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Seja por questões de saúde, por excesso de peso ou apenas porque se quer caber melhor no fato de banho, as dietas, que por vezes são tão difíceis de começar, são ainda mais difíceis de manter por longos períodos de tempo. Uma dieta periódica, com alguns dias a ingerir menos calorias (restrição calórica) seguidos de uma dieta normal, são a proposta de um grupo de cientistas liderado por Valter Longo, investigador no Instituto de Longevidade da Universidade da Califórnia do Sul (Estados Unidos).
Mais, os autores do estudo publicado na revista científica Cell Metabolism alegam que num estudo piloto em humanos estes ciclos de “dieta que imita o jejum” (FMD, fasting-mimicking diet) “reduziram os fatores de risco ou biomarcadores do envelhecimento, diabetes, doenças cardiovasculares e cancro sem efeitos secundários significativos”. Os especialistas portugueses contactados pelo Observador são mais cautelosos nestas conclusões e chegam mesmo a abordar lacunas neste estudo, ainda que publicado numa conceituada revista da área.
“Há estudos em animais que comprovam que a inibição de calorias tem efeitos benéficos”, diz ao Observador Cláudia Cavadas, líder do grupo de Neuroendocrinologia e Envelhecimento do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. “Os resultados apresentados neste artigo são interessantes, mas não se pode tirar as conclusões que apresentam.” Para a investigadora parece claro que reduzir a quantidade de calorias ingeridas poderá ter efeitos positivos na prevenção das doenças cardiovasculares, mas não está certa de que esta seja a melhor forma de o fazer.
A abordagem da equipa de Valter Longo parece à partida bastante completa, com estudos realizados com leveduras, com ratos e, posteriormente, com um ensaio clínico preliminar com humanos. Mas os efeitos benéficos desta dieta vão sendo cada vez menos significativos à medida que aumentamos a complexidade do organismo, diz ao Observador Nuno Borges, professor na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto. Cláudia Cavadas aconselha a interpretação e avaliação das conclusões com algum cuidado. “A parte gráfica parece muito especulativa, isto considerando que se trata de uma revista de alto impacto.”
A investigadora Ana Domingos – em conjunto com os elementos do grupo de investigação dedicado à obesidade que lidera no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) – ajudou o Observador a dissecar o artigo e trouxe à tona algumas falhas que comprometem as conclusões dos autores do estudo.
Lição nº 1: Quando os cientistas têm conflitos de interesse
Ana Domingos achou “surpreendente” (pela negativa) que uma “revista com imenso prestígio”, e que ela própria usa regularmente no trabalho que desenvolve, tivesse publicado este artigo. A cientista aponta três problemas-chave: a forma como as experiências foram desenhadas, as conclusões que se tiraram de dados que não o demonstravam e os conflitos de interesse dos autores do estudo. Comecemos por aí.
Valter Longo e Todd Morgan, ambos investigadores no Instituto de Longevidade, confirmam no artigo que “têm uma participação societária na L-Nutra”, uma spin-off da Universidade da Califórnia do Sul que desenvolve suplementos alimentares. No artigo científico não é dada a conhecer a composição concreta da dieta – “sopas à base de vegetais, barras energéticas, bebidas energéticas, snacks, chá de camomila e um suplemento vegetal em comprimido” -, inviabilizando a possibilidade de um grupo independente repetir a experiência. O problema é que os suplementos usados nos ensaios clínicos com humanos neste estudo são propriedade da empresa e serão comercializados por esta.
Lição nº 2: Não podemos comparar alhos com bugalhos
Independentemente do tipo de dieta que estava a ser testada, ou mesmo se se tratasse de um medicamento ou de outro tipo de tratamento, as conclusões só poderiam ser elaboradas depois da comparação com um grupo controlo. Um bom grupo de controlo, frisou Ana Domingos. “O grupo de controlo deveria ter uma dieta placebo e o ensaio deveria ser feito ‘às cegas’ [sem saberem que regime alimentar estavam a fazer].” O que não aconteceu. Mas vejamos o que isto significa.
Para o ensaio, os investigadores contaram com 38 pessoas saudáveis: 19 para realizarem a dieta e outras 19 como grupo de controlo. Dois problemas saltam logo à vista: o primeiro é que são poucas pessoas para as conclusões assumidas, o segundo é que o estudo foi feito com pessoas saudáveis e não pode ser extrapolado para pessoas doentes. Mas não são as únicas falhas: as 19 pessoas do grupo de controlo deveriam ter sido sujeitas ao mesmo tipo de condições que as pessoas sujeitas à dieta – comer sopas e snacks e tomar comprimidos como se fossem suplementos, mas que tivessem uma composição normal e não houvesse restrição calórica nesta dieta.
Talvez seja mais fácil explicar esta parte dando o exemplo dos ratos de laboratório cuja experiência, segundo Ana Domingos, também não foi conduzida da melhor forma. O grupo de controlo dos ratos teve sempre alimento disponível (ad libitum) durante o período da experiência, enquanto o outro grupo fazia dieta durante cinco dias (com a quantidade de alimentos e de calorias reduzida) seguidos de 10 dias de alimentos ad libitum. Ora, mesmo sem restrição calórica, ter alimento sempre disponível ou só ter alimento em determinados momentos pode, por si só, condicionar diferenças entre os dois grupos.
Acrescente-se que a manipulação dos animais e dos espaços onde viviam terá sido diferente nos dois grupos – todos os restos de alimentos eram limpos no caso dos ratos sujeitos a dieta. Logo, os resultados obtidos podem não depender exclusivamente da dieta, mas das condições a que os animais estiveram sujeitos, nota Ana Domingos.
Lição nº 3: As conclusões não podem dizer mais do que os resultados
Seja como for, com grupos de controlo que se comportam como “verdadeiros” controlos ou não, os resultados acabam por não dizer aquilo que os investigadores gostariam que dissesse ou pelo menos aquilo que apresentam como conclusão. Ana Domingos apontou algumas situações.
Uma das vantagens referidas pelos autores é o aumento da longevidade. Se pensarmos em termos de esperança média de vida houve um aumento: de 25,5 meses no grupo de controlo para 28,3 meses no grupo sujeito a dieta. Contudo, no que diz respeito à longevidade não se notam diferenças – os animais de ambos os grupos morreram antes dos 35 meses. Os investigadores acrescentam mesmo que os ratos mais velhos podiam estar a ser afetados negativamente pela dieta.
Outra das alegações é que a restrição calórica diminui a incidência de cancros – pelo menos, nesta variante de ratos propensos a tumores nas células sanguíneas. De facto, quando comparados com o grupo de controlo, os ratos sujeitos a dieta morriam menos por causa dos tumores, mas também morriam mais por outras causas (não especificadas) do que o grupo de controlo.
Se passarmos às vantagens em termos cognitivos – e para referir apenas uma -, os autores referem o aumento da formação de novos neurónios. Ana Domingos chamou a atenção para um dos gráficos apresentados no estudo: o número de células (em média) que tinham um dos marcadores de proliferação celular era cerca de 0,5 no grupo controlo e pouco mais de 1,5 no grupo da dieta. “Como é que podem dizer que mais um é uma diferença significativa?” Acrescente-se que só foram analisados quatro animais por grupo.
A investigadora lembra também que o facto de os animais sujeitos à dieta serem mais manipulados, e portanto estarem mais expostos a estímulos, pode ser o suficiente para justificar um aumento da neurogénese (formação de neurónios). Refira-se ainda que, regra geral, os animais com fome (como poderiam estar os ratos em dieta) são obrigados a criar novas estratégias para encontrar alimento e que isso também pode potenciar a neurogénese.
No ensaio clínico com humanos, os resultados e conclusões não parecem ser mais robustos. Os gráficos de percentagem apresentados parecem mostrar grandes diferenças – que na verdade não passam de 2-3% – só porque em vez de terem origem no zero, tem origem em 80 ou 90.
No artigo, os autores referem que “é necessário um ensaio clínico mais abrangente para determinar se o número de populações específicas de células estaminais [precursoras de outras células do organismo] é realmente aumentado pela FMD em humanos”, mas de seguida concluem que a dieta periódica tem “grande potencial para ser eficaz na promoção das melhorias na saúde humana”.
Ana Domingos questiona-se como é que uma experiência que dura três meses – com três ciclos de cinco dias de dieta mais 25 de alimentação dita normal – pode tentar tirar conclusões de efeitos a longo prazo. “Fazer esta dieta durante tão pouco tempo não permite perceber quais as manifestações clínicas [a longo prazo] devido a carências nutricionais”, lembra o nutricionista Nuno Borges.
Além disso, todos os participantes do estudo eram saudáveis, nota Ana Domingos. “São estudos e não podem servir de recomendação”, aconselha Nuno Borges. “Para as populações de doentes é preciso estudar modelos [específicos de cada doença].” O nutricionista teme mesmo “que isto [as dietas] faça florescer a indústria de suplementos alimentares”. Suplementos alimentares como vendem a empresa da qual fazem parte pelo menos dois autores do estudo.
Os suplementos alimentares não são sujeitos ao mesmo escrutínio nem obrigados a realizar os mesmos ensaios clínicos que os medicamentos, nem mesmo quando se destinam a pessoas com doenças metabólicas ou com outros problemas de saúde. Um estudo feito ao longo de 10 anos mostrou que estes suplementos, quando dados a pessoas com doenças metabólicas, “podem causar danos em alguns pacientes quando estes não são cuidadosamente vigiados”, refere o comunicado de imprensa dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH). O estudo liderado por investigadores do Instituto Nacional de Investigação do Genoma Humano dos NIH foi publicado já em agosto na revista Genetics in Medicine.
Mas, então, jejuar faz bem ou mal?
Tradicionalmente ou por motivos religiosos havia períodos de jejum, de purga ou até mesmo alimentos excluídos da alimentação. Mas apesar destes rituais antigos, Ana Domingos lembra que não há prova científica de que passar fome faça bem à saúde. Com justiça a cientista refere que também não existem estudos científicos que demonstrem que faz mal.
A restrição calórica numa pessoa saudável não trará, à partida, problemas, nota Cláudia Cavadas, mas assume que são precisos mais estudos. A cientista considera, no entanto, que a restrição calórica será mais eficaz se praticada diariamente e não de forma intermitente. Em todo o caso, convém que qualquer tipo de dieta seja feito com acompanhamento médico. “Com acompanhamento pode haver melhorias, mas não há curas”, diz Cláudia Cavadas referindo-se, por exemplo, às doenças cardiovasculares.
Estudos anteriores têm tentado demonstrar os efeitos benéficos da restrição calórica na saúde e longevidade e a bibliografia apresentada no estudo de Valter Longo é extensa, mas nem todos os estudos apontam nesse sentido. Em 2012, a equipa de Rafael de Cabo, investigador no Instituto Nacional sobre Envelhecimento (NIA) dos Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos, publicou na Nature um estudo que concluía que “a restrição calórica [menos 10 a 40% de calorias] aplicada em macacos rhesus novos e velhos, no NIA, não melhorou os resultados na sobrevivência”.
Voltamos ao estudo. Segundo o artigo, os ratos sujeitos à dieta perdiam cerca de 15% do peso por cada período em que havia restrição calórica, mas recuperavam esse mesmo peso durante os 10 dias em que podiam ter uma dieta igual à do grupo de controlo. Ou seja, num período de 14 dias, tanto os ratos controlo como os ratos em dieta ingeriam a mesma quantidade de calorias. Já os níveis de glicose, de insulina ou da hormona de crescimento diminuíam e os níveis de outros marcadores aumentavam, durante o período de dieta, mas voltavam ao normal assim que era dada uma alimentação ad libitum aos animais.
Nos humanos, as reduções e aumentos dos respetivos marcadores que pretendem demonstrar melhorias no estado geral de saúde apresentados pelos participantes depois dos primeiros cinco dias de dieta, não retomaram os níveis originais, mesmo depois de terem voltado à dieta normal depois de três ciclos de dieta (cinco dias de restrição calórica, mais 25 dias de alimentação dita normal). Adicionalmente, os indivíduos sujeitos aos ciclos de dieta perderam cerca de 3% do peso o que equivale a cerca de dois quilogramas num indivíduo que tivesse originalmente 70.
A análise da atividade metabólica dos indivíduos, assim como a análise dos efeitos secundários apontados pelos mesmos, mostram que, “regra geral, a FMD é segura e provoca a perda de massa gorda sem perda de massa corporal magra [músculo, ossos e órgãos]”.
“As calorias reduzidas têm de garantir, mesmo assim, os micronutrientes”, refere Nuno Borges, alertando que isso requer uma seleção muito mais criteriosa dos alimentos. “Não pode ser simplesmente as pessoas deixarem de comer.” Aliás, diabéticos, idosos, grávidas, mulheres a amamentar ou crianças não devem, de todo, passar (ou aguentar, sequer) fome, alerta Nuno Borges. “As carências nutricionais fazem mesmo mal.”
No entanto o nutricionista lembra que as pessoas não precisam de “estar sempre a comer”. Nuno Borges desvaloriza a ideia de que se deve comer de três em três horas, dizendo que conhece “dois ou três ensaios clínicos com pessoas obesas onde não foi demonstrada nenhuma vantagem [dessa frequência de refeições]”.
Duas ou três refeições por dia podem muito bem ser suficientes, diz o nutricionista, desde que os indivíduos ingiram as cerca de duas mil calorias recomendadas (este valor varia com a idade, sexo e atividade física diária). “Pior do que fazer poucas refeições é a irregularidade das mesmas.” Devemos comer todos os dias o mesmo número de vezes e sempre às mesmas horas. Nuno Borges acrescenta ainda que “os problemas alimentares estão nos snacks e não nas refeições principais, portanto podem saltar-se esses snacks”.
Texto: Vera Novais
Ilustrações: Andreia Reisinho Costa