Diretrizes pouco claras, demoras na operacionalização do processo e condições de elegibilidade tudo menos realistas. Há empresas que ponderam avançar para o novo regime de lay-off simplificado anunciado pelo Governo para evitar a extinção de postos de trabalho, mas estão a deparar-se com entraves — a nível da legislação já aprovada e dos efeitos práticos da medida.
Ao Observador, Sara do Ó, CEO do Grupo Your, que presta apoio a pequenas e médias empresas na área de contabilidade e consultoria financeira, considera que a legislação “não é clara e não esclarece os pontos essenciais do procedimento para que os empresários possam decidir se adotam ou não esta opção”. “Não temos tempo para interpretações dúbias”, diz. Que problemas estão os empresários a enfrentar?
Prazos pouco realistas e uma lei ainda menos clara (parte 1)
O lay-off (suspensão do contrato ou redução do horário de trabalho em situações excecionais, como é o caso da atual pandemia de Covid-19) simplificado, aprovado pelo Governo na semana passada, aplica-se às empresas em “situação de crise empresarial” que apresentem uma quebra de faturação de, pelo menos, 40% nos dois meses (60 dias) anteriores ao pedido da empresa e para aquelas que tenham tido uma “paragem total da atividade (…), que resulte da intermitência ou interrupção das cadeias de abastecimento globais”. Para Sara do Ó, esta formulação da lei deve ser clarificada. Em primeiro lugar, “a situação de crise tem de ficar bastante bem definida: um restaurante que foi obrigado a fechar tem acesso ao regime ou tem de esperar por uma quebra de faturação de 40%?”
A pergunta tem sido feita por muitos empresários e, precisamente por isso, o Governo já garantiu que vai fazer uma alteração ao decreto-lei já aprovado para assegurar que, além dos critérios de acesso já estabelecidos, vão poder aderir ao lay-off os estabelecimentos, como bares ou restaurantes, que tiveram de encerrar devido ao decreto do estado de emergência. A portaria ainda não foi publicada, mas a alteração soma-se a outras já feitas ao novo regime pelo Governo para responder às dúvidas que têm sido colocadas pelos empresários.
As novas regras para o estado de emergência e os novos poderes dos ministros
Sara do Ó acrescenta outra crítica: muitas empresas só começaram a sentir os impactos do coronavírus após o início do mês de março — e a portaria refere que o regime se aplica a quem registou quebra de 40% de faturação no total dos últimos dois meses. Ou seja, se uma empresa teve um bom desempenho em fevereiro e nos primeiros dias de março, mas agora está com uma faturação a zero, é possível que tenha de esperar um mês para poder aceder. Até lá, há o risco de que a sua capacidade de pagar a totalidade dos salários se esgote. E sem a situação contributiva regularizada, a empresa não pode entrar em lay-off.
O prazo de 60 dias foi também criticado por Nuno Carvalho, sócio-gerente da cadeia de lojas Padaria Portuguesa, que escreveu uma carta ao ministro da economia, Pedro Siza Vieira, a criticar a condição. Para Nuno Carvalho, o lay-off simplificado “é tudo… menos algo simplificado”. “A que propósito é que existe o critério que exige comprovadas quebras superiores a 40% durante 60 dias?! Significa, no caso de A Padaria Portuguesa, que, ao ritmo atual da quebra de vendas, apenas no fim de abril estaríamos aptos a utilizarmos o mecanismo do lay-off. Mas quem paga os salários e as contas dos fornecedores até lá?!“, critica.
O chef Olivier da Costa, que tem os restaurantes fechados desde dia 8 — exceto um, para encomendas via uma plataforma de entrega de comida e para confecionar refeições para uma associação de caridade –, também critica os prazos. “As pessoas estão preocupadas agora. Se só podem aderir daqui a dois meses, já muitos não aguentaram”, afirma ao Observador, embora admita que, no seu caso, conseguiria garantir salários durante cerca de quatro meses. Em março, estima perdas de 150 mil euros, entre salários e pagamentos a fornecedores. Com o regime de lay-off, as perdas seriam, estima, entre 40 a 45 mil euros por mês.
É claro que documentos entregar, mas e quando recebe a empresa o reembolso da Segurança Social?
Para Sara do Ó “é claro que documentos são precisos entregar para ter acesso ao lay-off (uma “declaração do empregador conjuntamente com certidão do contabilista certificado da empresa”), mas os formulários “ainda não estão disponíveis“. Ou seja, as empresas que submetam o pedido de lay-off não têm garantias, por via da lei, sobre quando vão poder receber a comparticipação da Segurança Social.
No regime de lay-off, os trabalhadores têm direito a receber dois terços do salário bruto até um limite de 1.905 euros. Do valor a receber, o empregador tem de adiantar a totalidade e esperar depois que a Segurança Social reembolse 70% (ficando à sua responsabilidade os restantes 30%). Antes da pandemia, esta espera pela comparticipação podia chegar a quatro meses. O Observador já tinha questionado o Governo sobre os prazos no regime simplificado, mas a resposta chegou na segunda-feira, após a reunião da concertação social.
Segundo o secretário de Estado da Segurança Social, Gabriel Bastos, o Governo encontra-se a “ultimar a construção do formulário para requerimento das entidades empregadoras na plataforma online da Segurança Social Direta, para que possamos ter, tanto quanto possível, todo o procedimento automatizado a fim de podermos tratar com maior celeridade o conjunto de requerimentos apresentados”. “O que desejamos, e é para isso que estamos a trabalhar, é que os pagamentos possam começar já a ser feitos e a decorrer durante o mês de abril“, disse Gabriel Bastos.
O Executivo “espera” e está “a trabalhar para isso”, o que não dá muitas certezas aos empregadores. “É ver para crer“, atira Hugo Madeira, médico dentista que emprega no seu consultório 80 trabalhadores, e que espera por diretrizes sobre a operacionalização do lay-off para poder aderir.
“As empresas já avisaram os trabalhadores que vão fazer o lay-off, mas depois não conseguem dar todo o seguimento”, critica Sara do Ó. E se há empresas que conseguem assegurar os salários por mais alguns meses, outras, terão dificuldade — e são essas que já pensam em despedimentos.
Causa uma angústia nos empresários. Não há data regulamentada nesta portaria para o reembolso efetivo. O que é que o Governo está a dizer às empresas? ‘Não há problema, temos aqui as linhas de crédito, vão-se financiar, contrair dívida’. Temos alguma dificuldade em assumir que o lay-off simplificado é, de facto, a melhor solução.”
E aqui voltamos à carta aberta de Nuno Carvalho, da Padaria Portuguesa. Para o empresário, “não tem sentido ser a empresa a avançar com os 70% do Estado quando está com um gigante problema de tesouraria“.
A maioria das empresas já não terão negócios nem colaboradores quando o acerto com a Segurança Social eventualmente tiver lugar. É um engodo. Por outro lado, o processo de candidatura tem que ser claro e não gerar dúvidas. Estamos a trabalhar com três sociedades de advogados e todos têm uma visão diferente sobre as regras do lay off simplificado.”
Ao Observador, o médico dentista Hugo Madeira nota também falta de diretrizes claras. “Falam nas medidas, mas não há coisas muito práticas. Queremos ir já para lay-off, mas não podemos porque estamos à espera de nos poder candidatar”.
O consultório de Hugo Madeira está fechado desde que, a 14 de março, a Ordem dos Médicos Dentistas aconselhou o encerramento dos estabelecimentos de medicina dentária. Sem o lay-off, o médico estima que o consultório tenha capacidade para pagar os salários na totalidade, “no máximo, até dois meses“. Com o novo regime, a situação seria facilitada. “Facilita, mas uma coisa é o pagamento de salários… temos ainda fornecedores, rendas para pagar. É um princípio, mas não sabemos quando vamos receber o dinheiro.”
O chef Olivier da Costa também aponta a falta de resposta por parte da Segurança Social. “Não venham dizer que há [lay-off] e depois não há. Nem os advogados sabem como se faz o lay-off junto da Segurança Social”, critica. Este mês de março, o chef vai pagar na totalidade aos empregados, adianta, acrescentando, porém, que serão descontados como férias os dias em que não trabalharam este mês. “A seguir vamos tentar entrar no lay-off.”
“Excecionalmente prorrogável”? “Não temos tempo para estas palavras”
Na portaria que regulamenta o lay-off, lê-se que “o presente apoio pode ser, excecionalmente, prorrogável mensalmente, até ao máximo de 6 meses“.
“O que é excecionalmente aqui? Nós não temos tempo para estas palavras na portaria. Eu não posso assumir que tenho excecionalmente um mês com comparticipação de 70% dos ordenados e no outro não. Imaginemos que temos este trabalho e este desgaste para aderir ao lay-off, avisamos os trabalhadores e depois é ‘excecionalmente prorrogável’?”, aponta a consultora, que pede, também aqui, uma clarificação na lei para perceber o que configura um caso “excecional”.
Para aceder ao lay-off o empregador deve ainda, “comprovadamente, ter as situações contributiva e tributária regularizadas perante a Segurança Social e a Autoridade Tributária e Aduaneira”, lê-se na portaria publicada em Diário da República. “Para mim esta frase é assustadora. Pelo menos que diga: ‘regularizada até fevereiro’, porque obviamente as empresas não vão conseguir agora pagar impostos, pode haver um incumprimento até à adesão ao lay-off”, aponta Sara do Ó. O Governo já garantiu que, durante o novo regime, os empregadores ficarão isentos da taxa social única — mas nada referiu sobre alterar a exigência de “situações contributiva e tributária regularizadas” da empresa até à entrada no novo lay-off.
A consultora apela ainda a que o Governo pondere uma isenção, e não apenas um adiamento, de impostos (nomeadamente do pagamento por conta) durante a crise. “Vamos chegar a julho e a única coisa que aconteceu aos empresários foi empurrarem as dívidas para a frente.”
Estamos aqui sempre num ciclo, não preencho este requisito, não preencho aquele. Quanto a todas as empresas que nos têm consultados, de facto, sentimos que começamos a trabalhar de um lado, mas há um problema no outro. E acabamos sempre na mesma conclusão que é: ‘não vamos chegar a tempo’. É muito incerto, as medidas não são rápidas nem flexíveis e, no caso das linhas de crédito, obrigam os empresários a contraírem dívida.”
Os avanços e recuos para clarificar a lei
A 9 de março, numa reunião da concertação social sobre a Covid-19, o Governo anunciou a medida: um lay-off simplificado, e rápido, para as empresas mais afetadas na sua atividade pelo novo coronavírus.
“Vamos desencadear a alteração legislativa necessária para que nesta situação excecional e extraordinária possa haver um regime mais simplificado de lay-off de maneira que não tenhamos aqui um processo de análise que demore muito tempo, e que seja rapidamente implementado”, disse, na altura, Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho. Isto ainda antes do fecho das escolas – a primeira grande medida preventiva para conter a propagação do vírus, a 12 de março.
A portaria que regulamenta o lay-off viria a ser publicada em Diário da República a 15 de março. Três dias depois, a 18 de março, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, decretou o estado de emergência (após aprovação expresso no parlamento). Nesse mesmo dia a portaria do lay-off sofreu uma alteração. Prepara-se agora para uma segunda, para que seja mais claro quem pode aderir e em que condições.
A primeira portaria estabelecia a imposição de os trabalhadores terem de gozar a totalidade das férias antes de serem mandados para casa. Esta obrigação caiu numa segunda portaria. Foi ainda alterado o critério que definia uma situação de crise empresarial: em vez de uma quebra de faturação de, pelos menos 40%, nos três meses antes do pedido da empresa, passou a ler-se 60 dias (dois meses).
Governo elimina gozo de férias obrigatório para empresas que usem o lay-off por mais de um mês
Além disso, caiu a alínea que previa que o empregador pudesse atribuir ao trabalhadores, temporariamente, funções que não estavam estabelecidas no contrato de trabalho, “desde que tal não implique modificação substancial da posição do trabalhador, e que sejam orientadas para a viabilidade da empresa”.
A portaria inicial referia ainda que este lay-off simplificado não implicaria a suspensão dos contratos de trabalho, mas apenas a redução dos horários. Só que o ministro Pedro Siza Vieira garantiu, após a concertação social de segunda-feira, que o novo regime é uma adaptação do que vigora no Código do Trabalho — e, portanto, prevê tanto a suspensão como a redução. Siza Vieira acrescentou ainda que o Governo vai aprovar uma nova alteração: será acrescentando um critério, aos dois já existentes, para adesão ao lay-off simplificado. Este passa a ser acessível às empresas, como bares e restaurantes, que foram obrigadas a fechar devido ao decreto do estado de emergência.
Em entrevista à TVI, o primeiro-ministro, António Costa, referiu que o novo regime vai custar até mil milhões de euros por mês aos cofres do Estado.