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Dois sons, quase em simultâneo, ecoavam do fundo do corredor. Um deles era Ihor Homeniuk a “gritar alto” e a gemer num “tom doloroso”. O outro vinha de três inspetores do SEF: “Está quieto! Pára quieto! Não te mexas”.
Quem os ouviu foram alguns dos vigilantes da Prestibel, a empresa de segurança privada contratada pelo SEF. Os gritos foram, porém, apenas uma parte dos relatos. Estes seguranças dizem que viram também os inspetores a entrar na sala onde estava o cidadão ucraniano com um bastão e algemas. E admitem que assistiram a parte de agressões — nomeadamente, um dos inspetores a pisar a cabeça da vítima contra o chão. No final, viram os inspetores a sair “suados” e a comentar uns com os outros que já não precisavam de “ir ao ginásio”. E perceberam que o estado em que Ihor Homeniuk foi deixado na sala era grave.
Mas todas estas revelações não foram feitas de imediato — não foram denunciadas logo no momento em que aconteceram nem foram descritas à Polícia Judiciária na primeira vez que os vigilantes foram ouvidos como testemunhas pela Polícia Judiciária, sabe o Observador. Foi preciso uma segunda ida à PJ para prestarem declarações, já vários meses depois do crime.
Quando foram ouvidos pela primeira vez, alguns vigilantes que se encontravam no Centro de Instalação Temporária (CIT) do aeroporto de Lisboa na manhã de 12 de março disseram que não se aperceberam das agressões e nem sequer ouviram gritos. Quatro meses depois, em julho, voltaram a ser ouvidos e foram muito mais detalhados e, sobretudo, reveladores, contando com pormenor as agressões que assistiram, incriminando os elementos do SEF que viriam a ser acusados de homicídio.
Como a autópsia e uma queixa anónima denunciaram o homicídio de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa
“Atenção, você não vá colocar aí os nossos nomes”. Apesar da ordem, vigilante pôs nomes de inspetores no registo
Eram cerca de 8h00 quando quatro dos vigilantes da Prestibel se preparavam para ir para casa, ao fim de um turno de 24 horas de trabalho. Não sem antes relatar aos quatro colegas que os iam render o que se passara na madrugada anterior: um cidadão ucraniano a quem tinha sido recusada a entrada em Portugal e aguardava o voo de regresso ao seu país tinha sido isolado numa sala porque “não estava bem” e tinha provocado “uma noite agitada”, nas palavras dos vigilantes à PJ. Tinha tido um “comportamento incorreto” e “de confronto”. A meio da madrugada, um dos seguranças acabou mesmo por torcer o pé ao tentar agarrar em Ihor Homeniuk para evitar que fosse contra um armário — no entanto, garantiu à PJ que nunca o agrediu: apenas lhe deu um “pequeno empurrão” em direção à porta, uma vez que o homem teria tentado entrar no balneário feminino.
Informados acerca desta situação, logo nessa manhã, pelo menos três vigilantes foram até à sala ver como estava o cidadão ucraniano. Encontraram-no deitado num colchão, com as pernas amarradas, a falar num tom alto e agressivo. Tinha a cara e o nariz inchados. Foi então que os três seguranças concordaram que o melhor seria chamar alguém do SEF, nomeadamente o diretor de fronteiras de Lisboa.
Momentos depois apareceu um coordenador: entrou na sala onde Ihor Homeniuk estava, ficou lá alguns segundos e foi-se embora. Depois apareceram três inspetores do SEF: Bruno Sousa, Luís Silva e Duarte Laja — agora acusados pela morte do cidadão ucraniano pelo Ministério Público (MP). Este último trazia um bastão, com o qual ia batendo continuamente na palma da mão. Um dos vigilantes contou à PJ que o inspetor se referiu ao bastão como “el douradinho”.
Na receção e antes de entrar na sala onde estava Ihor Homeniuk, o inspetor Luís Silva fez um pedido à vigilante responsável por registar as entradas e saídas de pessoas no CIT: “Atenção, você não vá colocar aí os nossos nomes, ok?”. À PJ, a vigilante explicou que não registou os nomes imediatamente por não ter o hábito de o fazer logo, preferindo fazê-lo “mais tarde”. No entanto, assim que se apercebeu do que tinha acontecido, colocou no registo de entrada do CIT a identidade de todos os inspetores que ali tinha estado — registo esse que, agora, é uma das provas do MP.
Vigilantes mudam depoimento quatro meses depois. Afinal, viram agressões e dizem que o que aconteceu era “evidente” para todos
Se alguns vigilantes revelaram à PJ que tinham ouvido gritos — e que não tiveram dúvidas de que eram de Ihor Homeniuk —, outros também disseram o contrário: que não ouviram qualquer barulho porque a sala fica ao fundo do corredor e a porta estava encostada. Certo é que, a determinada altura, mesmo aqueles seguranças que afirmaram não ter ouvido nada foram à sala dos Médicos do Mundo perceber o que se estava a passar. Abriram a porta — que estava encostada, o que não era habitual — e viram o cidadão ucraniano sentado no sofá, amarrado com as mãos atrás das costas. Só que o inspetor Duarte Laja, que estaria lá dentro, terá dito que não queria li ninguém e ordenou que saíssem dali: “Isto aqui é para ninguém ver”, relatou um vigilante.
Na primeira inquirição logo em março, todos os vigilantes garantiram à PJ que não tinham presenciado qualquer tipo de agressão até porque teriam sido afastados da sala pelos inspetores — o que não batia certo com o que a PJ encontrara nas câmaras de videovigilância. Nas imagens, era possível ver um dos vigilantes, junto ao balcão da receção, aparentemente a simular gestos de agressões. Mas, se não tinha assistido a qualquer agressão, como as podia imitar? Nessa altura, confrontado com essas imagens, o vigilante manteve a sua versão e disse que não se lembrava sequer de ter feito esses gestos.
Como a PJ reconstituiu o homicídio de Ihor a partir das imagens de videovigilância do SEF
O depoimento de outros seguranças também pôs em causa o deste vigilante. À PJ confirmaram que ele tinha de facto imitado as agressões que supostamente presenciara — uma delas, levantando uma revista enrolada no ar. Além disso, disse aos restantes seguranças que, se Ihor Homeniuk, voltava a fazer “alguma coisa”, bastava mostrar-lhe a revista, dando a entender que o cidadão ucraniano tinha sido agredido desta forma e que temia que voltasse a repetir-se. “Se ele fizer alguma coisa, vocês mostrem-lhe a revista que ele já sabe”, terá relatado segundo uma testemunha ouvida.
Só que, quatro meses depois, este vigilante mudou o depoimento e revelou que, afinal, assistiu a parte das agressões, quando foi à sala dos Médicos do Mundo motivado pelos “gritos de sofrimento” que ouvia. Segundo explicou à PJ, o inspetor Duarte Laja terá colocado o seu pé em cima da cabeça de Ihor Homeniuk e, com força, fê-la embater contra o chão. O ucraniano levantou depois a cabeça, em sofrimento, o que permitiu ao vigilante ver que tinha sangue nos dentes.
À PJ, o segurança explicou que não contou logo tudo porque se quis proteger. Mas não tem dúvidas de que todos os factos investigados tinham sido “evidentes” para todos os que os presenciaram.
Inspetores deixaram a sala “suados” e avisaram seguranças: “Se precisarem de mais alguma coisa, é só chamar”
Alguns falam em meia hora, outros em 20 minutos e outros ainda em cerca de uma hora. A perceção sobre quanto tempo Ihor Homeniuk esteve no interior da sala a ser agredido vai variando de vigilante em vigilante. Certo é que, como afirmaram vários deles à PJ, quando os inspetores do SEF saíram da sala o cidadão ucraniano já não gritava. “Ele depois ficou tão caladinho que julgávamos que ele estivesse a dormir“, disse um dos vigilantes.
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Já fora da sala, os inspetores estavam “suados” e comentavam uns com os outros que já não precisavam de ir ao ginásio. “Isto hoje, já nem preciso de ir ao ginásio”, terá dito um deles. Aos vigilantes pediram para deixar Ihor Homeniuk “quieto e sossegado” e avisaram: “Se precisarem de mais alguma coisa, é só chamar”. Um dos vigilantes terá ido “espreitar” o cidadão ucraniano e comentado: “Ele agora está sossegadinho” — isto, segundo um outro vigilante ouvido pela PJ.
Seguranças encontraram Ihor com hematomas graves e a tentar dizer alguma coisa. Só que ninguém percebeu
Tinha “marcas vermelhas nos braços”, a cara inchada e sangue no nariz. No corpo, havia “hematomas graves”. Tentava dizer alguma coisa, balbuciando palavras, mas os vigilantes não conseguiram perceber. Vestia apenas uma t-shirt e umas calças escuras e estava “todo encolhido” a “contorcer-se de dores”.
Foi assim que alguns vigilantes — outros negam ter reparado em quaisquer ferimentos — descreveram o estado em que encontraram Ihor Homeniuk após os inspetores do SEF deixarem o CIT. Apesar destes indícios de agressão, um dos vigilantes garantiu à PJ que em momento algum, após a saída dos inspetores, o cidadão ucraniano se queixou de dores. Outros, no entanto, dizem que tentaram colocar IhorHomeniuk em cima do colchão, mas ele começou a gemer e optaram por deixá-lo no chão por receio de lhe causar mais dores.
Uma das seguranças garante à PJ que todos ficaram preocupados com o estado de saúde do cidadão — mas, ainda assim, naquele momento não chamaram ajuda. Levaram-lhe água e tiveram até de lhe dar o pequeno-almoço à boca, já que permanecia algemado. Garantiu ainda que foram várias vezes à sala ver o estado de saúde do homem e tentar perceber, com gestos, se queria comer ou beber alguma coisa — ao que Ihor respondeu que não, acenando com a cabeça. Numa dessas vezes, notaram que as suas mãos estavam a ficar roxas.
À PJ, um vigilante explicou que não podem tomar decisões em relação à movimentação das pessoas instaladas no CIT e seria “impensável” retirarem o homem dali. O mesmo em relação às algemas. Apesar de ter na sua pose as chaves, não tinha poder para o fazer: ainda assim, pediu a um inspetor do SEF que aliviasse as algemas — o que fez. Nesse momento, Ihor Homeniuk terá aberto os olhos e disse algumas palavras impercetíveis.
“Isto não se faz”. Vigilante desconfiou logo dos inspetores porque “por vezes, para tentar acalmar as pessoas, usam a força”
Foi precisamente uma das vigilantes que, ao ver o estado de saúde de Ihor Homeniuk quando dois inspetores o tentavam levar para o voo de regresso ao seu país, decidiu chamar alguém do posto de socorro da Cruz Vermelha. Só que, conta, o homem “ficou sem reações vitais”. Os seguranças descreveram os momentos seguintes como um corrupio de gente. Os gritos dos inspetores faziam-se ouvir: “O que é que se passou? Quem é que fez aquilo? Isto não se faz, isto não se faz”.
Se alguns vigilantes disseram à PJ que não se aperceberam da real situação de gravidade em que Ihor Homeniuk se encontrava, outros afirmaram não ter dúvidas de que o homem tinha morrido devido à agressões. Apesar de não ter assistido, um deles garantiu que desconfiou logo daqueles inspetores porque “por vezes usam a força para tentar acalmar estas pessoas”, para “dominarem estes indivíduos” e para os “impedir de agredir outros”.