o Chega poderia eleger cerca de 40 deputados, o que tornaria qualquer solução de poder à direita no mínimo difícil de arquitetar. Eram estas as projeções que existiam ainda antes da demissão de António Costa e as eleições vieram confirmar esses cenários. Mas a determinada altura da campanha instalou-se a forte convicção de que era possível evitar isso. Ora, confirmando-se o cenário de crescimento do Chega e mantendo-se o cordão sanitário em relação àquele partido, o líder social-democrata teria de fazer figas para, em conjunto com a Iniciativa Liberal, conseguir ter mais deputados do que a esquerda toda junta. Era um objetivo, no mínimo, ambicioso, tal como se confirmou nestas eleições.
Pior: o Chega teve um resultado acima das expectativas e acima das mais recentes sondagens. No fundo, André Ventura fica agora como árbitro do regime e de “espingarda” na mão, a desgastar o governo de Luís Montenegro e à espera do momento e motivos certos para derrubar o PSD. No entanto, a história, passada e recente, diz que quem provoca uma crise sai penalizado. Foi assim com o PS e o PRD em 1987 e foi assim com Bloco e PCP em 2022. Montenegro poderá estar apostado em esperar pela repetição da história e a pagar para ver até onde vai o bluff de Ventura.
Resta saber o que fará de facto o líder do Chega. Esta noite, e minutos antes de Montenegro discursar, Ventura pressionava o social-democrata a esquecer a ideia do “não é não”, avisava que podia “bloquear tudo” e assumia-se disponível para ir a votos a qualquer momento. “Esta força daqui a seis meses, a um ano ou dois anos vai mesmo vencer as eleições legislativas”, jurou Ventura.
Mesmo perante a ameaça do líder do Chega, Montenegro não recuou. A partir do palco, o líder social-democrata foi cristalino: não conta com o Chega para governar. “Assumi dois compromissos na campanha e naturalmente cumprirei a minha palavra. Nunca faria a mim próprio, ao meu partido e à democracia portuguesa tamanha maldade que seria incumprir compromissos de forma tão clara.” Não existe um caminho evidente para sair do labirinto em que entrou o país. A Montenegro parece restar como solução não olhar para trás, nem para o lado.