Março, 2020. Gonçalo Rodrigues foi para casa sem trabalho. Vindo da área da restauração, dedicou o seu tempo a intensificar o estudo sobre os mercados financeiros. Hoje, é assim que ganha a vida.
Maio, 2020. O restaurante onde Bruno Veiga trabalhava como gerente fechou. Com a pandemia, veio para casa. Ao longo de mais de duas décadas, a vida agitada no universo da restauração, essencialmente como barman, impediu-o de acompanhar com atenção o crescimento da filha: “De repente, olhei para ela, e tinha sete anos. Não podia continuar assim.” Hoje divide o tempo entre a consultoria imobiliária e a sua empresa de caminhadas na natureza.
Dezembro, 2020. Tiago Fialho vê, em menos de um ano, o seu segundo contrato de trabalho terminado antes do tempo. Duas décadas na área da restauração e hotelaria, o último cargo que ocupou foi como diretor de F&B de um hotel. Hoje, como tantos outros, é consultor imobiliário. Já consegue ter vida social. A mãe chorou de alegria por ter, finalmente, marcado presença no seu aniversário.
Quando a pandemia rebentou, vieram os despedimentos, os layoffs e a debandada geral. Com dois confinamentos decretados entre 2020 e 2021, a mão de obra da restauração e hotelaria, duas das áreas mais afetadas, foi forçada a ir para casa. E uma grande maioria dos trabalhadores não quis regressar.
A crise de recursos humanos nestes setores não é uma novidade e já se sentia antes. “Um problema estrutural”, descreve Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP – Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, que a pandemia agravou.
“Muitas pessoas acabaram por ‘migrar’ para outras atividades, quer porque durante dois anos houve inúmeras restrições à atividade, com períodos de encerramento obrigatório, criando incertezas quanto à estabilidade do emprego, quer pelas especificidades do próprio trabalho, que é exigente em termos de horários e disponibilidade para se trabalhar em alturas que tradicionalmente são de descanso para a maioria das pessoas.” Já vamos a números.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a falta de mão de obra na restauração.
Bernardo Martinho, diretor de Recursos Humanos do grupo Plateform, que detém 26 marcas e 150 restaurantes espalhados por todo o país, com expressiva representação em Lisboa (Vitaminas, Honest Greens, Coyo Taco, ZeroZero, Sala de Corte, Rocco ou Brilhante), reconhece porque é que estes trabalhadores não quiseram voltar: “Experienciaram outro tipo de horários de trabalho, outro equilíbrio entre vida pessoal e profissional”, diz.
“Conheço muitos casos de pessoas que saíram e que se tiveram de dedicar a outras coisas. De repente, estão noutro emprego, a trabalhar oito horas por dia, com uma vida tranquila, a ganhar mais do que na restauração, a descansar aos fins de semana”, conta ainda Miguel Peres, à frente do Pigmeu, restaurante que se dedica a sanduíches e petiscos de porco, no bairro de Campo de Ourique.
Dos sistemas de metas às gratificações. O que os restaurantes estão a fazer para atrair mais trabalhadores
Com o Pigmeu de portas abertas há oito anos, Miguel Peres explica que, antes da pandemia, a crise nos recursos humanos se expressava, sobretudo, na rotatividade: “As pessoas em média não ficam mais do que um ano [no Pigmeu]. Nós já estamos habituados a este ciclo no restaurante. A única diferença é que agora, nos últimos tempos, as pessoas saem e não há gente para trabalhar”.
Aqui, o problema da falta de pessoas vai sendo gerido passo a passo: quando alguém sai e é preciso recrutar — o que implica tempo –, chama-se alguém com experiência na área para vir ajudar a curto prazo, explica Miguel Peres. Um conhecido, um amigo de um colaborador, alguém que queira vir ocupar aquele lugar temporariamente. “Garante-me aquele mês enquanto ficamos à procura. E vamos recrutando.”
Para o empresário, além do salário, a exigência dos horários (aliada à intensidade da atividade nos mesmos) é dos fatores que mais favorece esta crise. Mas a solução revela-se uma “pescadinha de rabo na boca”, descreve.“Só se resolve de duas maneiras: fechando mais dias ou aumentando brigadas. Mas para fazer isso só existe uma forma: cobrar mais e a comida ser mais cara. No final, se formos fazer as contas, o grande problema é que para os trabalhadores da restauração terem uma vida mais decente o preço da comida tem de ser mais caro”. E os impostos aos empresários não baixam, lembra.
A solução para o problema, considera Miguel Peres, está mesmo nos funcionários. O mercado precisa deles – e, quando assim é, verga-se. “Os trabalhadores devem ir impondo as suas condições ao longo do tempo. Só assim é que as coisas vão mudar — foi sempre assim que as coisas mudaram. É um momento muito interessante que reúne uma série de condições, em que os trabalhadores estão a conseguir aumentar salários, a negociar condições de horários. É o momento certo para isso. O resto vai ter de mudar, como for. Está na mão do trabalhador.”
Essa mudança já vai sendo observada. Na Plateform têm vindo a ser implementadas uma série de medidas, mesmo antes da pandemia. “Temos trabalhado cada vez mais no sentido de não termos horários repartidos [fazer dois turnos, com intervalo de horas, no mesmo dia] ”, explica. Em algumas das marcas, como o Honorato, Coyo Taco ou Honest Greens, “marcas mais jovens”, a solução foi contratar funcionários para trabalharem em part-time: uns fazem os almoços, outros os jantares.
“Nos restaurantes em que isto não é possível, há uma equipa a trabalhar aos almoços, a preparar o serviço para o jantar, a preparar a mise en place. Saem ao final da tarde e entra o turno da noite. É uma forma de fazerem turnos seguidos.”
Além disto, garante o diretor de Recursos Humanos, há ainda um esforço para garantir um “equilíbrio nos horários”, ou seja, tentar que os trabalhadores não tenham, por exemplo, de trabalhar numa noite e manhã seguidas. “Também procuramos dar duas folgas juntas”, acrescenta. A mobilidade interna e evolução de carreira têm sido outra das apostas do grupo que detém mais de duas dezenas de marcas repartidas por mais de uma centena de espaços: “No ano passado, fizemos quase 450 evoluções de carreira, num universo de 2450 funcionários”. Destes, 95% desempenham funções em restaurantes.
A pensar nos que terminam o serviço depois do encerramento dos transportes, no Rocco, outro espaço do grupo, há até uma carrinha que leva os funcionários até zonas estratégicas, junto das suas residências. Houve também ajustes nos ordenados fixos e a implementação, recente, de um sistema de gratificação nos restaurantes onde há serviço de mesa: “Quando entregamos a conta ao cliente, sugerimos uma gratificação”.
Com uma máquina mais leve, o Pigmeu — um restaurante de bairro, um projeto independente — funciona de outra forma e não teve de implementar alterações tão profundas. A equipa tem seis funcionários — destes, dois trabalham em horários repartidos. As folgas são, para todos, ao domingo e à segunda-feira, dias de encerramento do restaurante.
Há flexibilidade para que os salários possam ser ajustados. “Já me tive de ajustar várias vezes, mas com profissionais capazes e competentes. Quando é assim, estou sempre disposto.” Além disso, está a ser implementada uma estratégia que permita aos funcionários receberem de acordo com os resultados atingidos. São definidas metas a alcançar e “as várias pessoas da equipa vão sendo remuneradas de acordo com os objetivos que atingem.”
O maior problema está na sala. “Os anfitriões, aqueles que cuidam das pessoas, são empregados de mesa. Só a designação da função já está errada”
A sala, explica Miguel Peres, é onde o problema mais se acentua. E resolvê-lo passa também por dignificar a profissão. “Os anfitriões, aqueles que cuidam das pessoas, são empregados de mesa. Só a designação da função já está errada.”, considera Miguel Peres.
Antigamente, lembra, eram eles as figuras mais distintas. “Se andarmos para trás, historicamente, eram o escanção e o chef de sala os que tinham uma função primordial no restaurante”, lembra. “A partir do [chef Auguste] Escoffier as coisas mudam e começa a dar-se destaque aos cozinheiros. Até muito recentemente, há 30 anos, ninguém sabia quem estava na cozinha. Sabíamos quem eram os chefs de sala, os donos dos restaurantes. Hoje não sabemos quem são essas pessoas, sabemos quem são os chefs.”
A distribuição do protagonismo, considera, está profundamente desequilibrada: “Há uma orientação global em que toda a gente se virou para o chef. Isso põe de lado o prestígio do chefe de sala e o escanção.”
Gradualmente, os profissionais de sala foram desaparecendo. Assim, “quem tem cuidado da sala não são os anfitriões com formação”, mas antes “trabalhadores precários, que vem de outras áreas onde não encontram emprego.” Pessoas que nem sempre têm a vocação necessária para desempenhar este papel.
Mas, bem ou mal, com ou sem formação, continuam a ser os embaixadores dos restaurantes. “Por isso, tem de haver um trabalho da parte de todos em valorizar cada vez mais o trabalho de sala”, considera Bernardo Martinho. Para esse efeito, e considerando a inexistência de pessoas formadas, mais do que as capacidades técnicas, interessam as comportamentais. “Acho que é um trabalho que temos de fazer cada vez: apostar nas soft skills e sermos nós a formar as pessoas no que compete à parte técnica”, diz, aludindo, sobretudo, a projetos que exigem um conhecimento mais profundo na arte de servir.
“Tenho aquilo que sempre quis: tempo, para mim, para a minha família. E dinheiro”
Os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) refletem a debandada: no último trimestre de 2022, “as atividades da restauração e similares e do alojamento turístico (canal HORECA) registaram um total de 309.100 trabalhadores, correspondendo a uma perda de 24.700 postos de trabalho (menos 7,4%), dos quais menos 17.600 na restauração e similares e menos 7.100 no alojamento”, nota a AHRESP.
Gonçalo Rodrigues, Tiago Fialho e Bruno Veiga não entram nesta estatística, porque foi entre 2020 e 2021 que decidiram arriscar. Em conversa com o Observador, os três concluem o mesmo: apesar do apreço pela área, que mantêm, havia uma descompensação entre a entrega e a gratificação. Bem embrulhado, davam muito e recebiam pouco em troca.
Os tais horários repartidos e os salários eram dois grandes obstáculos à qualidade de vida. O período de reflexão forçadamente oferecido pelos confinamentos aliado à necessidade de sustento, resultou na reinvenção. Hoje recebem mais, têm mais tempo livre e são mais felizes. “Tenho aquilo que sempre quis: tempo, para mim, para a minha família. E dinheiro”, diz Bruno Veiga.
Antes, como gerente de um restaurante no centro de Lisboa, e com uma bagagem de 20 anos como barman, o que mais o afligia era a falta de tempo para a filha. “Antes só conseguia estar com ela nas minhas folgas”, conta. “Decidi que não era vida. Foi uma das razões que me levou a desistir da hotelaria e restauração.” Mas havia também a ausência de vida social: “Não há jantares com amigos ou com família à sexta-feira à noite. Quando comecei a ir jantar fora a uma sexta ou sábado, dava por mim a do meio do jantar em silêncio porque desfrutava daquele momento. Não tive isso durante 23 anos.”
A “exploração dos funcionários” é um dos maiores problemas do setor, considera. “Aquilo que nós damos não é igual ao que recebemos”, acrescenta.
Gonçalo Rodrigues começou como empregado de mesa e lembra, sobretudo, as horas extraordinárias que não eram pagas. Com a Covid-19, os mercados financeiros deixaram de ser hobby e passaram a ser trabalho. Um emprego muito diferente do anterior: “Agora, consigo desenvolver a minha atividade em casa ou na rua, desde que tenha internet. Ganhei tempo para mim e para a família, que antes era quase inexistente.”
A relação com a família é, de facto, a vantagem que os três antigos funcionários da restauração mais referem: “Consigo passar tempo com a minha filha. Consigo ir buscá-la a escola, que foi uma coisa que ela no início até estranhou”, diz Tiago Fialho. “Estou muito feliz, podia ter arriscado há mais tempo.”
Os óleos e gorduras aumentaram 32,3%, a carne em 15,4% e o pão e cereais em 14%. O futuro da restauração é promissor?
O setor tem de adaptar-se para conseguir atrair e captar pessoas, mas é também fundamental dar-lhe condições, lembra a AHRESP. “Sabemos que as possíveis soluções exigem uma responsabilidade partilhada por todos, incluindo as empresas, mas para isso torna-se fundamental que se crie um ambiente mais favorável ao desenvolvimento dos negócios, nomeadamente através da redução dos encargos fiscais, em particular daqueles diretamente relacionados com os rendimentos do trabalho”, diz Ana Jacinto.
Só assim, acrescenta, “as empresas podem gerar mais riqueza e oferecer melhores condições aos seus colaboradores, nomeadamente em termos de salário, que, não sendo o único fator a ter em conta, ele é, sem dúvida, um ponto incontornável.”
Apesar dos esforços, os próximos tempos não se esperam promissores. Não só porque as pessoas foram e não voltaram, mas também pela crise económica provocada pela Covid-19, a que se acresce o contexto inflacionista provocado pela guerra que, em fevereiro de 2022, começou na Ucrânia, com consequências financeiras graves para o resto da Europa.
“Após dois anos consecutivos — 2020 e 2021 — em que as nossas empresas viram as suas tesourarias depauperadas, o contexto inflacionista dos primeiros meses de 2022, com o aumento do custo dos combustíveis, das energias e das matérias-primas sobretudo alimentares, trouxe dificuldades acrescidas às atividades do Alojamento Turístico e da Restauração e Bebidas”, explica Ana Jacinto. Dados do INE apontam para uma inflação média, na Restauração e Similares, de 7,3%.
Olhando as matérias-primas primordiais do setor, o cenário é negro: “A título de exemplo refira-se a eletricidade que aumentou 22,1%, o gás 38,5%, os óleos e gorduras, 32,3%, a carne 15,4%, e o pão e cereais 14%.”
O aumento dos preços ainda não esta visível nas cartas dos restaurantes. De acordo com a AHRESP, o fenómeno tem “provocado um severo esmagamento das margens de negócio, não permitindo a libertação de meios financeiros adicionais, comprometendo, no curto prazo, a sustentabilidade dos negócios”. Assim, as empresas, encurraladas, não têm como investir nas “atividades e nas pessoas.”
Mas Ana Jacinto lembra que o setor é também forte e maleável: “Apesar de toda a conjuntura e de toda a incerteza, estes setores são conhecidos pela sua resiliência, e até alguma obstinação, e têm vindo a transformar-se e a adaptar-se aos novos tempos e aos novos hábitos de consumo.”