“O cidadão comum ouve nas notícias que o preço do pão vai subir, por exemplo, 20% – e não estranha porque também ouve que o preço do trigo subiu. Mas nós, os economistas, perguntamos: por que raio é que a subida do trigo pode ser justificação para subir tanto o preço do pão, quando o custo que as padarias têm com a compra de trigo não é mais de 10% dos seus custos totais e a maior parte dos custos diz respeito a salários?”. Paul Donovan, economista-chefe do suíço UBS, usa este exemplo para explicar o fenómeno psicológico que levou o surto inflacionista a prolongar-se no tempo (beneficiando, sobretudo, as margens de lucro de algumas empresas). Mas a tendência, agora, está a mudar – porque o “consumidor está a revoltar-se“.
De visita a Lisboa, esta quarta-feira, Paul Donovan teve um encontro com jornalistas para falar sobre a visão que o banco suíço tem para a economia global em 2024, uma visão que é um pouco mais otimista do que a generalidade dos bancos de investimento. Em parte, esse otimismo deve-se à confiança que o economista-chefe do UBS tem de que está a terminar o surto inflacionista que se viveu nos últimos anos. Em rigor, porém, Donovan não acha que houve um surto inflacionista mas, sim, “três fenómenos” que surgiram sequencialmente e que contribuíram para que a inflação se mantivesse elevada durante um período mais longo.
Na sua leitura dos acontecimentos, a inflação começou por subir à conta do efeito “transitório” relacionado com o pós-pandemia, a saída de um período em que houve acumulação de poupanças e as pessoas, globalmente, mantiveram os seus rendimentos apesar da quebra económica. Nesse momento, a procura económica, por bens e sobretudo por serviços, estava “quente”, o que coincidiu com um momento em que houve problemas na oferta: dificuldades das cadeias de abastecimento e no transporte marítimo, entre outros efeitos.
Coincidência ou não, foi quando estes problemas estavam a começar a resolver-se que, “infelizmente, a Rússia lançou a invasão da Ucrânia“, provocando uma enorme tensão nos mercados de energia e fazendo subir os preços de várias matérias-primas. Esse segundo momento, diz Paul Donovan, fez com que as pressões sobre os preços se mantivessem elevadas, de um modo geral, embora a inflação já tivesse nesse momento um perfil diferente, mais causada pelos preços da energia.
Na fase seguinte, os preços da energia baixaram mas “tivemos uma terceira onda de aceleração dos preços que foi uma inflação provocada pelas margens de lucro das empresas“, afirma o economista-chefe do UBS. Esta é uma opinião “controversa”, admite Paul Donovan, não obstante o próprio Banco Central Europeu já se ter pronunciado sobre este ponto há vários meses (desde logo no discurso que Christine Lagarde fez no último Fórum BCE em Sintra).
Pressionadas pelos trabalhadores que exigem subidas salariais para compensar a inflação (anterior), as empresas recusaram-se, numa primeira fase, a aceitar que esses aumentos resultassem em margens de lucro mais baixas. Aliás, pelo contrário, diz Paul Donovan: sobretudo as empresas do setor do retalho, distribuição, restauração e outros serviços não só lutaram para manter as margens de lucro como, de um modo geral, aproveitaram o ambiente inflacionista para aumentar os preços dos seus produtos, sabendo que as pessoas não iriam estranhá-los porque ouviam falar em inflação todos os dias.
“Mas isto é uma situação que dura enquanto dura. Não é sustentável“, diz o economista-chefe do UBS – e “hoje já chegámos ao momento em que os consumidores se revoltaram e já não estão a aceitar aumentos de preços como dantes”. Este é um fenómeno que, embora ocorra a ritmos diferentes conforme a região, é relativamente global: “o presidente da cadeia de supermercados norte-americana Walmart já veio dizer, no final do ano passado, que os consumidores estão muito mais sensíveis aos preços e se não tiverem descontos não compram“. O presidente da gigante Amazon, Andy Jassy, disse basicamente o mesmo.
Neste contexto, em que as empresas estão a ser forçadas a sacrificar margem de lucro para conseguirem manter as vendas, tudo aponta para que a inflação continue a baixar. E até vai baixar mais do que os números oficiais vão mostrar, diz o economista-chefe do UBS: “Uma forma que os supermercados, por exemplo, estão a ter para baixar preços é fazerem descontos a quem tem cartões de cliente, ou seja, sacrificam margem de lucro mas tentam aproveitar para fidelizar as pessoas”.
“Qual é o problema disto? É que eu, quando estou em Londres, vou a um supermercado e vejo um produto com dois preços: um preço ‘normal’ e um segundo preço, com descontos que por vezes chegam aos 30%, que é o preço pago por quem tem cartão de cliente. E é esse preço que eu vou acabar por pagar. O problema com isto é que quando se forem medir os dados para calcular a inflação, o preço que vai ser usado como referência é o preço ‘normal’ e não aquele que a vasta maioria das pessoas verdadeiramente paga”, diz Paul Donovan.
Assim, a leitura deste economista é que a verdadeira inflação que existe na economia é, na realidade, bem menor do que aquela que os dados demonstram – e isso pode ser um problema, “porque os bancos centrais estão a tomar decisões que dizem que ‘dependem dos dados’… mas os dados não são confiáveis“.
EUA devem descer juros em maio. BCE poderá seguir-se em junho ou julho
A menos que haja “uma catástrofe”, como uma grande escalada das tensões geopolíticas no Médio Oriente, “até ao final do ano iremos ver taxas de inflação, de um modo geral, entre os 2% e os 2,5%”. E, a confirmar-se essa “aterragem suave”, os bancos centrais “irão, com a sua política monetária, andar a reboque da descida das taxas de inflação”.
A convicção de Paul Donovan e do UBS é que a Reserva Federal dos EUA poderá começar a descer os juros em maio e, a partir daí, “os mercados vão começar a incorporar uma visão de que também o Banco Central Europeu (BCE) irá seguir as suas pisadas”. Ou seja, taxas de mercado como as Euribor – que servem de referência à maioria dos créditos à habitação em Portugal – devem começar a descer bem antes de o BCE concretizar a primeira descida de juros, que o UBS prevê que acontecerá em junho ou julho.
Esta perspetiva de descida dos juros irá ser muito positiva para a confiança do consumidor, diz Paul Donovan, um efeito que irá somar-se ao facto de as taxas de desemprego continuarem baixas, um pouco por todo o lado. “É certo que tem havido despedimentos, até a Google dispensou pessoas recentemente – mas não há assim tantas pessoas que conhecem gente que trabalha na Google, portanto não vivemos num contexto em que as pessoas têm medo de perder a sua principal fonte de rendimentos”, diz Paul Donovan.
Consumo das famílias não treme e dá presente à economia no final do ano
Isto está ligado à segunda razão pela qual Paul Donovan tem uma visão especialmente otimista para a economia. Além de achar que o surto inflacionista está perto do fim, o economista-chefe do UBS também está confiante em relação ao consumo das famílias – que em Portugal já foi decisivo para haver um surpreendente crescimento económico de 0,8% no quarto trimestre, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE).
“Se dividirmos a população em classes de rendimento [e património] temos três tipos: os que têm mais, os que ganham menos e os que estão no meio“, afirma Paul Donovan, acrescentando que “os que ganham muito têm padrões de consumo elevados mas estáveis, os que têm pouco consomem grande parte do seu rendimento mas isso, em termos agregados, não é muito significativo – são os que estão no meio que determinam a velocidade a que a economia mexe“.
A convicção do economista-chefe é que, “neste momento, este grupo do meio está relativamente bem” e isso não deve mudar nos próximos tempos porque “não se antecipa que o desemprego suba significativamente”. Juntando a isto os sinais de que a inflação está sob controlo e os bancos centrais podem baixar as taxas de juro, Paul Donovan diz haver razões para ter uma visão otimista sobre o crescimento económico – sobretudo em países como Portugal, que “são bons a vender divertimento, que é aquilo onde as pessoas estão a gastar mais dinheiro hoje, mais do que em bens materiais”.