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De origem africana, Ubuntu traduz-se na expressão “eu sou porque tu és”, e valoriza a solidariedade, procurando inspirar os jovens a serem agentes de mudança ao serviço da comunidade

LightRocket via Getty Images

De origem africana, Ubuntu traduz-se na expressão “eu sou porque tu és”, e valoriza a solidariedade, procurando inspirar os jovens a serem agentes de mudança ao serviço da comunidade

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Inspirada em líderes como Mandela ou Sousa Mendes. O que é a filosofia africana Ubuntu e por que ganha adeptos nas escolas portuguesas?

A palavra de ordem é criar pontes, à semelhança do que fizeram líderes como Mandela, Madre Teresa de Calcutá ou Aristides de Sousa Mendes. Academia portuguesa já chegou a 190 países.

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“Aceito que um aluno não queira construir pontes, posso respeitar que seja passivo, o que não aceito é que destrua as pontes que construímos.” Paulo Mota é diretor da secundária Almeida Garrett, em Vila Nova de Gaia, uma escola não agrupada e uma das primeiras em Portugal a deixar entrar a filosofia africana Ubuntu. A referência às pontes não vem por acaso: Ubuntu é criar pontes, laços, perceber que sem o outro ninguém existe. Quando Paulo Mota pôs o braço no ar para participar na iniciativa — apresentada às escolas de Gaia pela Câmara Municipal — a secundária Almeida Garrett estava fora da lista daquelas onde o programa faria especial sentido por terem comunidades mais problemáticas. Mas Paulo Mota gostou tanto do que ouviu que foi em frente.

Formou na filosofia africana professores e técnicos especializados da escola (psicólogos), avançou para as academias de alunos — uma semana inteira Ubuntu sem aulas — e criou o clube com o mesmo nome. Hoje, o objetivo é chegar a cada vez mais estudantes, de preferência à maioria, mesmo que saiba que nunca chegará a todos.

Ubuntu, de forma muito resumida, é um programa de capacitação de jovens que usa como modelos de inspiração líderes como Nelson Mandela, Martin Luther King, Malala, Madre Teresa de Calcutá ou Aristides de Sousa Mendes. De origem africana, traduz-se na expressão “eu sou porque tu és”, e valoriza a solidariedade, procurando inspirar os jovens a serem agentes de mudança ao serviço da comunidade, de forma a construir uma sociedade mais justa e solidária.

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Este ano letivo, o programa ganhou novo fôlego. O Instituto Padre António Vieira (IPAV), criador das Academias Ubuntu, assinou uma parceria com a Direção Geral de Educação (DGE) e a iniciativa passou a fazer parte do Plano 21|23 Escola+. Dito de outra forma, ao ser integrado no programa de recuperação de aprendizagens desenhado pelo Ministério da Educação, que serve de resposta às perdas sofridas pelos alunos durante a pandemia (académicas e sócio-emocionais), qualquer escola do país pode candidatar-se a ter uma Academia de Líderes Ubuntu. O mentor do projeto, Rui Marques, não podia estar mais satisfeito e os vários diretores ouvidos pelo Observador aplaudem a iniciativa — desde que se mantenha de adesão voluntária, quer seja da escola, dos professores e dos alunos.

Recuperação de aprendizagens. Plano para 2 anos vai custar 900 milhões de euros. Governo promete mais 50 salas de pré-escolar

O programa em escolas públicas é único em Portugal — em 2016 tinha duas escolas, hoje chega a 380 —, mas o IPAV quer crescer e já tem parcerias com dezenas de países. Para chegar às escolas, nos últimos anos, têm sido os municípios a entrar com o financiamento necessário. Um dos exemplos é o da Câmara da Mealhada — que celebrou um protocolo com o Instituto Padre António Vieira e o agrupamento de escolas do município —, atribuindo um total de 18 mil euros ao IPAV para a implementação e execução do projeto em três anos letivos consecutivos (2020/2021, 2021/2022 e 2022/2023). Feitas as contas, são 6 mil euros por ano para as várias escolas.

Seja em que agrupamento for, o custo por aluno irá variar consoante o número de estudantes que cada escola mobiliza para as suas academias, explica Rui Marques. “A nossa estimativa é que possa corresponder entre 60 a 90 euros por aluno participante e por ano letivo.”

Segundo declarações feitas no início do ano letivo pelo ministro da Educação, cada aluno da rede pública custa 6.200 euros por ano ao Estado, segundo as contas do ministério que apontam para um aumento da despesa de mais de 30% nos últimos seis anos.

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A Fundação Gulbenkian, parceira da iniciativa desde o seu nascimento em 2010, já investiu cerca de um milhão e meio de euros nas várias vertentes do Projeto Ubuntu, do qual as Academias são uma pequena parte. Estas passam agora a estar inseridas, durante três anos letivos, no plano de recuperação de aprendizagens que assenta em três eixos e cinco domínios. O orçamento? 900 milhões de euros para a totalidade do plano de recuperação, do qual Ubuntu é uma ínfima parte.

No Plano 21|23, as Academias Ubuntu fazem parte do eixo Ensinar a Aprender (que oferece 37 ações específicas à escolha dos diretores) e do domínio Inclusão e Bem Estar. Este engloba oito ações específicas e, dentro delas, as academias Ubuntu fazem parte do Programa para Competências Sócio Emocionais.

Cada aluno custa 6.200 euros por ano, um aumento de 30% desde 2015

Ashoka, Dream a Dream e Ubuntu: tudo tem a ver com empatia

João Costa, secretário de Estado Adjunto da Educação, explica ao Observador que Ubuntu não é único, há outros movimentos de empreendedorismo social a acontecer nas escolas de todo o mundo. “Há várias iniciativas deste tipo noutros países, por exemplo o programa Ashoka, ou o Dream a Dream, com forte presença na Índia. Portugal é, tanto quanto me é dado perceber, um dos poucos países que integra um programa desta natureza na política pública de educação.”

O programa Ashoka, que tem presença em Portugal, defende que todos são agentes de mudança e contribuem para alterações sociais de uma maneira positiva. Uma das suas pedras basilares é garantir que todas as crianças praticam a empatia. Já o Dream a Dream chama a si a missão de capacitar jovens de origens vulneráveis ​​a superar as adversidades, dando-lhes competências sócio-emocionais, para que possam prosperar.

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Com tantos projetos que visam aumentar as soft skills dos estudantes, por que motivo a escolha recaiu no Ubuntu? Enquanto o projeto funcionou em piloto, explica João Costa, teve sempre o acompanhamento da tutela e o apoio financeiro de alguns municípios e da Gulbenkian e foi mostrando resultados positivos entre os alunos. “Os resultados dos estudos de impacto e a avaliação das intervenções nas escolas TEIP revela que há um efeito transformador em várias dimensões do desenvolvimento dos alunos, em tudo coerente com o trabalho pretendido no Apoio Tutorial Específico, pelo que entendemos que faria todo o sentido abrir a possibilidade a que todas escolas aderissem ao programa.”

O secretário de Estado diz ainda que “a fase piloto foi sujeita a avaliação, sendo manifestos os impactos nos resultados escolares e em competências sociais e emocionais”. Desde que o Apoio Tutorial Específico foi criado, em 2016, que se assumiu que se devia centrar no desenvolvimento de competências que permitem uma melhor relação dos alunos consigo próprios e com os outros, argumenta João Costa. “Entendemos que este programa é um apoio inequívoco para os professores tutores.”

O Observador pediu ao ministério dados dessa avaliação, mas não os obteve até à publicação deste texto. Da mesma forma, o ministério não esclareceu quais os custos das academias por aluno.

Autoconfiança e autoestima são indicadores que sobem entre os alunos

Os números concretos são apresentados por Rui Marques e decorrem da avaliação de impacto que é medida através da autoavaliação: os jovens dizem como estavam no início da formação e dizem como estão no final. A seguir é fazer contas. “Esta ferramenta mostra, consistentemente, melhorias em todos os indicadores”, sublinha Rui Marques.

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Os aumentos mais expressivos são nos indicadores da autoconfiança, que sobe, em média, 34%; no do desenvolvimento pessoal e profissional (28%); no da autoestima (24%); e no do autoconhecimento (22%).

“Em autoavaliação, os estudantes participantes sinalizam um impacto muito significativo, mas temos em desenvolvimento outras ferramentas de avaliação que nos darão progressivamente mais informação sobre o impacto gerado na Academia”, sustenta Rui Marques. Aliás, o facto de fazer parte do plano de recuperação e aprendizagens obriga a isso mesmo: a medir e monitorizar resultados.

Filinto Lima, diretor do agrupamento de escolas Dr. Costa Matos, está no início do processo de ser uma escola Ubuntu. Ele próprio fez a formação, em conjunto com muitos outros diretores de Vila Nova de Gaia. “É muito interessante, aprende-se muito da vida e faz-nos olhar para o nosso interior. Muitas vezes fazemos as coisas de forma mecânica, sem as saborearmos. Este lado humanista interessa-me muito e cativou-me.”

Satisfeito de ver chegar a iniciativa ao resto do país, o também presidente da Andaep, associação que representa diretores de escolas públicas, só deixa um alerta: “Deve continuar a ser voluntário aderir. Não devemos impor este tipo de projetos, devemos proporcioná-los para que as escolas, onde façam sentido, os abracem. Mas vejo muitas qualidades e acho que em qualquer escola o feed back será positivo, porque trabalha sobretudo o lado do aluno-cidadão, a forma como olha as pessoas e como interage com elas.”

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O mesmo diz a presidente do Conselho de Administração da Gulbenkian, parceira do IPAV desde a primeira hora. “Faz sentido disponibilizar, mas não impondo localmente, antes facultando como recurso para que, quem assim o entenda, o possa aplicar”, afirma Isabel Mota. Nesse sentido, e tendo surgido como resposta “de baixo para cima”, diz ver com agrado que quase 400 agrupamentos tenham entendido experimentar esta metodologia.

Até à data, junto dos diretores, não foram levantadas objeções sobre um projeto que o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, já assumiu que gostava de ver chegar a mais escolas do país. Por agora, estão envolvidas 380 escolas espalhadas por 170 concelhos do país, segundo Rui Marques.

As Academias Ubuntu contam com o alto patrocínio do Presidente da República e o do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, na versão Ubuntu United Nations, que levou a metodologia criada em Portugal a 190 países (só Coreia do Norte, Mónaco e Liechtenstein ficaram de fora). Nesses eventos, 100% online, os jovens Ubuntu têm a oportunidade de ouvir vários prémios Nobel da Paz falar sobre as suas experiências de vida.

“Este é um começo de uma outra fase – a projeção nacional alargada. Que este encontro seja o começo de um novo caminho, de uma dimensão nacional para o espírito Ubuntu. (...) E que chegue a todo o Portugal aquilo que é tão simples, mas que é a chave do relacionamento entre pessoas e da afirmação da liderança: Eu sou, porque tu és.”
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República

Programa chega a metade das escolas portuguesas

“O Ministério da Educação, de forma inteligente — e nem sempre é assim —, conseguiu ir buscar este programa que faz todo o sentido. Se estivermos bem, estamos mais disponíveis, aprendemos melhor”, diz Paulo Mota. Quanto a potenciais críticos ao programa, está sempre disponível para conversar.

“Ser contra estas ideias não é crime e não estamos a falar de um programa curricular. É de adesão voluntária, qualquer aluno precisa da autorização do encarregado de educação para participar. Se o aluno não acredita, se a família não acredita, está no seu direito e convivemos bem com isso”, explica o diretor, que faz um paralelismo com a história dos alunos de Famalicão, onde, por opção dos pais, dois irmãos não frequentaram a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, curricular e obrigatória. Aqui, não há qualquer semelhança, porque tudo é opcional.

Na Várzea de Sintra, há uma escola pública sem turmas, sem anos e sem testes

No entanto, Paulo Mota assume que, se tivesse à sua frente um pai ou uma mãe contrários à filosofia, tentaria explicar ao encarregado de educação o que está em causa, para garantir que a sua resposta às Academias Ubuntu é mesmo negativa, depois de se estar informado sobre o tema.

“Até agora, não apareceu ninguém contra. Mas estou pronto para conversar com quem quer que seja sobre o que Nelson Mandela, Martin Luther King ou Madre Teresa de Calcutá tenham exercido de mal ou em que é que foram contra o Homem. Até me podem ajudar a ver onde falharam”, conclui o diretor da escola secundária.

[A mensagem do secretário-geral das Nações Unidas para a Academia de Líderes Ubuntu]

A filosofia é africana, a metodologia portuguesa. A meta é ter líderes servidores

A Academia de Líderes Ubuntu nasceu há 11 anos, recorda Rui Marques, quando a Fundação Calouste Gulbenkian procurava uma iniciativa que capacitasse jovens descendentes de imigrantes africanos e originários de contextos vulneráveis. Em 2010, a Amadora tornou-se o epicentro Ubuntu em Portugal e as academias aconteciam fora das escolas, com a ajuda de parceiros como a Fundação Oriente e o Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa da Universidade Católica.

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Ter começado por olhar para jovens descendentes de africanos com uma filosofia vinda da África do Sul foi apenas uma feliz coincidência, sustenta Rui Marques. “O Ubuntu é um presente de África para o mundo e que faz muita falta no mundo em que estamos. A ideia ‘eu sou porque tu és’ é um conceito fundamental das comunidades ancestrais, e foi a chave para Nelson Mandela e Desmond Tutu quererem transformar uma África do Sul que vivia num regime de apartheid num Estado em que todas as etnias fossem consideradas membros de uma Nação Arco-Íris.”

Esperança pela igualdade perdeu-se na África do Sul pós Mandela, revela Fundação
“Respeito. Cortesia. Partilha. Comunidade. Generosidade. Confiança. Desprendimento. Uma palavra pode ter muitos significados. Tudo isso é o espírito de Ubuntu. Ubuntu não significa que as pessoas não devam cuidar de si próprias. A questão é: você vai fazer isso de maneira a desenvolver a sua comunidade, permitindo que ela melhore?"
Nelson Mandela, Prémio Nobel da Paz de 1993

Como é que de um país que vivia em segregação racial se dá o pulo para um programa que faça sentido nas escolas portuguesas onde a democracia já tem 47 anos? “A ideia é africana, mas a visão é portuguesa”, explica Rui Marques.

O que o IPAV desenvolveu, com Rui Marques a encabeçar o projeto, foi uma metodologia de educação não formal — ou seja, que passa pelas experiências e relações — para capacitar jovens para a liderança, através da ética do cuidado, do cuidar de si próprio, do outro, da comunidade e do planeta, explica. “O primeiro foco é capacitar jovens para serem líderes. A segunda dimensão é que sejam líderes servidores, que servem a comunidade. É quase o oposto da tradição de que líder é aquele que é servido e tem todos os direitos. O líder servidor tem uma grande carga de humildade e é o primeiro a servir quem está à sua volta.” 

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Outro ponto fundamental da metodologia, explica o mentor do projeto, é a construção de pontes: “Os Ubuntus são pontífices, construtores de pontes num mundo cheio de fraturas, polarização e discurso de ódio. Ser Ubuntu é dialogar com uma perspetiva construtiva, é ser capaz de construir pontes entre ideias, crenças ou religiões diferentes.”

Os cinco pilares Ubuntu e os cinco dias sem aulas

A metodologia Ubuntu está estruturada em cinco pilares “essenciais para o desenvolvimento sócio emocional” dos alunos, como explica Isabel Mota, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian: o autoconhecimento, a autoconfiança, a resiliência, a empatia e o serviço.

A avaliação externa, garante, tem demonstrado resultados muito positivos, tornando evidente que “os alunos que acedem a esta oportunidade se sentem mais confiantes e mais capazes de cuidarem de si, dos outros e do planeta”, defende Isabel Mota que vê com satisfação o crescimento do projeto: “É com agrado que vemos como esta ideia portuguesa, nascida pela mão do Dr. Rui Marques e do IPAV, se internacionalizou, estando presente em 190 países, e agora se transformou em política pública.”

Mas, na prática, como é que o Ubuntu chega às escolas? Primeiro, formam-se os adultos — diretores, professores e técnicos especializados — depois os alunos. Os alunos, que só podem entrar nas academias com o consentimento dos pais, não têm aulas durante uma semana inteira e as atividade decorrem no estabelecimento de ensino ou noutro local alternativo.

“Ao longo de uma semana, juntamos entre 30 a 40 alunos, escolhidos pelas escolas, e temos cinco dias temáticos: liderar como Mandela; construir pontes, vencer obstáculos; vidas Ubuntu e I have a Dream”, explica Rui Marques. A metodologia usada passou pelo crivo do programa Academias de Conhecimento da Gulbenkian, que testa e valida metodologias que melhorem as chamadas soft skills.

O agrupamento de escolas do Alto do Lumiar, dirigido por Maria Caldeira, fez parte do primeiro projeto piloto de Academias Ubuntu em Portugal. “Foi durante as Jornadas do Pensamento Emocional do ISCTE, quando as academias foram apresentadas com o intuito de puderem vir a ser adaptadas às escolas, que tive o prazer de conhecer o Rui Marques.” Mais tarde, a DGE convocou todas as escolas de Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) de Lisboa para integrar o piloto e ver como funcionava em adolescentes. Até à data, o alvo do programa eram jovens adultos.

Em Lousada, os alunos também governam a escola e os professores agradecem

“Em 2018, fizemos a primeira semana e decidimos fazê-la fora do contexto da escola, porque achámos que era bom os alunos sentirem outra dinâmica, e usámos o Centro Social da Musgueira”, conta a diretora Maria Caldeira. Desde então, têm feito as semanas com alunos do 7.º, 8.º e 9.º anos, inclusive durante a pandemia. “Começámos depois a fazer outra reflexão sobre como seria alargar a iniciativa ao 1.º ciclo e o IPAV queria muito responder a essa pergunta. Assim, este ano estamos a formar os professores dos mais novos e, se tudo correr bem, no 2.º período faremos a formação das turmas do 3.º ano.”

As Academias de Líderes Ubuntu são cinco dias de experiência imersiva. “Não têm aulas, usam uma metodologia muito própria, trabalham a resiliência, partilham experiências de vida, criam pontes, discutem projetos de vida, ouvem-se testemunhos de líderes servidores, exemplos de superação e histórias de sucesso de pessoas que tiveram percursos de vida desafiantes”, conta a diretora, que considera que o dia mais marcante para os alunos é aquele em que ouvem as histórias de vida. No último dia, são os alunos a dar o seu próprio testemunho e, no final, quando se tornam Ubuntu recebem uma t-shirt preta com o número 466/64, o número de Mandela na prisão na Ilha Robben.

Desmond Tutu Takes Up Visiting Professor Role At Kings College London
“Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para as outras, apoia as outras, não se sente ameaçada quando outras pessoas são capazes e boas, com base numa autoconfiança que vem do conhecimento de que ele, ou ela, pertence a algo maior que é diminuído quando outras pessoas são humilhadas ou diminuídas, quando são torturadas ou oprimidas."
Arcebispo Desmond Tutu Desmond (Igreja Anglicana, Prémio Nobel da Paz em 1984)

Se algum dos alunos escolhidos não quiser participar, algo que até à data não aconteceu, é integrado noutra turma durante essa semana e tem um horário letivo normal. E há diferenças visíveis nos estudantes ao fim desses cinco dias? “Varia imenso, porque também estão em diferentes estágios de vida, de empatia, em diferentes estágios emocionais. Onde sinto maior diferença é nos alunos com histórias de vida mais difíceis e que mudam muito o comportamento em sala de aula e em relação aos outros.”

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Na sua escola, os líderes Ubuntu acabam por ser integrados noutro programa do agrupamento, os Diálogos de Liderança, Tutorias e Mentorias, onde desempenham o papel de mentores. O projeto é para continuar neste agrupamento, e só resta ver como será a sua evolução depois da experiência com o 3.º ano.

“Julgo que alargar este projeto é bom para todos. Em territórios como os meus é ainda mais importante porque dá outro ponto de vista aos alunos. A ideia de ‘eu sou porque tu és’ nestas escolas com enquadramentos sociais desafiantes ajuda muito a criar empatia”, sublinha a diretora. Em contrapartida, acha que desperta quem não teve experiências de vida tão marcantes para a dificuldade de outras existências e ajuda esses jovens a olhar os colegas de outra forma.

Se até agora nunca ouviu um não de um encarregado de educação, acredita que isso possa acontecer noutras zonas de Lisboa, com outros contextos sociais. “A única justificação que vejo que possa ser usada, em contextos mais favorecidos, é por ter alguma ligação à religião, embora não tenha qualquer cariz católico. Mas como a iniciativa é do Padre António Vieira, se os pais não forem católicos podem achar que tem a ver com a igreja e não querer participar.”

Demonstrators Holds Hands at Anti-War Protest

As Academias de Líderes Ubuntu são cinco dias de experiência imersiva. Não têm aulas, usam uma metodologia muito própria, trabalham a resiliência, partilham experiências de vida, criam pontes

Corbis via Getty Images

Em Sintra, “parece que vinham possuídos pelo bem”

A primeira experiência de Luísa Oliveira com a filosofia Ubuntu foi em 2016. O seu agrupamento de escolas, o Alto dos Moinhos, em Sintra, fez uma parceria com o IPAV e uma turma passou pela Academia de Líderes. “Ficamos com o bichinho de ter mais”, conta a diretora. A hipótese chegou através da Câmara Municipal de Sintra e das candidaturas ao Portugal 2020. “Apresentámos a proposta como um programa de promoção de sucesso escolar e foi aceite.”

A diferença que viu nos primeiros professores formados foi imediata. “Parecia que vinham possuídos pelo bem”, diz rindo. “Vinham de coração cheio, energia renovada, e ficámos cheios de vontade de irmos aplicando a metodologia a mais turmas, principalmente a grupos de alunos mais velhos, com mais problemas de relacionamento e de insucesso escolar.” Sobre a semana Ubuntu não tem dúvidas: é intensiva e muito poderosa. Se, no início, alguns professores ficavam reticentes com o facto de os alunos não terem aulas, as dúvidas dissiparam-se. “Os professores veem a importância dessa semana e não levantam problemas, até porque é mesmo visível a mudança nos alunos. Fica ali uma semente.”

Continuando sempre a dar passos em frente, a escola já tem um mediador Ubuntu, um psicólogo, a trabalhar na escola a tempo inteiro e a potenciar outros projetos que o agrupamento já tinha, como o da equipa de bem estar ou o programa de mentorias e tutorias. “Aqui na escola o Ubuntu acaba por estar sempre presente e tem princípios que deviam fazer parte do projeto educativo de qualquer escola: aprender a cuidar dos outros, a cuidar de si e da comunidade”, argumenta a diretora. No seu agrupamento, este ano letivo, as academias vão chegar também ao 1.º ciclo.

A conclusão de Luísa Oliveira é que ser Ubuntu muda mesmo alunos e professores: “Olham e veem verdadeiramente o outro como ele é, aprendem a compreender porque é que o outro é assim e acabam por cuidar e respeitar mais o outro. Há mais empatia, menos bullying. Para os professores, é mais uma ferramenta para percebermos melhor os alunos e cumprirmos a missão de não deixar ninguém para trás.”

Obama Meets With US Conference Of Mayors Leadership
"Mandela compreendeu as teias que unem o espírito humano. Existe uma palavra na África do Sul — Ubuntu — que descreve a sua maior dádiva: o seu reconhecimento de que estamos todos ligados através de formas que podem ser invisíveis a olho nu; que há unidade na humanidade; que nos alcançamos quando nos partilhamos com os outros, e tomando conta daqueles que estão à nossa volta."
Barack Obama, discurso no memorial a Nelson Mandela (2013)

Ubuntu como ferramenta para combater o bullying

“O programa é uma ferramenta apenas.” João Costa usa a expressão, mas não minimizando o que a ferramenta pode fazer. “O propósito” é que seja usada para combater, ou até evitar, problemas como bullying, exclusão e insucesso escolar.

O plano de recuperação das aprendizagens prevê que sejam desenvolvidos instrumentos de monitorização do próprio plano, mas também de indicadores de bem-estar sócio emocional, lembra o secretário de Estado, revelando que para tal o Ministério da Educação conta com o apoio da Ordem dos Psicólogos. “Sabemos que a pandemia afetou o bem-estar de todos e também dos jovens. Por isso, recuperar aprendizagens é também trabalhar a inclusão e as emoções.”

E essa é uma das vantagens, quando se pensa no bem estar, desta metodologia: o estudante que se torna Ubuntu, em relação a outro a quem não são dadas as mesmas ferramentas (seja através de que metodologias for), terá mais capacidades ao nível do autoconhecimento, da autorregulação, autoconfiança, resiliência, empatia e cuidado consigo e com os outros, ressalva João Costa.

A evidência? “Temos hoje dados, por exemplo do estudo em que Sintra participou, promovido pela OCDE, que mostra uma clara correlação entre estas dimensões e o desempenho académico dos alunos.” João Costa refere-se ao estudo apresentado em novembro em Sintra, que analisou as competências sociais e emocionais de milhares de alunos, de 10 e 15 anos, em 10 cidades de todo o mundo.

Uma das conclusões apresentadas é que os jovens de 15 anos têm menos capacidades sociais e emocionais do que os colegas de 10 anos, mostrando que a criatividade e a curiosidade dos alunos cai à medida que avançam no percurso escolar.

Estudo mundial realizado em Sintra revela decréscimo de competências ao longo de percurso escolar

Por outro lado, o estudo inédito revela que o sentido de responsabilidade é a característica que é partilhada pelos bons alunos do concelho de Sintra, a cidade portuguesa que participou no estudo inédito. Assim, as competências sociais e emocionais são “fortes indicadores do desempenho na escola”, conclui a OCDE.

Isabel Mota acrescenta que a experiência no terreno, e a avaliação externa que vem sendo conduzida, tem demonstrado resultados muito positivos, evidenciando que os alunos que acedem a esta oportunidade se sentem mais confiantes e mais capazes de cuidarem de si, dos outros e do planeta.

Para a presidente da Gulbenkian, estas academias estão ao serviço da escola, mas também da comunidade, ajudando a construir uma sociedade mais justa e solidária. “Ao desafiar os jovens a olharem para si, para os outros e para a sua escola e comunidade, a Academia tem o poder de os convocar a agirem sobre as suas realidades e contextos”, acredita. Esse foco nos problemas próximos, e esse convite para agir enquanto  coletivo na mudança que queremos ver, tem por si só uma enorme potencialidade.

Rui Marques resume de outra maneira. “Os jovens Ubuntu são mais bem sucedidos, e têm mais sentido e propósito na vida. Quando se questionam sobre o que andam aqui a fazer, já estão a ajudar a promover o sucesso escolar e a combater o bullying, porque se detetam um caso são os primeiros a intervir. Um Ubuntu não pode ser passivo.”

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