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Entrevista a Joshua Ruah, médico, escritor e líder da comunidade Judaica Isrealita de Lisboa. A entrevista foi feita em sua casa, em Lisboa. 4 de Março de 2022, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Joshua Ruah: "Questionar a existência de Deus é tão absurdo como aceitar a existência de Deus"

Antigo líder da Comunidade Judaica de Lisboa, Joshua Ruah recorda a vida numa auto-biografia agora publicada. Em entrevista, fala sobre a guerra em África, o judaísmo como "sabedoria" e sobre a morte.

Por estes dias, em que a discreta comunidade judaica portuguesa tem estado sob fogo cerrado devido ao caso Abramovich, a editorial Caminho publicou um livro que vale a pena não deixar cair no esquecimento: chama-se Um Judeu de Lisboa e é a autobiografia do médico e ex-líder da Comunidade Judaica de Lisboa, Joshua Ruah, um homem cuja vida merece ser conhecida e reconhecida.

Filho de uma geração que está a desaparecer, mas à qual devemos riscos, sacrifícios, vidas conturbadas em nome da luta contra a ditadura, a Guerra Colonial, o engajamento político que levava frequentemente à prisão e à tortura, Joshua Ruah é um homem que fez sempre questão de ser mais do que o neto do mítico fotografo Joshua Benoliel, ou do médico Moisés Ruah. É um homem que diz ter querido sempre “ser apenas um gajo qualquer”. Para a maioria dos portugueses será apenas “um gajo qualquer”, mas não para as centenas de doentes que tratou, nos muitos hospitais e consultórios onde trabalhou como cirurgião e urologista. Entre eles, Álvaro Cunhal, Mário Cesariny, Jorge Sampaio e muitos outros ilustres e anónimos.

Para a Comunidade Judaica de Lisboa, ele é aquele que, desde 1978, pôs os judeus portugueses, sefarditas no mapa político e religioso, que deu a conhecer ao mundo a descoberta de Samuel Schwartz, no principio do século XX: o cripto-judaísmo da vila beirã de Belmonte, hoje um lugar de peregrinação de judeus de todos os cantos da diáspora. É aquele que foi amigo de Mário Soares, apesar de achar que ele “não tinha muito sentido de auto-humor”, conheceu Yasser Arafat, esteve com Yitzhak Rabin dois dias antes de ele ser assassinado e apertou a mão ao papa João Paulo II.

Para a população, especialmente Bantu, do Cazombo, em Angola, e para muitos militares da Guerra Colonial, foi o cirurgião que os tratou ou salvou ali, numa espécie de hospital no meio do mato, ao qual as tropas chamavam “o quadrado da morte”.

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A capa de "Um Judeu em Lisboa", auto-biografia de Joshua Ruah (Caminho)

Esta autobiografia surgiu mais por pressão dos filhos e netos do que por grande vontade do próprio se dar a ver como modelo. Joshua Gabriel Benoliel Ruah é um judeu-berbere, cuja familia sefardita, tanto materna como paterna, é oriunda de Marrocos e, hoje, está espalhada por vários países do mundo. A sua mãe já nasceu em Portugal e o pai veio para cá estudar medicina, Moisés Ruah. Em hebraico, Ruah significa “sopro” e Benoliel “filho da luz”. Cresceu na Rua Ivens, no que era na altura “o Bairro Alto da classe média”, com uma irmã mais nova e um primo chamado Vasco, nascido da relação de um dos seus tios com uma jovem de São Tomé e Príncipe. Esse primo a quem ele chama “irmão”, acabou por ser criado pelos pais de Joshua como mais um filho, e a mãe até os vestia de igual. Este primo, ligeiramente mais velho, foi o grande companheiro de aventuras infantis e adolescentes, dos jogos de futebol aos primeiros encantamentos amorosos, tornaram-se cúmplices até hoje, quando já passaram dos 80 anos.

Casou cedo com Mery Drozdzinsky, também judia sefardita de Marrocos, teve cinco filhos, pelo meio fez-se cirurgião e urologista, seguindo os passos paternos, para quem a medicina era “um sacerdócio”.

Quando o Observador o foi visitar na sua casa em Lisboa, estava ao telemóvel a rejeitar elogios que vinham do outro lado da linha: “Está bem obrigado, mas não precisas de exagerar. Sim, está bem mas não é assim tão bom, não estejas com isso…”. Durante as horas em que estivemos no seu escritório/biblioteca, o objeto tocou muitas vezes, mas ele não atendeu. “Ainda me vou arrepender de ter feito este livro”, desabafou. “As pessoas agora querem que eu assine o livro, querem almoçar comigo, eu não tenho vida para isto”.

Na verdade, ao longo desta entrevista, muitas vezes a autobiografia desapareceu porque Joshua Ruah prefere falar de filosofia, da história do judaísmo, dizer piadas, contar histórias que são alegorias da sua forma de estar na vida; a sua tendência para procurar o obstáculo, a luta, para questionar qualquer ideia feita, para procurar aquilo que sacie a sua fome de compreender a Vida nos seus múltiplos recantos escuros, nas suas regiões mais difíceis de pensar. É um apaixonado por filosofia, e o filosofo judeu francês de origem lituana Emmanuel Levinas o seu sábio de eleição. Apesar de todo o seu trabalho em prol da comunidade judaica, diz que “o judaísmo lhe interessa sobretudo como filosofia, como iluminação e conhecimento, mais do que como religião”.

Joshua Ruah na infância na rua Ivens, em Lisboa, com a avó, a mãe, a irmã e um primo

“Um Judeu de Lisboa” é um título que sente que o define? Porque o coloca, simultaneamente, como alguém “de fora” que pertence a um povo segregado e expulso, mas também numa cidade e, já agora, num país, que não sendo o da sua origem, é o do seu nascimento, aquele que sente como pátria e aquele pelo qual lutou.
Os cristãos da Reforma, sobretudo o Kant, afirmam uma coisa com a qual não estou em desacordo: Judaísmo é uma filosofia de vida porque na realidade o que os livros nos ensinam não é só uma questão etérea, de um Deus ou de uma abstração. Não é isso só. A leis judaicas são dirigidas aos homens para a relação com os homens. A humanidade para a Humanidade. E para mim há duas frases daquilo que se chama a Ética Judaica uma que diz: “Todos somos responsáveis uns pelos outros”. E quando se diz “Todos somos responsáveis uns pelos outros” não é pelos judeus, é pela  humanidade. Hoje somos comandados pelo materialismo. Desde os anos 90, depois daquilo que se julgou que poderia ser a globalização da riqueza, passámos a ter sim uma globalização da pobreza. Nessa altura convidaram-me para falar sobre isso num programa de televisão e eu disse: ainda não sei o que é a globalização, mas acho que é uma força económica sem residência que vai tornar, vai reformar o poder político no sentido de fazer dele apenas conselhos de administração do poder económico. Eu, além de judeu, sou médico. Para mim a medicina é uma ciência humana. Hoje querem pôr os hospitais a dar lucro e os médicos a fazer consultas de cinco minutos. A medicina está a tornar-se uma ciência desumana.

É com otimismo ou pessimismo que olha para este mundo de afetos virtuais e pobreza globalizada, onde tocamos mais nos ecrãs do que uns nos outros?
Não posso ser otimista porque daqui a pouco vou deixar de existir. Não importa. Há uns anos, um colega convidou-me para eu escrever uma coisa sobre a perceção da morte aos 60 anos, para ser apresentada em Vila Real num congresso. Enquanto falava sobre este tema, que é sempre um tabu, senti uma coisa muito engraçada sem graça nenhuma: os meus colegas que estavam na assistência estavam a ficar inquietos De tal forma que eu tive que resumir rapidamente o que tinha a dizer porque estava a ser desagradável. E era um congresso de médicos. Não temos consciência da nossa morte e quando alguém nos começa a dizer “vamos todos morrer”, isso torna-se um pouco desagradável. Um dia, a ver as notícias com os meus netos, ouvimos dizer que dentro de 50 anos era certo que íamos conseguir chegar a Marte. Os meus netos ficaram todos entusiasmados. Mas eu lembrei-lhes que dentro de 50 anos eu já não estaria cá para ver esse acontecimento e eles, provavelmente, também não. Pronto. É assim. Não sei que futuro virá aí nesse mundo em que vamos estar todos “na nuvem” e a comercializar com criptomoedas.

Porque é que decidiu tornar-se médico?
No meu tempo, a escolha da minha profissão teve uma forte influência do meu pai porque se eu dissesse que queria ser ator ou pintor ele mandava-me trabalhar.

Mas chegou a ter esse desejo?
Claro que cheguei.

"Nunca me senti privilegiado, nem excluído. Nasci num tempo de pobreza. Convivia com os miúdos pobres do Bairro Alto, eles iam a minha casa eu ia à deles, estávamos sempre em contacto. Nesse tempo os pobres não pediam dinheiro, pediam comida. Era uma coisa que nos ensinava de forma traumática a desigualdade. Porque quando jogávamos à bola éramos todos iguais mas depois não éramos, eles trabalhavam, eu andava na escola."

Podemos falar numa espécie de auto-repressão de uma vontade constante de ser um perturbador da ordem e das coisas aceites como “normais”?
A minha vida é construída por um grande sentido de humor. “Uma boa piada vale uma amizade” dizia um médico com quem aprendi muito. Mas o meu sentido de humor não é cáustico. Ou pelo menos, não pretendo usar o humor como uma arma de agressão, mas dentro de um comportamento judaico. Eu uso o humor como a NATO, como uma arma de defesa. Nomeadamente face à morte, porque a morte tem uma carga de tristeza que foi construída pelas religiões Quando estava na tropa, em Angola, vivi numa área da tribo Bantu e a dada altura morriam pessoas, claro, sobretudo velhotes. Aquilo dava uma festa com batuque, copos, comida durante 8 dias seguidos. Só anos depois, um angolano me explicou que para os Bantus a morte não existe como para nós; é vista como uma ultrapassagem da vida para outra situação, tornam-se espíritos veneráveis, logo não há um conceito de tristeza, mas de festa. Quer dizer, sendo a morte um fenómeno natural igualzinho ao nascimento, porque é que num se bate palmas e noutro se chora? Na verdade, é vir do nada e voltar ao nada.

Há uns anos, o Dr. Manuel Mendes Silva publicou um livro com textos de várias pessoas e pediu-me um sobre como explicar a morte às crianças. Penso que não é preciso dizer à criança que vai para o céu ou é uma estrelinha… não. Nada que possa criar um medo na criança. Pelo contrário, deve mostrar-se a morte de forma positiva: “Olha, tiveste a felicidade de conhecer o teu avô, a felicidade de conhecer o teu pai, de conhecer a tua mãe E tu vais ter a felicidade de conhecer os teus filhos e eles vão ter a felicidade conhecer a ti. A morte faz parte da cadeia de felicidade que é estar vivo”.

Essa ideia da “cadeia e felicidade”, de transmissibilidade de uma geração que dá a mão à seguinte, e a seguinte honra a geração anterior é uma ideia muito forte na cultura judaica…
Tenho uma ideia muito heterodoxa sobre a religião e a questão é esta: uma religião deve ser um exemplo de sofrimento e de tristeza ou uma religião deve ser uma perspetiva de felicidade? Portanto, aprendi no judaísmo que existe uma perspetiva de futuro transmitida por uma utopia messiânica. O que é, na verdade, uma tentativa de aperfeiçoamento da humanidade: não é a chegada de um Deus Salvador ou de um homem providencial, é o contrário; é a ideia de olhar sempre para a frente sem nunca poder esquecer o passado. A nossa localização, pelo menos para um judeu, é no meio do tempo, entre o que existirá e o que já existiu e é nesse tempo entre gerações que devemos viver e agir.

Até porque o passado está sempre a mudar, está sempre a ser interpretado e reinterpretado como os textos sagrados.
O passado é uma descrição momentânea de um interesse presente. A História que persiste é sempre a história dos vencedores, nunca há a história dos vencidos, é sempre deformada pelas necessidades de quem a conta. Tendo em conta que foram os judeus que inventaram a palavra escrita, ou a escrita alfabética que usamos até hoje, essa escrita foi fundamental para fixar a História, o passado como algo que não se pode mudar…

Entrevista a Joshua Ruah, médico, escritor e líder da comunidade Judaica Isrealita de Lisboa. A entrevista foi feita em sua casa, em Lisboa. 4 de Março de 2022, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"No Judaísmo temos a obrigação de ser sempre alunos se quisermos ser sábios. O sábio é aquele que é sempre aluno. Por isso os judeus não têm a figura do mestre, mas sim a do 'sábio-aprendiz'"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

No livro afirma que a liberdade não acaba onde começa a dos outros, ela continua, expande-se com a liberdade dos outros e vice-versa.
O grande problema da humanidade é a aceitação. A aceitação tem que ser mútua. As pessoas não têm que se tolerar, tem que se aceitar. As pessoas não têm que se tolerar, têm que se conhecer. Para ser seu amigo, por exemplo, primeiro tenho que a conhecer. É disso que fala este livro do Emmanuel Levinas, que é um filósofo que eu leio muito. Ele diz “eu só posso estabelecer uma ligação com o outro se o conhecer e quando o conheço tendo a reduzir ao mínimo a minha agressividade”. Mas como eu não o conheço só de olhar para ele, posso criar um sentimento de agressividade. No fundo, é a questão do racismo, da rejeição da diferença: e isso é uma coisa que está em crescendo numa sociedade completamente obcecada com a ideia da identidade.

O Levinas começa por dizer-nos que a Ética é a Filosofia e que o Outro é mais importante do que eu, como é óbvio. Para ele, o Outro é “o absolutamente Outro, o espírito criador que nós não conhecemos”. Por isso só podemos ter uma noção de Deus de uma forma abstrata. Esta noção de Deus é fruto de um sentimento atávico na Humanidade que nos é transmitido desde os primórdios do homem na Terra. Perante a morte, o homem primitivo como o atual, fica com a pergunta: para onde é que este foi? Logo ficamos também com a pergunta inversa: de onde é que este veio? E isto convoca em nós um sentimento de ignorância e incapacidade e de impotência. Atavicamente, a consequência destas questões é: quem é que fez isto assim? Se nós sabemos que as coisas não acontecem por magia, temos que acreditar que “houve alguém que criou”.

Assim se criaram primitivamente as religiões em todas as partes do mundo, em todos os povos do mundo. Onde quer que a humanidade esteja há religião, há um sentimento atávico da “existência de alguém” que criou isto assim.
É esta espiritualidade o fundamento da criação de religiões em todos os lugares onde há vida humana. A religião é uma encenação ativa desta espiritualidade e depois disto vem o pior: as organizações religiosas. Porque estas instituições não visam uma aproximação entre os homens,  mas são uma forma de fazer com que a espiritualidade seja simplesmente esquecida, diminuída em nome de outros interesses de poder financeiros, de poder geopolítico e que criam a violência inter-religiosa. Estou farto de mesas redondas sobre as relações inter-religiosas e não encontro grande eco. Maimonides, filósofo sefardita judeu, da Idade Média, divide a humanidade entre os que acreditam em Deus e os que não acreditam, estes que não acreditam são os que procuram a ciência. Mas ambos estão a tentar entrar em zonas negras do nosso conhecimento e ambos estão a construir a utopia da perfeição.

Casamento, em 1963, com Maria Drozdzinski, na sinagoga de Lisboa.

No final dos anos 60 no serviço militar, antes de ser mobilizado para a Guerra Colonial em Angola.

Mas a racionalidade não rejeita a espiritualidade da religião, da filosofia?
Rejeita. Rejeita mas não vence. Porque na realidade, no judaísmo, a mentalidade científica é a continuação da criação divina. Deus cedeu ao Homem o universo para ele dominar e este domínio não é mais do que a sua tarefa de continuar a criação divina.

Alguma vez questionou a existência de Deus?
Questionar a existência de Deus é tão absurdo como aceitar a existência de Deus. Como já disse, tenho uma conceção abstrata de Deus. Logo não vou questionar esse abstrato que é aquilo que eu não sei. Como é que eu posso questionar aquilo que eu não sei. Deus não é uma questão de conhecimento, mas de sentimento. De fé.

Daí a importância de saber escutar, de que fala muito no seu livro.
Voltamos a Levinas. Eu, como pessoa, como médico, tenho que saber ouvir os outros, conhecê-los, adequar a minha linguagem à pessoa que tenho à frente, não posso ter uma postura inflexível. O meu pai dizia-me sempre “quando falas só dizes o que sabes, quando ouves aprendes”. No Judaísmo temos a obrigação de ser sempre alunos se quisermos ser sábios. O sábio é aquele que é sempre aluno. Por isso os judeus não têm a figura do mestre, mas sim a do “sábio-aprendiz”, aquele que está sempre a aprender porque tem consciência do quanto não sabe.

Como foi ser, simultaneamente, um judeu em Lisboa e um menino privilegiado do Bairro Alto?
O meu pai era um reservado estudioso, a minha mãe estava sempre em festa, andou no conservatório de teatro e de música. Ela era como um gato, cantava, tocava piano e falava francês. Lindíssima. Era uma mulher diferenciada, com um espírito muito avançado para a época e eu, toda a vida, fui educado neste cosmopolitismo dela. Fizemos tudo e mais alguma coisa nas artes eu e o meu primo. E ao fim do dia tínhamos a rua Ivens por nossa conta para jogar futebol, ouvia o sino da igreja dos Mártires… era a minha aldeia. Nunca me senti privilegiado, nem excluído. Nasci num tempo de pobreza. Convivia com os miúdos pobres do Bairro Alto, eles iam a minha casa eu ia à deles, estávamos sempre em contacto. Nesse tempo os pobres não pediam dinheiro, pediam comida. Era uma coisa que nos ensinava de forma traumática a desigualdade. Porque quando jogávamos à bola éramos todos iguais mas depois não éramos, eles trabalhavam, eu andava na escola.

"Fui mandado como médico-militar para o hospital do Cazombo onde não havia nada que pudesse ser chamado de hospital, era pouco mais que um barracão, sem material sem pessoal, nada. Fui a Luanda explicar a situação ao Vasco Gonçalves. Nunca tinha ouvido falar dele e nunca fui do partido Comunista, mas em menos de dois meses tinha construída uma enfermaria, e depois fui montando o hospital com o material mais moderno que havia e vinha da África do Sul."

A ida para a Guerra Colonial foi um momento crucial da sua vida, em que deixa de ser “o filho do doutor Moisés Ruah”, podia ter fugido e ficou. Foi mobilizado em 1970 e esteve ao todo 4 anos na guerra entre Angola e Lisboa. Porque é que foi?
A tal Guerra em que o Estado nos dizia que íamos matar terroristas, mas que afinal eram tão portugueses como nós. Toda essa mentalidade de superioridade de culturas. Isto é uma coisa que nunca me entrou na cabeça. Quando fui mobilizado já com 29 anos, era casado e tinha quatro filhos pequenos, tinha aqui a família toda, até a minha avó ainda era viva. Foi um choque. Chorei um dia inteiro. Mas depois perguntei-me: “Vou dar o salto para França ou para outro lado para fazer o quê? Se vou para a guerra, pelo menos vou tratar pessoas que é o que eu sei fazer”. Ideologicamente não me criou qualquer problema porque ia como médico. Não ia para matar, mas para salvar, portanto decidi: vou. Mas fui logo recebido por um oficial que me fez a vida negra e deteve-me três vezes durante o mês e meio em que estive sob o comando dele. Criei ali um inimigo para sempre. Mas foi na tropa que aprendi a “ser um gajo qualquer”. Ali, em África, no mato, naquilo que chamavam o “quadrado da morte” tive uma das maiores lições de humildade da minha vida.

Mas também aí pôs o seu pragmatismo e frontalidade a render e, com a ajuda do então tenente-coronel Vasco Gonçalves, conseguiu ter no Cazombo um hospital quase moderno.
Fui mandado como médico-militar para o hospital do Cazombo onde não havia nada que pudesse ser chamado de hospital, era pouco mais que um barracão, sem material sem pessoal, nada. Fui a Luanda explicar a situação ao Vasco Gonçalves. Percebemos que todo o material para a construção deste hospital tinha sido desviado, para várias coisas, até para um campo de futebol, embora nos papéis, em Luanda, o hospital estivesse dado como “concluído”. Nunca tinha ouvido falar do Vasco Gonçalves e nunca fui do partido Comunista, mas ele em menos de dois meses tinha construída uma enfermaria, e depois fui montando o hospital com o material mais moderno que havia e vinha da África do Sul.

Fez muitos inimigos?
Não sei se são inimigos. A dada altura temos que saber distinguir entre “inimigo” e “pessoa que nos passou a respeitar” ou “inimigo” e “pessoa que tem medo de nós”. O Poder é sempre só aquilo que aparentamos, não aquilo que nós somos. O Salazar era só a força de uma aparência. No fim morrem todos como os outros. Poder confunde-se com poder material, que é falível e perdível. Já o poder intelectual vai connosco onde formos, enquanto estivermos vivos. O meu pai dizia-me sempre: aprende porque o que tu aprendes ninguém te tira. O importante para o judeu é a cabeça. Pode ser mais burro ou menos burro, porque para os judeus a inteligência não é o fator determinante. O que é mais importante é a memória e a experiência da vida, aliados a uma certa humildade, low profile, o exibicionismo não é bem visto e cria muitas invejas. Por exemplo, nunca fui um aluno brilhante. Havia disciplinas que me davam vómitos. Chumbei duas vezes, só a partir do terceiro ano da faculdade decidi tornar-me um bom aluno. E tornei-me. Quero sempre o que não querem para mim

Entrevista a Joshua Ruah, médico, escritor e líder da comunidade Judaica Isrealita de Lisboa. A entrevista foi feita em sua casa, em Lisboa. 4 de Março de 2022, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista a Joshua Ruah, médico, escritor e líder da comunidade Judaica Isrealita de Lisboa. A entrevista foi feita em sua casa, em Lisboa. 4 de Março de 2022, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista a Joshua Ruah, médico, escritor e líder da comunidade Judaica Isrealita de Lisboa. A entrevista foi feita em sua casa, em Lisboa. 4 de Março de 2022, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"O foco dos judeus, hoje em dia, tem que deixar de ser o Holocausto mas o antissemitismo, o racismo. E isto só se pode combater por uma via: o ensino. O ensino da História, o ensino da cidadania"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

É uma vontade constante de luta?
Sempre. A partir do terceiro ano da faculdade tornei-me um insubmisso face aos professores. E na vida profissional fiz dois internatos: Cirurgia Geral e Urologia. Tive um grande mestre que me dava responsabilidades que me obrigava a estudar brutalmente para não o desapontar, e tínhamos que estar sempre preparados para o inesperado e para tomar uma decisão de vida ou de morte.

Esteve na Guerra, fundou um hospital privado especializado em Urologia, foi médico de homens como Álvaro Cunhal e Mário Cesariny, tal como de centenas de anónimos. É a sua forma pragmática de exercer o judaísmo, estar com os outros?Olhe que eu também sou covarde comigo. Não posso é ser covarde com o outro. Como aquela rapariga, no Cazombo, que operei em Angola, no meio do mato, sem uma sala de operações digna desse nome sequer. Não podia ter medo. Tinha que tentar. Tentei e ela não morreu. Estive quase dois anos em Angola, no mato, morreram-me duas pessoas. Podia falhar, mas tentar salvar é obrigatório. Os médicos que foram meus internos foram todos chefiar serviços. Porquê? Porque eu dizia logo: não comeces com mariquices. Pensa, mas não teoricamente. Pensa e age. É para abrir, abre. É para fazer, faz. É para dizer, diz.

Antes disso, já tinha sido expulso do liceu por mandar um professor “à merda”, envolveu-se nas manifestações estudantis da universidade de Coimbra, na campanha do General Humberto Delgado. Passava mais tempo envolvido na vida política nacional do que na comunidade judaica.
Mas acha que pensamos cá em riscos? Aquilo fazia parte da forma de se ser jovem em Portugal numa ditadura. Estive no liceu Passos Manuel, o “Liceu da Democracia”. Quem passou por lá ficou marcado para a vida. Tinha os aristocratas, os que vinham do outro lado do rio, os de Santa Catarina, dos do Bairro Alto… Tinha de tudo. E a única coisa que interessava era se sabia jogar bem à bola, não se era filho ou primo de alguém, mas se era um “gajo porreiro” ou não era um “gajo porreiro”. E depois tinha logo ali na rua uma casa de meninas, um casa de matraquilhos, um encadernador, uma taberna, e uma tabacaria. A nossa escola era essa, o tinto, o tabaco e o sonho de ir à casa de meninas. Não era cá os meninos os betinhos do Pedro Nunes. No Camões era para os disciplinados. Isto formou a minha personalidade. E depois tínhamos um padre jesuíta que conseguiu acabar com a casa das meninas, correr com a tasca e a tabacaria, para acabar com a nossa devassa. O meu pai conseguiu livrar-me de andar na Mocidade Portuguesa com a desculpa que eu tinha uma hérnia e também fui dispensado das aulas de religião e moral por ser judeu, mas ia assistir na mesma, porque sempre me fez confusão esta coisa das religiões. Essa também é uma regra judaica: respeitar, não perturbar, a religião dos outros, “nunca se perturba aquele que está a rezar ao seu Deus”.

Com o Líder da OLP, Organização para a Libertação da Palestina, Yasser Arafat, em Lisboa no final dos anos 70.

Em 1982, durante a visita do papa João Paulo II a Portugal.

Porque é que se tornou maçon? O Judaísmo não lhe era suficiente?
Porque precisava de interlocutores, de pares. Precisava saber mais e não ser julgado por “só querer saber de intelectualices”. Ali aprendi imenso. No início, quando entrei para o Grande Oriente Lusitano, adorava aquilo, agora não. Agora sinto-me cada vez mais desligado da Maçonaria. Aquilo tornou-se uma coisa que já nem sei o que é… já quase não nos reunimos. E depois aquelas paranoias de secretismo. Então eu agora vou esconder que sou maçon? Era o que faltava.

E não resiste a uma boa polémica. Como a que teve com Eduardo Lourenço sobre a laicidade do estado francês, embora as suas polémicas mais constantes sejam ou com padres católicos…
Isso foi em Tomar, numa coisa organizada pelo José Augusto-França, que eu conhecia desde criança. O filósofo Eduardo Lourenço estava ali a defender a laicidade do estado francês e aquilo para mim não é laicidade nenhuma, é uma ditadura. E confrontei-o com essa visão da laicidade francesa que paga tudo, mas depois proíbe a cruz ao peito, o lenço, o véu, o kipá, o que acaba por conduzir  a uma guetização das religiões e das comunidades, cada uma vai para a sua escola, cada um fica na sua bolha. Laicidade a sério é em Inglaterra. Não pagam nada a ninguém mas também não chateiam. Ele praticamente chamou-me estúpido.

Neste tempo em que tanto se exigem reparações históricas e pedidos de desculpa pela história, não está na hora de os judeus exigirem uma reparação histórica pelos 300 anos de Inquisição?
Agora até já se combate a lei da reparação histórica dos Sefarditas. O problema é este: há uns meses veio aí uma checa, americanizada, que queria fazer uma conferência porque era uma sobrevivente do Holocausto. E fez-se a conferência. E eu lá fui ouvir aquilo, porque tenho uma posição bastante heterodoxa em relação às conferências sobre o Holocausto, os sobreviventes, etc. É que estas questões do Holocausto têm que começar a ser tratadas com mais cuidado. Nós aqui em Portugal tivemos um grande holocausto de 300 anos. E hoje isso tornou-se apenas mais um facto histórico que quase nem merece referência, sem nenhum sentimento coletivo, sem nenhuma comoção. Quantos holocaustos houve na História humana que hoje não passam de mais um fato histórico, a própria Guerra do Ultramar. Daqui a 300 anos, o Holocausto nazi não será mais que outro facto histórico sem qualquer afeto. Mas há uma coisa que vai permanecer: o antissemitismo. Portanto, o foco dos judeus, hoje em dia, tem que deixar de ser o Holocausto mas o antissemitismo, o racismo. E isto só se pode combater por uma via: o ensino. O ensino da História, o ensino da cidadania.

"A questão do conflito entre Israel e a Palestina é uma doença crónica; tem períodos de acalmia, quase normalidade e períodos de exacerbação aguda. Doença para a qual não se conhece ainda o tratamento e a cura."

No Porto construiu-se um museu do Holocausto, quando se devia ter feito um museu da Inquisição, porque foi um Holocausto que durou não 7 mas 300 anos?
Já me fiz várias vezes essa pergunta.

Considera que os portugueses são antissemitas?
Não. Acho que há antissemitas em Portugal. Olhemos para Espanha. Depois de expulsaram os judeus e mouros no século XVI, só revogaram o decreto de expulsão em 1969. Repare que, em Portugal, desde o século XIX que os judeus podem ter sinagoga e cemitério.

E como é que vê a questão da lei que permite aos descendentes dos Sefarditas obterem a nacionalidade portuguesa como reparação histórica? Há muita gente que olha para isto com desconfiança sobretudo agora com o caso Abramovich e a possibilidade de ter havido abusos, qual é a sua opinião?
Eu sobre isso só sei uma coisa: a comunidade de Lisboa é rigorosa, tem muitas pessoas só para trabalhar na questão da lei da nacionalidade, tudo é visto minuciosamente, à lupa.

O que representa o estado de Israel para si?
É uma referência ideológica, cultural e religiosa tal como outro estado do mundo, o Vaticano é para os católicos. É preciso conhecer a História para saber que em 1948 o estado de Israel não foi criado. Foi restaurado. Dois mil anos depois de lhe ter sido retirada a liberdade. A questão do conflito entre Israel e a Palestina é uma doença crónica; tem períodos de acalmia, quase normalidade e períodos de exacerbação aguda. Doença para a qual não se conhece ainda o tratamento e a cura.

Com a mesma frontalidade, afirma que esteve para entregar o seu cartão do PS, em 2020, devido a declarações de uma ministra que raiavam o antissemitismo. O que é que aconteceu?
Foi num grupo de trabalho para rever a Lei da Nacionalidade dos Sefarditas, onde a depurada Constança Urbano de Sousa fez afirmações em que comparava o aumento da comunidade judaica portuguesa com o crescimento da pandemia da Covid -19, em Portugal. Ora argumentar comparando os judeus a um vírus levou-me a questionar seriamente os meus 45 anos de militância no Partido Socialista.

Entre a rua e a Sinagoga prefere a rua…
Para mim ser judeu é estar com os outros, e isso é ser um homem do mundo. E hoje em dia já vou mais vezes à Sinagoga. Mas o judaísmo é mais do que uma religião. É uma cultura. E é uma cultura tão forte que é a única cultura mesopotâmica que ainda persiste seis mil anos depois.

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