Foi com base no número “diminuto” de surtos em escolas, e na divisão de opiniões sobre o tema existente entre os especialistas ouvidos na última reunião no Infarmed, que o primeiro-ministro justificou o facto de as escolas continuarem abertas, ao contrário do que aconteceu no primeiro confinamento de março e abril do ano passado. “A escola é um local seguro e essencial no processo de aprendizagem”, garantiu na apresentação deste segundo confinamento. Mas, em menos de uma semana, as circunstâncias mudaram: Portugal está a atingir máximos de novos casos e de vítimas mortais por Covid-19, dia após dia.
Esta quinta-feira será feita a reviravolta: o Governo vai decidir, em Conselho de Ministros, o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino, do básico ao superior já esta semana. A informação foi confirmada à agência Lusa por uma fonte do executivo, que afirmou: “A informação que o Governo recebeu na quarta-feira, após reunião com epidemiologistas, foi considerada muito relevante e determinante para a decisão, tendo em conta o crescimento da variante britânica do novo coronavírus em Portugal”. Desta forma, o Governo pretende “isolar todo o sistema escolar”: “Não havendo aulas, evita-se que as pessoas sejam forçadas a sair de casa”.
Ainda na noite de quarta-feira, o Presidente da República e recandidato ao cargo considerou que o encerramento das escolas seria “uma boa solução”. A declaração surgiu na sequência de uma entrevista da ministra da Saúde à RTP onde Marta Temido praticamente deu como certo o encerramento das escolas.
Pressões de todos os lados
A decisão começou a tomar forma na terça-feira. No debate no parlamento, António Costa acabou por admitir que as medidas de restrição poderiam ser mais apertadas — e isso incluiria fechar escolas se a pandemia ganhasse novos contornos. Enquanto anunciava o início da testagem rápida nas escolas, o primeiro-ministro nomeou mesmo um exemplo que o levaria, “sem rebuço”, a mudar de ideias: se a estirpe inglesa se tornasse dominante no país. “Muito provavelmente vamos ter mesmo de fechar as escolas e aí farei o que tenho de fazer”, afirmou. O pior cenário parece estar a confirmar-se: Portugal já terá cerca de 30 mil pessoas infetadas com a variante inglesa do vírus, anunciou esta quarta-feira o Instituto Ricardo Jorge.
INSA estima que Portugal tenha 30 mil casos da variante inglesa
As pressões surgiram entretanto de todos os lados. Rui Rio apelou publicamente ao Governo para que decidisse encerrar já as escolas a partir do 6.º ano. Ana Gomes admitiu que o encerramento seria “inevitável”. Marcelo, depois de anunciar uma reunião com os especialistas para a próxima terça-feira para ouvir as suas opiniões, disse, afinal, que queria uma decisão “entre hoje e amanhã”. E o que era para ser discutido na reunião do Infarmed, na próxima semana, aconteceu na noite de quarta-feira. O Governo, através das ministras Marta Temido e Mariana Vieira da Silva, reuniu com epidemiologistas — e juntou-se-lhes depois o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, e o da Ciência e Tecnologia, Manuel Heitor, com António Costa via zoom, após voltar de Bruxelas. Debateram o encerramento imediato de todas as escolas, uma decisão (e os respetivos pormenores) a tomar esta quinta-feira no Conselho de Ministros.
Assim que cheguei de Bruxelas, reuni esta noite de emergência com os Ministros da @mpresidencia_pt, da @saude_pt, da @Educacao_PT e da @ciencia_pt. Fizemos um ponto de situação sobre a alarmante propagação da pandemia em #Portugal.#COVID19 pic.twitter.com/upnl7mZMUq
— António Costa (@antoniocostapm) January 20, 2021
Antes da tomada de decisão do Governo, o Observador falou com oito especialistas sobre as vantagens e desvantagens dessa solução: cinco eram completamente a favor do fecho das escolas, um era contra e os restantes dois defendem que esse “encerramento não vai resolver o problema se o comportamento das pessoas não se alterar”. Os que defendem o encerramento da atividade escolar alertam para uma situação “insustentável” e “catastrófica”. O que está contra acredita que se deveria antes atuar junto dos lares porque os idosos são “a principal razão da sobrecarga nos estabelecimentos hospitalares”.
“Isto é insustentável”
Para Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, a incidência do vírus e a mortalidade são “insuportáveis”, a situação “complica-se” e está “insustentável”. Por isso, considera que o fecho das “escolas pode ser um contributo importante” para travar o avanço da pandemia em Portugal. “Isto é insustentável: sabemos que, após a implementação de uma medida, ela só terá efeito dali a sete, dez dias. Não temos capacidade para esperar”, afirmou em declarações ao Observador.
O especialista reconhece que dentro das escolas “tende a haver cumprimento das medidas, porque há fiscalização”. O problema é “toda a mobilização que implica a frequência das aulas presenciais: os alunos, que andam de transportes públicos ou são levados pelos pais, os professores, os funcionários”, afirma, para depois apontar outra questão: o que se passa quando se sai da escola. “Vemos adolescentes que tendem a concentrar-se, tiram as máscaras e as regras que cumprem dentro da escola não se verificam fora dela”, explica.
Como professor do ensino superior, Ricardo Mexia reconhece que, do ponto de vista pedagógico, fechar as escolas pode ser prejudicial: “Sei que as minhas aulas à distância foram menos pedagógicas e com menos resultados do que nas aulas presenciais”. No entanto, considera que “será melhor prejudicar as férias do verão, encerrando agora e prolongando o ano letivo para dentro de julho”.
“Más decisões obrigam-nos a medidas mais dramáticas”
Para Filipe Froes, coordenador do gabinete de crise para a Covid-19 e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública, defende o fecho das escolas perante “a situação catastrófica que se vive” e argumenta com “a evidência a nível nacional, por diversos estudos, que neste momento, entre as três faixas etárias com maior incidência de número de casos por 100 mil habitantes, nos últimos sete dias, está a população universitária e liceal”.
O pneumologista critica ainda a demora na tomada de decisão: “Provavelmente, se tivesse sido feito de uma forma mais atempada, podíamos ter mantido as creches abertas. Atualmente, essa hipótese não se põe”, diz, deixando a nota: “Más decisões obrigam-nos a medidas mais dramáticas e mais extremas”.
“Há um número considerável de surtos nos vários ciclos de ensino”
Hugo Esteves, vice-presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, defende que fechar as escolas terá um “impacto no número de casos confirmados, na ocupação dos cuidados intensivos e ainda na própria letalidade”. “Dada a situação atual, o momento difícil em que vivemos, esta medida é urgente: diminui-se a mobilidade de toda a comunidade escolar, mas também dos pais“, diz Hugo Esteves ao Observador.
O responsável alerta para um “número considerável de surtos nos vários ciclos de ensino”. Embora reconheça que “nas salas de aula há uma maior proteção”, o problema centra-se no “exterior da escola” e em “toda a mobilidade que a escola envolve”. Além disso, há outro “aspeto muito relevante”: o facto de, no ensino universitário, haver “um nível muito elevado [de infeções] na faixa etária dos 21 aos 30 anos e até um pouco abaixo”. Apesar de o facto de os jovens infetados não terem “um impacto muito grande na letalidade”, esse impacto sente-se “nos pais, nos avós, nos seus coabitantes”. E, por isso, “é muito relevante diminuir a incidência nestas faixas etárias”.
Hugo Esteves reconhece que “o ensino online aumenta a desigualdade entre alunos e isso é relevante” e que tem efeitos na “saúde mental” e na economia. No entanto, o custo de não fechar as escolas é também “muito elevado”. Por isso, sublinha, “não podemos hesitar em tomar decisões mais assertivas”.
“Passámos as linhas vermelhas todas”
Para Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, o encerramento das escolas já se tinha tornado “inevitável”. E faz uma analogia: “Se uma barragem rebentar e inundar as estradas todas, qual é a lógica de dizer às pessoas que é importante continuar a ir à escola? Passam por qual estrada? Neste momento, já rebentou a barragem: estamos incrivelmente atrapalhados com uma inundação de doentes” .
Rui Nogueira não tem dúvidas de que “a escola é muito importante, mas “não é possível, nestas condições, haver escola”. “Já o dissemos na semana passada e, há 10/15 dias que andamos a dizer que a situação está muito grave. Nós passámos as linhas vermelhas todas”, explica, adiantando: “Ninguém pode sair de casa, não pode haver contacto com ninguém”.
“Na semana passada, eu até admitia manter as escolas abertas até aos 12 anos: já não é possível. Na semana passada era possível, agora já não dá”, diz Rui Nogueira, defendendo que os estabelecimentos de ensino sejam fechados durante “três ou quatro semanas”.
“A dinâmica da escola está muito perturbada”
Antes mesmo da decisão do Governo, António Queimadela Baptista apontava que “a prática está a dizer-nos que não está tudo assim tão bem”. “Há aqui uma grande tentativa de que as coisas se organizem e de que a vida ande para frente, e a escola tem um papel muito relevante porque gera movimentos, mas também traz complicações“, afirma o médico de saúde pública, que é também Delegado de Saúde Coordenador do Agrupamento de Centros de Saúde do Pinhal Interior Norte.
Para António Queimadela Baptista, “o maior problema é o grande número de pessoas da comunidade escolar em confinamento porque contactaram com algum familiar positivo”. “Não são casos da escola, mas são casos de alunos e profissionais que ficam positivos, estiveram anteriormente na escola e isso determina um encerramento da turma”, explica ao Observador, acrescentando: “De maneira geral, a avaliação de risco tem uma grande abertura porque vivemos uma situação difícil e acabamos por determinar o isolamento da turma inteira”.
O médico de saúde pública considera que teria sido “melhor fechar durante umas duas semanas depois das festas”. “A dinâmica da escola está muito perturbada, os pais estão muito reativos: há muitos filhos que estão a ficar em casa porque os pais estão preocupados”, afirma.
“Não são as escolas que difundem o vírus”
Já Jorge Torgal não vê que haja uma “razão para encerrar as escolas porque não são fatores importantes para a disseminação do vírus” e “implicaria condicionantes económicos relevantes”. “Os estudos mostram que não são as escolas que difundem o vírus na comunidade e não são o problema central”, afirma. Para o membro do Conselho Nacional da Saúde Pública, deve-se antes atuar junto dos lares porque os idosos são “a principal razão da sobrecarga nos estabelecimentos hospitalares”.
O médico defende que, se se quiser “fazer algo imediato para tentar minorar as consequências da infeção”, devia agir-se “de uma forma eficaz com pessoas e com meios junto de todas as residências para idosos que não têm condições”. É lá, explica, que “todos os dias aumenta a lista de vítimas da pandemia e que podiam ser poupadas”, porque “são a principal razão da sobrecarga nos estabelecimentos hospitalares“.
Do ponto de vista de Jorge Torgal, “o que conta numa pandemia são as mortes e devemos agir a montante”. Deve-se, segundo explica, evitar que as pessoas “frágeis”, com “más condições de saúde” e que “vivem em situações difíceis”, como nos lares, “se infetem, que fiquem doentes”. “E, ficando infetadas e doentes, que sejam cuidadas com dignidade nos seus locais“, diz, acrescentando: “Não só evita que essas pessoas tenham de ir para o hospital, como se evita que tenham uma evolução que muitas vezes é fatal”.
“Não há uma resposta certa ou errada”
Elisabete Ramos, presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologia, diz que “não há uma resposta certa ou errada” quando o tema é o fecho das escolas: “Nenhum país conseguiu uma solução completamente perfeita. Quer um lado, quer o outro tem um preço a pagar. A questão aqui é qual dos preços se justifica correr”.
A especialista reconhece que os nível de infeção nos jovens são “elevados”, mas alerta que “as escolas, por si só, não são contexto de contágio, porque praticamente não há descrição de surtos nas escolas”. “É óbvio que eles têm casos, mas a escola não funcionou como disseminador da doença. A escola é segura deste ponto de vista”, afirma. Mesmo que fechar os estabelecimentos de ensino faça diminuir “os casos mais rapidamente”, isso não “transfere para um nível completamente zero”. Porquê? “Não é lógico pensar que os jovens continuem completamente isolados como no primeiro confinamento”, adianta.
Depois, fechar as escolas traz “um preço relativamente caro”. E exemplifica: a “perda de conhecimento e de capacidade de trabalho” e o “facto de essa opção também aumentar as desigualdades”. “Nós somos um país extremamente desigual: pode haver um menor acesso de alguns grupos sociais às aulas e conteúdos nas melhores condições possíveis. Se estivermos a falar do secundário, isso pode mesmo comprometer o acesso à universidade”, diz ainda. Sem se mostrar completamente contra ou a favor do fecho das escolas, Elisabete Ramos diz apenas que esta é uma questão de escolher “qual é o custo que se acha mais aceitável pagar: uma redução mais lenta do controlo da pandemia ou aumentar as desigualdades a curto e a longo prazo”
Para Tiago Correia, professor de Saúde Internacional do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, fechar ou não as escolas depende de um fator: o tipo de confinamento que estiver em vigor. O especialista acha “muito mal” fechar as escolas, se houver a “possibilidade de as crianças, os jovens e jovens adultos terem condições para sair de casa e andarem a passear”. Aí, “mais vale mantê-los nas escolas, onde as regras são cumpridas”. “Se acho que devíamos estar com um confinamento mais musculado? Acho que sim e aí o encerramento da escolas faz sentido”, explica.
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De qualquer forma, o especialista acredita que “o comportamento não se vai alterar a não ser pela imposição de mais regras”. “A única solução é alargar as regras e que uma delas seja o encerramento das escolas”, explica, detalhando: “É necessário mais fiscalização nas ruas, maiores restrições na mobilidade, a proibição de circulação entre concelhos tem de ser mais restrita e não ser apenas ao fim de semana”.