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Tudo se desmoronou em apenas 25 dias. Uma vida política cheia — mais de 50 anos na vida pública, sobretudo no Senado, uma vice-presidência de Barack Obama inesperada, uma vitória contra Donald Trump em 2020 não foram suficientes. O desastroso debate televisivo contra Trump de há menos de um mês abriu as comportas de críticas vindas de dentro do próprio partido democrata, assustados com a possibilidade de que a perceção entranhada entre o eleitorado de que Joe Biden está demasiado velho e incapaz se resultassem em derrota certa em novembro.
Biden resistiu. “Oiça, se o Senhor Todo-Poderoso descesse à terra e dissesse ‘Joe, tens de sair da corrida’, eu saía da corrida. Mas o Senhor Todo-Poderoso não está a descer”, disse o Presidente na primeira entrevista que deu depois do debate, à ABC. O homem assentara a sua mitologia política na ideia de ser o “Comeback Joe”, como recorda a The Atlantic na noite deste domingo — tantas vezes lhe foi decretada a morte política e tantas vezes ele a contornou.
A estocada final chegaria na última sexta-feira, quando a equipa de Barack Obama fez saber, num artigo publicado no Washington Post, que o antigo Presidente (e aliado de Biden) considerava que estava na altura de o atual Presidente anunciar a desistência da corrida. Depois de um período de silêncio ao longo do fim-de-semana, o anúncio chegou este domingo, em forma de carta: “Servir-vos como Presidente foi a maior honra da minha vida. E apesar de ser minha intenção tentar ser reeleito, creio que é do melhor interesse do meu partido do país que recue e me foque apenas em cumprir os meus deveres como Presidente até ao final do meu mandato.”
Precedente de Truman e LBJ são diferentes. Partido Democrata está “em águas nunca antes navegadas”
Dentro do partido, as reações dividiam-se. Não porque não tivesse surgido um consenso claro ao longo de 25 dias que a permanência de Biden se estava a tornar insustentável; mas porque esta é uma decisão sem precedentes, com um candidato a recuar a menos de um mês da convenção do Partido Democrata. “Finalmente, f***”, comentava um estratega do partido ao site especializado The Hill na noite deste domingo. Outros, encaravam com tristeza que a saída de Biden tenha acabado por acontecer desta forma: “Isto não foi um suicídio (no debate). Isto foi um homicídio por parte dos seus colegas democratas”, comentava outro operativo do partido. “
A decisão é de facto histórica. Apenas dois presidentes na História dos Estados Unidos decidiram não se recandidatar enquanto incumbentes: Harry S. Truman, em 1952, e Lyndon B. Johnson em 1968. Mas ambos tomaram essa decisão com muito mais antecedência, dando tempo ao partido para escolher um novo candidato com tempo. “Estamos em águas nunca antes navegadas”, notava à NBC Barbara Perry, professora de Estudos Presidenciais da Universidade da Virginia. “Nenhum Presidente desistiu da corrida ou morreu tão perto de uma convenção.”
A convenção de Chicago tem data marcada para 19 a 22 de agosto. Joe Biden tem neste momento quase quatro mil delegados cujo voto era praticamente certo nele, confirmando a sua nomeação no partido como candidato à presidência. Agora, formalmente, tornam-se todos livres de votarem em quem bem entenderem.
Para tentar fazer controlo de danos, o Presidente anunciou pouco depois da carta que apoia a sua vice-presidente Kamala Harris para concorrer ao cargo. Há pontos a favor: os donativos são muito mais fáceis de se transferirem para a candidata (evitando assim uma sangria de financiamento absolutamente necessário para a campanha), os apoios de peso dentro do partido surgiram rapidamente — como os de Bill e Hillary Clinton — e a decisão ajudaria a criar uma imagem de unidade em torno da nova candidata, sarando as feridas intra-partidárias dos últimos dias que ficaram expostas com a pressão pública sobre Biden.
Do apoio das minorias às dificuldades no Rust Belt. As forças e fraquezas de Kamala Harris
Mas nada é assim tão simples. Kamala já anunciou que tenciona candidatar-se e a imprensa norte-americana nota que a sua equipa tem-se desdobrado em contactos para tentar garantir apoios para a convenção de Chicago.
À primeira vista, Harris parte em melhor posição do que Biden, tendo em conta a queda contínua do Presidente nas sondagens ao longo das últimas semanas. A sondagem nacional da CNN aponta uma percentagem de apoio a Trump de 48% e de apenas um ponto percentual a menos para Kamala Harris. A candidata é jovem (59 anos), por comparação com Biden, cuja questão da idade se tornou a cruz que levou à desistência.
Os temas onde a vice-presidente se tem destacado, como na questão do aborto (é uma forte defensora da restauração da legalização da interrupção da gravidez a nível federal, revertida pelo Supremo Tribunal), podem ajudar a motivar a base eleitoral do partido e mobilizá-la para votar. O facto de ser uma mulher de origem negra e asiática é um forte incentivo para mobilizar esses mesmos eleitorados e outras minorias raciais a votarem nos democratas, numa altura em que alguns se distanciavam de Biden a propósito de questões como a guerra em Gaza.
Mas, uma vez mais, nada é assim tão simples. O especialista norte-americano em sondagens, Nate Silver, notava esta noite na sua conta do X que só daqui a cerca de 7 a 10 dias teremos uma perceção mais clara do impacto desta candidatura junto dos eleitores. A que se soma um fator fulcral: na política norte-americana, as intenções de voto a nível nacional não se traduzem automaticamente no resultado eleitoral.
Com um sistema onde cada estado elege eleitores para o Colégio Eleitoral — e este sim vota no Presidente — a decisão na prática depende de alguns estados-chave, habitualmente chamados swing states por não terem uma tendência de votação sólida (como a Califórnia historicamente democrata ou o Kansas, onde vence repetidamente o candidato republicano). E não é certo que Kamala Harris consiga ter melhores resultados que Biden em muitos deles.
Na Casa Branca, há muito que a equipa de Biden admitiu que a estratégia para esta eleição passava por vencer aquilo a que chamaram de “Blue Wall” (“Muralha Azul”) — estados tradicionalmente democratas que, na eleição de 2016, acabaram por cair alguns para Donald Trump, que conquistou parte do eleitorado branco de classe operária do chamado Rust Belt. Pensilvânia, Ohio, Michigan e Wisconsin, por exemplo, seriam essenciais na matemática da equipa de Biden para assegurar a vitória. Não por acaso, Trump escolheu um candidato a vice-presidente, J.D. Vance, que tem tudo para se sair bem nesta região.
E está longe de ser um dado adquirido que Kamala terá um melhor resultado nesta área do que Biden teria. Vista como mais progressista do que o Presidente, associada a pastas difíceis como a da imigração (é apelidada por muitos republicanos como a ‘czar da fronteira’), marcada por algumas gaffes públicas e pouco visível durante este mandato de Biden, Harris pode ter sérias dificuldades em conquistar a “Muralha Azul”. A que se soma uma questão incontornável, como notava ao site Vox Niambi Carter, professora de Políticas Públicas: “Não sei se muitos querem admitir isto, mas há muita gente desconfortável com a ideia de ter uma mulher negra como Presidente.”
Quando Truman e LBJ desistiram, com muito maior antecedência do que Biden, isso não trouxe a vitória aos democratas na eleição seguinte. Adlai Stevenson e Humbert Humphrey perderam para Dwight Eisenhower e Richard Nixon.
O silêncio de Pelosi e de Obama. Uma convenção aberta a outros candidatos ainda não está excluída
É precisamente por isso que nem todos dentro do Partido Democrata estão convencidos que seja uma boa ideia Biden ungir Harris como sucessora. “Não tenho nada contra ela, mas factos são factos. Nada mudou, certo?”, dizia o congressista Vicente Gonzalez à CNN esta semana.
Ao longo da semana, dentro do partido já havia movimentações a tentarem evitar a escolha de Harris caso Biden viesse a demitir-se. O site Semafor, por exemplo, noticiou na semana passada que foi criado um documento que circulou dentro do partido explicando como poderia funcionar um processo longo, deste mês até à convenção, para ter uma corrida aberta a vários candidatos.
O movimento ocorria de forma discreta e algumas das vozes mais claras no apoio a Kamala Harris denunciaram-no em público. “Se acham que esta vai ser uma transição fácil, estou aqui para vos dizer que há uma grande fatia entre os doadores e as elites, muitos tipos naquelas salas, a tentarem que Joe Biden não seja o nomeado e que também não querem a vice-presidente nomeada”, alertou Alexandria Ocaso-Cortez, congressista da ala mais radical do Partido Democrata, esta quinta-feira. Um assessor de Biden disse mesmo a um jornalista da New Republic que esse terá sido um dos elementos que fez com que o Presidente resistisse tanto à ideia de se afastar, por temer que o partido caísse numa campanha caótica em vez de se unir em torno de Harris.
Former senior Biden official makes an interesting point to me, worth thinking about: At this point, suspicion that the remove-Biden camp wants to also pass over Kamala Harris has itself become a big obstacle to getting Biden to step aside: pic.twitter.com/olN8kQXpzH
— Greg Sargent (@GregTSargent) July 19, 2024
Elaine Kamarck, uma das maiores especialistas do país no funcionamento das convenções partidárias, previa já em fevereiro numa entrevista ao jornalista Ezra Klein o que poderia acontecer se Biden desistisse e apoiasse Kamala Harris: “A questão é, depois de o anúncio de Biden, alguém se atiraria para a corrida? Se não, acho que as pessoas se uniriam em torno de Harris e a nomeariam para Presidente. Mas se surgir uma outra figura poderosa a querer concorrer, então pode haver uma batalha aberta pela nomeação.”
Para já, alguns dos que são vistos como potenciais candidatos não declaram ainda o seu apoio a Harris, como é o caso da governadora do Michigan Gretchen Whitmer e do governador de Illinois, J.B. Pritzker, que optaram pela fórmula de elogiar Biden sem falarem da futura nomeação.
Mais: o líder do Partido Democrata no Senado, Chuck Schumer, também não declarou o apoio a Kamala Harris, limitando-se a elogiar Biden. E o mesmo fez Nancy Pelosi, a antiga presidente da Câmara dos Representantes e figura ainda influente nos bastidores do partido — que já tinha feito saber em privado, nota o New York Times, que preferia um processo mais “competitivo” do que uma coroação de Kamala Harris.
Talvez a reação mais relevante de todas, que ilustra como para parte do partido a escolha de Harris não é necessariamente a ideal, veio do mesmo homem cujo conselho a Biden para que desistisse foi aquele que funcionou como machadada final. Na noite deste domingo, o antigo Presidente Barack Obama desdobrou-se em elogios ao “Comeback Joe”, o político subestimado que, desta vez, não conseguiu vencer a sua última batalha política.
Mas também disse em comunicado — sem nunca mencionar o nome da vice-presidente — ter uma “confiança extraordinária” de que o partido consiga “criar um processo do qual emerja um nomeado extraordinário”. Horas depois, uma fonte próxima esclarecia ao New York Times que o antigo Presidente quer apenas manter uma “política de neutralidade” como fez nas primárias de 2020. O que, na prática, pressupõe que outros adversários a Kamala Harris possam ainda surgir pelo caminho.