Foi perto do final de uma conferência organizada pelo Banco de Portugal, em Lisboa, sobre estabilidade financeira — uma discussão de cariz técnico que qualquer leigo iria considerar tremendamente enfadonha. Porém, a meio da tarde, numa das mesas-redondas, surgiu um britânico que prometeu uma apresentação mais provocadora, animada por generosas doses de humor britânico pelo meio (como quando disse que, para ele, o Brexit poderia ser um regresso à infância, porque quando era criança também não encontrava uvas e abacates nos supermercados).
Esse britânico era David Miles, hoje professor do Imperial College London que foi economista-chefe do gigante Morgan Stanley, em Londres (entre 2004 e 2009) e, depois, passou seis anos, até 2015, como membro do comité que define as taxas de juro do Banco de Inglaterra no auge da crise. Entrevistámo-lo por skype, em antecipação ao fim de uma era que esta quinta-feira se marcou na zona euro: a saída de Mario Draghi da presidência do Banco Central Europeu, após um mandato “intenso” de oito anos.
Na linha do que tinha dito em Lisboa, David Miles explicou porque é que as taxas de juro baixas — que foram um aspeto marcante do “reino” de Draghi (e devem continuar, com Christine Lagarde) — podem ter efeitos perversos e aumentar a desigualdade não só entre gerações mas, também, entre membros da mesma geração, desde logo, entre os jovens.
É fácil perceber porquê: os bancos centrais definem taxas de juro baixas mas, depois, para conter os riscos para os bancos, limitam os máximos de financiamento — ou seja, exigindo que, para comprar uma casa, por exemplo, alguém tenha de pagar uma entrada de várias dezenas de milhares de euros. Ora, para quem é jovem, ainda não teve tempo de poupar, e para quem não tem pais ricos, gera-se um “desnível”, diz David Miles.
E esse tipo de decisões, que produzem efeitos que são mais gravosos para uns do que para outros, devem ficar para os políticos, não para os banqueiros.
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No passado fez alguma pesquisa sobre porque é que no Reino Unido há menos créditos para compra de casa a taxa variável do que taxa fixa, que predomina em vários países europeus. Em Portugal acontece o mesmo: há muito mais créditos à habitação a taxa variável, ainda mais agora com as taxas de juro baixas que é possível obter. Isto comporta riscos?
Há sempre riscos, quando se fala em crédito — designadamente crédito à habitação. Não diria que optar por uma taxa fixa será sempre, necessariamente, o melhor negócio ou que terá o menor risco. São riscos diferentes mas, claro, o risco com as taxas variáveis é que os juros possam subir muito, de forma inesperada, e as pessoas deixem de conseguir pagar a prestação.
E a taxa fixa?
Por definição, a taxa fixa também pode criar problemas: imagine que estamos num mundo totalmente diferente do que temos hoje, em que temos inflação elevada e taxas mais altas, de 10% ou 12%. Fazemos um crédito nessa altura mas, depois a inflação cai e ficamos a pagar uma prestação muito elevada, em termos reais.
Mas é como diz: seria um mundo totalmente diferente do que temos. A realidade é que a taxa de juro a 30 anos é de 0,4%, ao que os bancos acrescem o spread, ou seja, cobrando qualquer coisa como 2% ou 3% no total.
Sim, isso é uma taxa extraordinariamente baixa, é impressionante, não há qualquer dúvida. Ainda assim, embora seja uma taxa baixa, não é uma transação sem risco. Porque ninguém sabe se não vamos ter um período muito prolongado de taxas de juro baixas ou, até mesmo, de deflação. Aí, mesmo esses 2% serão mais caros do que os juros negativos da Euribor.
É muito tentador para as pessoas olharem para a Euribor nestes níveis e aproveitar…
Diria apenas que um mundo em que as pessoas assumem créditos de taxa variável, porque a prestação parece muito baixa, e presumem que aquilo é sustentável e que vão sempre conseguir pagar a prestação — pensar assim pode trazer dificuldades. Por isso é que acho muito sensato que os bancos sejam obrigados, como são em Portugal e em vários outros países, a indicar às pessoas quanto é que a sua prestação subiria caso as taxas de juro aumentem, quando falamos da contratação de um crédito com taxa variável.
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É uma ferramenta para prevenir uma crise?
Os bancos centrais usam ferramentas diferentes. Muitos bancos centrais decidiram que para tentar controlar os riscos no mercado imobiliário — e, por consequência, os riscos para a estabilidade financeira — a melhor forma de fazer isso é lançar uma combinação de restrições de vária ordem. Um exemplo é limitar o valor do financiamento a 90% do preço da casa, ou outra percentagem — obrigando a que se dê uma entrada.
Quais são os limites que o Banco de Portugal impôs?
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Desde 1 de julho de 2018, o Banco de Portugal obriga os bancos a respeitar novos critérios que se aplicam ao crédito à habitação mas, também, a outros tipos de créditos. Foram medidas para “prevenir que o setor financeiro assuma riscos excessivos nos novos créditos celebrados com consumidores, num contexto em que se começa a observar uma menor restritividade nos critérios de concessão de crédito e se antecipa que esta tendência se possa vir a acentuar”.
Em concreto, foram aplicados novos limites: um limite ao DSTI a metade do rendimento regular, um indicador que se refere à capacidade do cliente de suportar as prestações dos créditos (os existentes e o novo, que se pede) mesmo que as taxas de juro subam; no crédito à habitação própria, criou-se um limite ao LTV, em que só é permitido um endividamento até 90% do preço de aquisição da casa, admitindo que esse preço é inferior à avaliação.
E há outras hipóteses, como o cálculo do DSTI (debt service-to-income, ou prestações vs rendimentos), ou seja, quando é que o pagamento das prestações pesa nos rendimentos que a pessoa tem…
Esse limite parece-me sensato nas taxas variáveis, não só para o momento atual mas, também, precavendo que as taxas de juro podem subir. Mas nos outros limites é um pouco diferente. O que dizia é que essas medidas macroprudenciais têm um custo — ou seja, quando se diz ao banco “não emprestem mais de 90% do valor da casa”, “não emprestem mais do que x vezes o rendimento anual”, isso pode ser eficaz para evitar riscos e até para arrefecer o mercado imobiliário, tentando impedir que “aqueça” em demasia. Mas há um problema: o “lado negro” dessas medidas é que afetam de forma especialmente concentrada num grupo específico de pessoas. Não são medidas que afetem a população de uma forma nivelada, ou simétrica.
Quais são as pessoas que saem afetadas de forma desproporcional?
São os jovens, cujos rendimentos tendem a ser comparativamente mais baixos e que ainda não tiveram tempo e oportunidade para acumular poupanças para dar a entrada. Por isso é que esta política — que mantém os juros baixíssimos mas, depois, tentam conter os riscos com outras medidas — não produzem efeitos que recaem de forma igual e neutra sobre todos os segmentos da população.
E é aí que entra um fator que referiu na conferência, que se torna ainda mais decisivo nesse contexto: a riqueza dos pais.
Exatamente. Imagine um cenário em que as pessoas conseguem financiar todo ou quase todo o valor da casa e obter um crédito de 7 ou 8 vezes o seu rendimento anual. O que aconteceria é que muitos jovens que não têm qualquer apoio dos pais, nesse cenário, teriam capacidade para partir para a compra de uma casa. Não é preciso ter poupado enormes quantidades de dinheiro para poder aceder ao mercado habitacional. Mas quando se diz que não se pode obter da banca mais de 80% ou 90% do valor da casa, isso pode significar que, basicamente, qualquer pessoa que não tenha apoio dos pais para tentar comprar a primeira casa terá de esperar muitos e muitos anos até conseguir fazê-lo, pagando rendas e tentando poupar para dar uma entrada, um dia. Em contraste, alguns jovens poderão ter pais que lhes digam: “olha, para dares a entrada ao banco eu vou emprestar-te…”
Ou “vou dar-te”…
Sim, muitas vezes, “dar-te” — 20% ou mais do valor da casa. Aí, nesse caso, a pessoa vai poder ter hipótese de comprar a casa mesmo sem ter poupado nada — ou tendo poupado o mesmo que o outro jovem, que não tem essa ajuda. Vai ficar em vantagem porque não vai ter de pagar rendas até aos 29, 30 ou mais anos para finalmente poder comprar uma casa — por essa altura, o outro já pode ir com o pagamento do empréstimo bem adiantado. Não é um efeito neutro, como as taxas de juro, que afetam famílias, empresas, toda a gente, de forma igual.
A descrição que está a fazer é precisamente aquela que me foi feita ao balcão de um banco, aqui em Portugal, num cliente mistério. Foi-me dito por uma funcionária que “hoje em dia, quem não tem pais que possam ajudar com a entrada não tem hipótese…”.
Não admira. Estas restrições dificultam a capacidade dos jovens para acederem ao mercado habitacional, de casa própria, pelo menos os jovens que não tiveram pais com capacidade para os ajudar. Os que tiverem pais com mais possibilidades, que lhes tenham dado — ou, apenas, emprestado — a entrada, ficam numa posição privilegiada.
Está a dizer, portanto, que seria melhor não ter estes limites, mesmo que as taxas de juro fossem mais elevadas. Por outras palavras, que a situação atual é menos… democrática?
Bem… Não sei se gosto da expressão “democrática”, mas eu diria que existe um impacto assimétrico que tem de ser considerado. A política atual não produz um impacto neutral e transversal em relação a todos os tipos de pessoas. Dizer isto é um pouco óbvio mas é importante dizê-lo e ter consciência disto. E ter consciência de que são consequências de medidas tomadas por um banco central, que deve ser neutro e independente, mas que têm efeitos distributivos que deviam ser mais campo de decisão dos políticos e não dos banqueiros centrais. Isso pode ser tóxico.
“Esta geração de jovens arrisca uma vida a ser sugada, como no filme ‘The Matrix’”
Mas a alternativa, como alguns portugueses bem se recordam, antes da crise, é a banca a dar crédito para não só 100% como 110% ou 120% do valor da casa, atirando lá para o meio financiamento para comprar o recheio da casa ou, como se viu, para um carro ou uma viagem… Onde é que está o equilíbrio?
Claro, tem razão, isso aconteceu em vários países. Quando os bancos tornam o crédito demasiado abundante, ou demasiado acessível, isso também pode criar problemas. Não se pode ser displicente quando avaliamos os riscos relacionados com a capacidade que as pessoas terão, no futuro, de pagar a casa. Nem podemos ser displicentes com o risco de o mercado imobiliário não ter a trajetória positiva que esperamos que tenha.
Como é que se pode, então, mitigar o problema da assimetria dos efeitos que referia há pouco, entre os jovens com ou sem pais ricos? O tal custo desnivelado.
Esse custo, deixe-me só assinalar, pode ser mais ou menos gravoso conforme a eficiência do mercado de arrendamento.
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No outro dia li um artigo cujo título era algo do género “Estamos em 2019, porque é que ainda estou a perder tempo a viajar todos os dias?”. A questão do avanço tecnológico, procura tê-la em conta nas suas análises económicas sobre o futuro dos preços das casas?
Sim, na realidade há muito que se fala nisso. Há 20 anos as pessoas em Londres diziam que iam vender a casa na cidade e viver numa parte linda do país, longe de Londres, muito mais barata, porque a tecnologia iria evoluir e “vou deixar de precisar de ir trabalhar todos os dias. Terei um ecrã gigante no meu escritório, em casa, e não precisarei de ir para a cidade, terei reuniões por teleconferência, etc.”. E isso não aconteceu, de todo.
Mas não irá acontecer?
Não. Não por muito, muito tempo, na minha opinião. Eu já acreditei nessas histórias, mas já não acredito. Porque, sendo certo que as profissões são muito diferentes, em todas há tantas coisas que fazemos em que beneficiamos de estar na mesma sala e ver as pessoas, encontrá-las no corredor, estar lá é muito importante. É muito raro estar numa reunião com algumas pessoas na sala, outras em alta voz. Há sempre algo que se perde.
Sim, na conferência em Lisboa tinha dito que era pior quando se tinha um mercado de arrendamento “screwed up” [traduzível por “disfuncional”]…
Precisamente. Se não tiver um mercado de arrendamento funcional será ainda mais difícil para os tais jovens terem acesso a uma casa, mesmo que por arrendamento. E também aí vai gerar-se maior diferença entre quem tem apoio dos pais e quem não tem. É o pior de todos os mundos.
Mas como é que se avalia se um mercado de arrendamento é funcional ou não é funcional? Como é que se chega a uma e a outra situação?
É muito fácil dizer quando não funciona bem. Uma das coisas que disse na conferência é que podem existir restrições no mercado de arrendamento que são o resultado de medidas que foram introduzidas com a melhor das intenções.
Tais como?
Medidas que tentaram dar mais vantagens aos inquilinos, tentando fazer com que tenham mais direitos, de permanecer nas casas muitos anos, com menores direitos para os senhorios para ajustarem as rendas conforme a inflação. Pode-se ter tomado essas medidas tendo uma ideia de que protegem quem vive em casas arrendadas, mas o que se acaba por fazer — e isso aconteceu em inúmeros países — é tornar tão pouco atrativo um senhorio colocar uma casa no mercado, criando oferta, que o que acaba por acontecer é que se destrói o mercado de arrendamento. Isto está mais do que demonstrado, historicamente, com inúmeros exemplos.
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“No geral, a política que o BCE tem seguido nos últimos anos tem sido a correta, ter taxas de juro baixas”, diz David Miles. Contudo, o economista diz ter “muitas dúvidas de que a última decisão, de levar as taxas para um nível ainda mais negativo, vá ter qualquer efeito positivo”. E porquê? “Não acredito que se possa dizer que é porque a dívida está cara que a procura por crédito, sobretudo empresarial, tem sido baixa em vários países. Portanto, ao tornar as taxas de juro ainda mais negativas, obtém-se muito pouco efeito positivo e pode-se alimentar os riscos negativos”, avisa.
Nos países em que esse problema se criou — e alguns irão argumentar que é o caso de Portugal — o que se deve fazer, agora, para tentar corrigir? Que intervenção deve ter o Estado?
Não conheço em detalhe a situação de Portugal, mas a impressão que fiquei é que as rendas controladas foram aplicadas de forma tão apertada que encolheram a oferta de casas decentes para arrendar. É uma situação muito infeliz. Tiveram sorte aqueles que possam ter conseguido um apartamento há alguns anos, com controlo de rendas, e podem continuar lá — ou seja, há alguns “vencedores”. Mas também há, obviamente, muitos “perdedores”, que são aqueles que estão à procura de uma casa para arrendar e há muito pouco no mercado que não esteja em condições terríveis. E estão nessas condições porque os senhorios não veem viabilidade económica em investir dinheiro nas casas.
Então, o que pode ser feito?
A resposta passa, sempre, por eliminar os congelamentos das rendas. Que importa se as rendas são baixas se ninguém consegue viver nas casas? Quem procura não encontra, e quem está protegido por contratos de rendas controladas muitas vezes o senhorio não pode tirar as pessoas de lá, não pode aumentar a renda e quem lá vive não tem qualquer incentivo para sair. Nova Iorque era assim, por exemplo. Tinha um mercado completamente disfuncional.
Mas se isso acontecer, se os controlos de rendas acabarem completamente, os preços irão subir…
Sim, isso é um problema complicado mas o que existe também não é solução: não concebo que alguém possa discordar quando dizemos que um mercado onde, literalmente, não há nada que possa ser arrendado isso não pode ser bom. O contrário é haver preços mais elevados mas, pelo menos, há coisas que se podem arrendar.
Voltando um pouco atrás, quando falávamos dos jovens poderem comprar casa. Mas a ideia que existe não é que as novas gerações não querem comprar, não querem estar presas a uma casa, só querem arrendar?
Não tenho a certeza sobre isso. Posso dizer-lhe que no Reino Unido houve sondagens feitas junto de jovens que ainda demonstram que existe uma maioria muito expressiva que dizem que gostavam de ser donos da casa onde moram. Ainda se diz aquilo que se dizia há 10 ou 20 anos: que, “num mundo ideal, eu gostaria de ser proprietário”.
Então é um mito, que os millennials não querem comprar casas?
Pode muito bem ser, sim.
Jovens, afinal, também querem comprar casa própria. Mas não está fácil
Mas há um fator de que ainda não falámos, e que também poderá estar a dificultar ainda mais a vida aos jovens que querem comprar casa — e que está relacionada com os juros baixos. A questão é que parte da procura que existe pela compra de casa, que faz subir os preços, é uma procura como investimento — seja por particulares ou por empresas. Tudo por causa dos juros baixos, que tornam o imobiliário um investimento especulativo mais interessante…
É claro que se não se aumentar a oferta e as taxas de juro se mantiverem muito baixas, isso vai fazer subir os preços das casas (e de outros tipos de ativos) de forma acentuada. Mas o fator determinante aqui é sempre a questão da oferta, se existe ou não uma resposta do lado da oferta. Mesmo que seja oferta que se crie mais na periferia das cidades e, aí, os transportes tornam-se uma matéria completamente crucial. E do que vi em Lisboa, a esse respeito, constatei que é muito fácil ir do centro [Museu do Dinheiro] para o aeroporto.
Mas foi a meio da tarde, não foi à hora de ponta, e o aeroporto é muito perto do centro.
Mesmo assim, acredite em mim, se não conhece, quando digo que não é possível fazer uma viagem semelhante nem em Nova Iorque, em Paris, em Londres, Tóquio ou Los Angeles. Portanto, vocês aí têm muita sorte.