A Câmara Municipal de Oeiras recebeu — como contrapartida de isenções de taxas e de uma comparticipação financeira de 349 mil euros — 3.600 bilhetes para o festival NOS Alive. Pelo menos uma centena desses bilhetes, confirmou a autarquia ao Observador, foram oferecidos aos vereadores e deputados municipais, que tiveram direito a “dois por pessoa“. A oposição (em particular a Iniciativa Liberal e a coligação Evoluir Oeiras) denunciou que pode estar em causa um conflito de interesses, já que os mesmos eleitos que votaram o apoio e a isenção de taxas à promotora do evento (a Everything is New) fizeram-no sabendo que iam receber os bilhetes para o próprio festival NOS Alive.
A deputada municipal da Iniciativa Liberal, Mariana Leitão — que teve um confronto com a coligação que apoia o presidente Isaltino Morais na Assembleia Municipal sobre o assunto — e a vereadora da coligação Evoluir Oeiras, Carla Castelo, garantem ao Observador que não foram abordadas sobre a oferta de bilhetes. Nem queriam, segundo explicam. No ano anterior (em 2022), tinham sido sondadas, recusaram e, desde então, têm questionado a ética por detrás desta oferta aos eleitos do município.
O Festival NOS Alive decorre de 6 a 8 de julho no Passeio Marítimo de Algés, que fica no município de Oeiras — que tem neste o seu festival-cartaz. Após a polémica distribuição de bilhetes — que também se repetiu nos casos dos concertos como The Weeknd, Maroon 5, Def Leppard e Harry Styles — o Observador questionou a autarquia, que garante que “distribuiu os bilhetes que lhe foram atribuídos pelos promotores do NOS Alive e do Festival Jardins do Marquês Oeiras Valley através de um sorteio interno criado para o efeito”.
O festival Jardins do Marquês contou com nomes como Michael Bolton, Pink Martini, Joss Stone, Maria Bethânia ou Liniker. Já o NOS Alive terá nomes como Red Hot Chili Pepers, Black Keys, Arctic Monkeys, Lizzo, Lil Nas X, Sam Smith ou Queens of the Stone Age.
É para dar destino aos mais de três mil bilhetes que dão acesso a estes espetáculos que o gabinete de Isaltino Morais explica que foram feitos sorteios. “Todos os funcionários da autarquia, incluindo juntas e Uniões de Freguesia, SIMAS [Serviços Intermunicipalizados de Água e Saneamento] e empresas municipais tiveram oportunidade de participar nesse sorteio, através de uma plataforma informática criada pelos serviços da Câmara, registando-se com o seu número mecanográfico.” A câmara tem cerca de 3 mil funcionários e, uma vez que são oferecidos bilhetes duplos, a oferta nunca chegaria para todos os trabalhadores.
Avançou-se então para o sorteio e, explica a autarquia, “os sorteados tiveram direito a dois bilhetes”. O Executivo de Isaltino Morais garante ainda que deu bilhetes a residentes de Oeiras fora dos quadros da autarquia: “Também alguns munícipes que solicitaram bilhetes à Câmara foram contemplados, numa seleção aleatória.” A câmara confirma ainda que “os bilhetes atribuídos a vereadores e deputados municipais são dois por pessoa”.
Quanto a um eventual conflito de interesses por os deputados municipais receberem bilhetes e depois votarem isenções para esse mesmo evento e por os vereadores votarem um apoio financeiro, a autarquia limita-se a responder: “A prática de distribuição de bilhetes recebidos como contrapartida destes festivais acontece desde a primeira edição e é uma oportunidade que a Câmara dá àqueles que estão o ano inteiro a trabalhar ao serviço do concelho para se poderem divertir”.
“Foram dois bilhetes para a plateia. E em pé”
O assunto dos apoios (250 mil euros para os concertos acima citados e 349 mil para o NOS Alive) e das isenções de taxas tem marcado as últimas três reuniões da Assembleia Municipal de Oeiras. A deputada municipal da IL, Mariana Leitão, questionou o executivo de Isaltino Morais sobre os critérios dos bilhetes dados pela autarquia logo na reunião de 20 de junho e acusou o presidente de “discricionariedade” na forma como distribui os bilhetes para os festivais. Além disso, criticou o facto de serem dados bilhetes aos eleitos que depois votam pela isenção das taxas.
Isso levou mesmo deputados municipais da coligação de Isaltino Morais a sentirem-se indignados com a sugestão da liberal e deputados de outras forças, como Jorge Pracana, do PSD, a lamentar o “populismo que a IL trouxe a esta assembleia” e o facto de a IL “colocar em causa a seriedade dos membros da assembleia”. Noutra ocasião, o mesmo deputado disse que era insultuoso acharem que se vendia por bilhetes, destacando que, ainda por cima, eram “na plateia e em pé“.
O presidente da autarquia, Isaltino Morais, perdeu logo a paciência com Mariana Leitão, que, ironicamente, acusou de ser “pura“. Depois atirou às ambições — muito faladas na IL — de ocupar um lugar no Parlamento: “Vão vê-la em breve deputada na Assembleia da República. Está só aqui a estagiar.” Isaltino acusaria ainda a deputada liberal de ser “mais perigosa” do que o Chega do ponto de vista do populismo. E atirou: “A senhora deputada é o expoente do populismo”.
“Podemos entregar os bilhetes à Mariana Leitão para ela fazer a distribuição”
O despique continuou na reunião seguinte, sete dias depois. Mariana Leitão quis saber a quem foram entregues os 3.600 bilhetes para o NOS Alive a que a autarquia teve direito e propôs que no próximo ano fosse público a quem os bilhetes eram entregues.
Além de Mariana Leitão, também o deputado municipal do Chega, Francisco O’Neill Marques, disse que “os festivais são sempre bem-vindos, desde que justificados”, mas registou que era “excessiva a comparticipação financeira dos 349 mil euros para a organização do festival sem contrapartidas em benefício da população”. O deputado municipal do Chega pediu ainda um estudo sobre o retorno e que todos os bilhetes deviam ser sorteados e divulgados os premiados a bem da “devida transparência e legalidade”. Também David Ferreira, da coligação Evoluir Oeiras, lamentou o facto de a empresa Everything is New colecionar apoios e taxas “por todo o País” e ter encontrado em Algés um local onde faz muito dinheiro.
Na resposta a todos, Isaltino Morais começou por justificar que “os bilhetes são um problema para a câmara municipal porque toda a gente quer bilhetes e então decidimos que os bilhetes eram maioritariamente para funcionários da câmara, que merecem”. O autarca explica que, para evitar problemas, “foi criada uma plataforma para esta missão dos bilhetes”: “Os funcionários inscrevem-se, registam-se lá e já sabem que cada um só pode receber 2 bilhetes. São 3 mil. Isto é como a habitação jovem: sai a quem calhar”. E acrescentou, com ironia: “Mas também os podemos entregar à senhora deputada Mariana para ela fazer a distribuição. A minha adjunta Irina [Lopes] irá agradecer”.
Sobre a justificação dos valores, Isaltino pediu desculpa pelo sotaque, já que é transmontano, mas falou em inglês: “Vou ler um aviso: ‘Call for expression of interest for regional innovation, valleys, valleys, valleys, is now open’. Isto em português quer dizer que: candeia que vai à frente, alumia duas vezes”. Após o momento de ironia (dirigida aos que não compreendem a importância do Alive para Oeiras), Isaltino Morais lembrou que o concelho está “a concorrer com outros municípios”.
O autarca de Oeiras diz ainda que Cascais até já teve o “mérito” de roubar dois eventos a Oeiras: “O Estoril Open e o EDP Jazz Fest.” Mas logo acrescentou: “Mas substituímos o EDP Jazz e hoje [26 de junho] vai lá o Bolt… como é que ele se chama? O Michael Bolton. E no dia 3 ou 4 a Maria Bethânia”.
Os apoios acabaram por ser todos aprovados (pelo executivo camarário) e a isenção de taxas (pela Assembleia Municipal), onde Isaltino Morais tem uma super-maioria. No caso do executivo, a vereadora da oposição Carla Castelo disse ao Observador que “não lhe parece correto distribuírem-se bilhetes a políticos eleitos que votam isenções de taxas e apoios financeiros da Câmara para empresas promotoras dos espetáculos a que os referidos bilhetes dão entrada.” E acrescentou: “Pela minha parte não aceito, e penso que a própria distribuição, pela população ou por instituições do concelho, de bilhetes cedidos a título de contrapartida ao município deve ser sujeita a regras e não ficar entregue à discricionariedade do presidente da Câmara.” Está exatamente na mesma linha do que defende a IL, mas a nível da Assembleia Municipal, onde os liberais (e o Chega) têm representação.