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O encontro ocorreu em Doha, no Qatar. No passado sábado, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amir-Abdollahian, esteve na capital qatari para se encontrar com o líder político do Hamas, Ismail Haniyeh. Não se sabe ao certo onde é que ocorreu aquela reunião, em que o chefe da diplomacia iraniana denunciava os “crimes de guerra de Israel” e demonstrava mais uma vez o apoio ao grupo islâmico, mas vários rumores indicavam o hotel de cinco estrelas Four Seasons, em Doha, mesmo em frente à praia. Ora, para terminar com a especulação, a cadeia hoteleira canadiana adiantava, este domingo, na sua conta oficial do X (antigo Twitter), que “Ismail Haniyeh não está a viver, nem está hospedado, no Four Seasons Hotels Doha”.
Mesmo que o líder do Hamas até nem esteja hospedado naquele hotel de luxo, certo é que vive em Doha desde 2020, longe da Faixa de Gaza, território que gere politicamente como um líder exilado. E o sítio em que vive não foi escolhido ao acaso, uma vez que o Qatar tem vindo a ajudar financeiramente o território controlado pelo grupo islâmico. As autoridades qataris garantem que é “ajuda humanitária” para ajudar as “famílias” da região.
Devido a manter alguns contactos com o grupo islâmico e, ao mesmo tempo, ter uma boa relação com os Estados Unidos da América (EUA), Doha tem vindo a servir de mediador neste conflito em vários assuntos, incluindo na libertação de reféns e na abertura da fronteira entre Gaza e o Egito, em Rafah. Como tal, o Qatar é uma peça essencial no que diz respeito à projeção internacional do Hamas — mais que não seja porque acolhe o líder político do movimento —, mas está longe ser a principal.
O Hamas depende, essencialmente, de um grande aliado: o Irão. Sem o apoio de Teerão, o grupo islâmico estaria numa posição mais vulnerável e dificilmente conseguiria os recursos para lançar uma guerra contra Israel. Ao mesmo tempo, outro apoio fundamental é o Hezbollah, o grupo islâmico libanês e também pró-iraniano, que tem criado tensões na fronteira a norte do território israelita — e que é um dos braços armados mais fortes do mundo.
Hamas e Irão. Sunitas e xiitas unidos por um “inimigo comum”
“Beijamos aos mãos daqueles que planearam o ataque contra o regime sionista.” As declarações são do líder supremo iraniano, Ali Khamenei. Demonstram o apoio do Irão à operação do Hamas e também revelam o seu estatuto de principal inimigo de Israel no seio da comunidade internacional. “É evidente que defendemos a Palestina, defendemos as suas lutas“, prosseguiu o chefe de Estado, que negou, no entanto, que o Irão estivesse por detrás da guerra iniciada a 7 de outubro. “Os apoiantes do regime sionista e outros têm espalhado rumores nos últimos dois, três dias, incluindo que o Irão estaria por trás desta ação. Estes rumores são falsos.”
Os serviços de informação dos Estados Unidos e de Israel também não têm indicações de que o Irão tenha contribuído para o início da guerra. Mas, mesmo que não esteja por detrás do conflito, o Irão ajudou o Hamas nos últimos anos a vários níveis, criando as condições para o fortalecimento político e militar do grupo islâmico na Faixa de Gaza. Ao canal de televisão France 24, Didier Billion, o diretor-adjunto do Instituto Francês para Assuntos Internacionais e Estratégicos distingue “dois níveis de apoio” de Teerão.
O primeiro nível é “público”. “O Irão apoia a causa palestiniana com um apoio vincado ao Hamas”, realça o especialista francês. Esta diretriz da política externa, que a diplomacia iraniana assume sem rodeios, é fundamental para cimentar a autoridade de Teerão no Médio Oriente, ganhando o estatuto de líder do “eixo de resistência” contra Israel e cativando aliados. Já o segundo nível fica-se pelos bastidores: “É ajuda financeira ou logística das forças iranianas”.
O Irão não disponibiliza os números do apoio que dá ao Hamas, mas, numa entrevista em março de 2022 à Al Jazeera, Ismail Haniyeh desvendou que as autoridades iranianas doaram 70 milhões de dólares (cerca 66 milhões de euros) para que os grupos islâmicos contra Telavive desenvolvessem mísseis e outro tipo de armamento. O líder político do grupo sublinhou ainda que nunca aceitaria o cenário de uma guerra por procuração contra Israel, sinalizando que o Hamas e o Irão estavam unidos por um “inimigo comum”.
Essa questão de os dois grupos terem um “inimigo comum” foi também importante no passado. As relações entre o Irão e o Hamas nem sempre foram as melhores. Quando a guerra civil da Síria irrompeu em 2011, ficaram em lados distintos — e o grupo islâmico não apoiou a fação liderada pelo Presidente Bashar al-Assad, ao contrário das autoridades iranianas.
Adicionalmente, o Irão é um regime xiita, enquanto o Hamas se assume como um movimento sunita. Representam, portanto, diferentes ramos do islamismo, o que gerou algumas tensões em 2015, quando o Hamas apoiou tacitamente a Arábia Saudita — país com uma grande expressão sunita — na intervenção saudita na guerra civil do Iémen, contra os hutis xiitas apoiados pelo Irão.
Não obstante, os dois lados foram-se reconciliando desde 2015, entendendo as vantagens de se aliarem. O Irão quer criar, segundo Kobi Michael, membro do think tank Instituto Nacional de Estudos de Segurança (com sede em Telavive), um ambiente de guerra em volta de Israel para cansar o mais que pode “a sociedade israelita, de forma a esgotar as forças de defesa israelitas”. “É o denominador comum entre a estratégia do Irão e do Hamas. Por isso, o Irão é um ativo para o Hamas e o Hamas é um ativo para o Irão”, sustenta o especialista, em declarações à CNN internacional.
Por outras palavras, para o Hamas é importante ter o apoio, a múltiplos níveis, de uma potência regional como o Irão; já para Teerão, o grupo islâmico é essencial para desestabilizar Israel. Para além disso, mesmo pertencentes a ramos diferentes do islamismo, o inimigo comum não faz parte do mundo muçulmano, professando outra religião, o que cria uma espécie de convergência ideológica e religiosa entre o Irão e o Hamas.
Com a guerra que começou a 7 de outubro, o Irão espera uma “vitória” do seu aliado para o “colapso do regime sionista”, prevendo, se isso acontecer, uma “aniquilação” de Israel. Teerão rejeita, por conseguinte, uma solução de dois Estados. “A nossa luta é pela libertação da Palestina, não parte da Palestina. Qualquer plano que divida a Palestina tem de ser rejeitado”, defendeu o líder supremo iraniano, Ali Khamenei.
O Hamas até admitiu, em 2017, a implementação da solução de dois Estados (ainda que não reconheça a existência de Israel), mas as fações mais radicais do grupo islâmico estão, à semelhança do Irão, a favor de que exista um único Estado — palestiniano. É expectável que a escalada do conflito na Faixa de Gaza possa levar a uma radicalização da sociedade palestiniana contra a existência de Israel e até a levar a uma maior convergência do Irão com o grupo islâmico.
Hezbollah. O aliado do Líbano que fez uma reunião online a anunciar o ataque do Hamas
Em 1982, Israel invadiu o sul do Líbano para tentar liquidar alguns membros da Organização de Libertação da Palestina. Houve, entre outras, duas grandes consequências desta ação militar. A primeira é que as tropas israelitas ficaram em território libanês até 2000; a segunda relaciona-se com a criação de um grupo xiita pró-regime iraniano: o Hezbollah.
Desde aí, inspirado em termos ideológicos pela revolução islâmica iraniana (que tinha acontecido em 1979), o Hezbollah quis implementar um regime idêntico no Líbano. Tendo em conta esta premissa, não é de estranhar que aquele grupo tenha encarado Israel como um dos seus principal inimigos, enfrentando o país por diversas vezes.
Como escreve o think tank Council on Foreign Relations, o Hezbollah formou, ao longo das décadas, um poderoso braço armado (é considerado, entre os atores não estatais, um dos mais fortes do mundo), estendendo igualmente a sua ação para o ramo político, administrando alguns territórios no sul do Líbano. É considerado quase um “Estado dentro um Estado”, ainda que participe ativamente na política libanesa — e até tenha representação parlamentar.
A relação entre o Hezbollah e o Hamas começou a solidificar-se nos anos de 1990, nota a France 24, mas houve sempre algumas tensões entre os dois grupos, devido aos diferentes ramos islâmicos e a diferentes posições nos conflitos regionais. Mas, tal como o Irão, Didier Billion esclarece que “existe uma proximidade ideológica e política e uma convergência sobre a necessidade de lutar contra [Israel”].
Relativamente à guerra que começou a 7 de outubro, o Hezbollah desempenhou um papel fundamental. Segundo apurou o New York Times junto de duas fontes que estiveram presentes, o líder do grupo pró-Irão, Hassan Nasrallah, até organizou uma reunião online, em março de 2023, com todas as milícias apoiadas pelo Irão para anunciar que haveria uma guerra contra Israel que marcaria o início de uma nova era.
Não foi só apoio logístico que o Hezbollah ofereceu. O grupo forneceu armas e sobretudo treino ao Hamas, de forma a que a primeira incursão no sul de Israel, fundamental para o decorrer da operação tempestade Al-Aqsa, fosse bem-sucedida. E o grupo pró-iraniano tem deixado sempre no ar a possibilidade de entrar numa guerra com Israel, abrindo uma nova frente no conflito, o que complicaria a vida às tropas israelitas.
Para já, a abertura de uma nova frente parece não ser uma opção. Na passada quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Hossein Amir-Abdollahian, esteve no Líbano — e esteve quer com o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, quer com o primeiro-ministro libanês, Najib Mikati. No decorrer do encontro, o governante defendeu que é agora importante para o Irão defender “a segurança do Líbano e preservar a calma no país”.
Este foi, segundo Hossein Amir-Abdollahian, o “objetivo” da viagem do chefe da diplomacia do Irão. Apesar de não parecer à primeira vista interessado em abrir uma nova frente na guerra em Israel, o ministro deixou um aviso: “Se os crimes de guerra contra os palestinianos e Gaza continuam, isso receberá uma resposta do resto do eixo [pró-iraniano]”.
A posição ambígua do Qatar. As malas com dinheiro para Gaza e a tentativa de ser moderador
Acolhendo o líder do Hamas em seu território, o Qatar mantém relações com aquele grupo islâmico. Doha insiste que tem distribuído apenas ajuda humanitária na Faixa de Gaza, mas o diretor-adjunto do Instituto Francês para Assuntos Internacionais e Estratégicos tem dúvidas que fique limitado a esse âmbito. “O seu apoio financeiro de 30 milhões de dólares [cerca de 28 milhões de euros] é público e está provado. Esses pagamentos são dados a funcionários públicos em Gaza, mas sabemos perfeitamente bem que são membros do Hamas”, assinalou Didier Billion, que é categórico: “O dinheiro de Doha é usado como apoio direto à organização”.
O pequeno emirado no Golfo Pérsico tem ainda outras ligações com o Hamas. Como lembra a Sky News, o antigo emir do Qatar, Sheikh Hamad bin Khalifa al Thani, visitou Gaza em 2012, entrando pela fronteira de Rafah, numa altura em que o grupo islâmico já controlava a região há vários anos — e essa visita acabou, de certa maneira, por conceder legitimidade à liderança do Hamas na região.
Jogando em vários tabuleiros, esta proximidade com o Hamas não deverá naturalmente agradar aos aliados ocidentais do Qatar, principalmente aos Estados Unidos, que inclusivamente têm bases militares no país. Por sua vez, Doha tem assegurado que todo o apoio que tem fornecido a Gaza, incluindo três malas com 15 milhões de dólares (cerca de 13 milhões de euros) que entraram na região em 2018, tem apenas um cariz humanitário e tem de antemão o aval norte-americano e israelita.
Na sexta-feira, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, esteve no Qatar e reuniu-se com o primeiro-ministro (que também é ministro dos Negócios Estrangeiros), Mohammed Al Thani, que declarou, no encontro, que o emir “mantém sempre os canais de comunicação abertos com vários parceiros em diferentes arenas de conflito”. O objetivo é assegurar um “cessar-fogo, proteger civis e libertar prisioneiros”, trabalhando para “limitar a violência” e o “ciclo de conflitos na região”.
Embora defendendo a causa palestiniana e tendo cortado relações com Israel em 2008, o Qatar tenta manter-se como mediador entre o Hamas e o Ocidente. A jogada diplomática pode ser arrojada.