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Lei da imigração provoca crise interna no macronismo. Mas Presidente limita-se a sorrir e acenar

Rebelião na bancada e a demissão de um ministro ilustram o mal-estar dos macronistas com a nova lei de imigração — que Le Pen diz ser "uma vitória". Mas o Presidente avança como se nada se passasse.

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Quando Emmanuel Macron começou a entrevista desta quarta-feira à noite, no programa “C à Vous” da France 5, era um Presidente debaixo de fogo (muito dele amigo). Na véspera, tinha conseguido ver a lei de imigração que promoveu aprovada, mas à custa da oposição, onde se incluiu a aprovação inesperada da extrema-direita de Marine Le Pen. Muitos dos seus deputados abstiveram-se ou votaram contra. Nessa mesma noite, recebeu a demissão do seu ministro da Saúde, Aurélien Rousseau, e temia-se que outros se pudessem seguir.

No final das mais de duas horas de programa, porém, foi um homem relaxado que se despediu do painel de seis entrevistadores, que recebeu no Palácio do Eliseu.

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Emmanuel Macron deu uma longa entrevista na sequência da lei da imigração

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Por um lado, o próprio formato do programa foi-lhe favorável: é acima de tudo uma conversa descontraída, o tema da imigração só ocupou a primeira meia-hora e a entrevista terminou com uma rábula humorística em que foi comparado a James Bond, por piscar habitualmente o olho quando bebe um copo de champanhe.

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Por outro, Macron conseguiu impor a sua estratégia ao longo da conversa: caracterizar os problemas atuais como um simples acidente de percurso, daqueles que acontecem a todos os homens de ação que desejam fazer coisas, facilmente ultrapassável.

Isto apesar de ter passado o dia a enfrentar críticas de apoiantes históricos como François Bayrou e do ex-Presidente François Hollande, de a imprensa especular sobre quem seria o próximo ministro a demitir-se e de a sua própria primeira-ministra, Élisabeth Borne, ter admitido que a lei acabada de aprovar é provavelmente inconstitucional. Para Macron, nada disso foi um problema de maior — e qualquer mudança de fundo foi atirada para o próximo ano, quando fizer uma comunicação ao país em janeiro.

Uma lei polémica: “outsourcing” da União Nacional ou combate à extrema-direita?

Na véspera, porém, a Assembleia Nacional tinha estado em ebulição. A proposta de lei da imigração que saiu da comissão paritária mista (que incluiu sete senadores e sete deputados, liderada pela primeira-ministra) está fortemente inquinada à direita, com o próprio líder dos Republicanos (centro-direita) no Senado a admitir que é muito semelhante àquela que o seu partido já aprovara na câmara alta.

As medidas polémicas são várias. Macron justifica a necessidade desta lei com o combate à imigração ilegal: é “um escudo que faltava a França”, uma forma de “lutar contra os fluxos de pessoas que chegam de forma irregular”, disse na entrevista desta quarta-feira.

Marine Le Pen apareceu na Salle des Quatre Collones, o local da Assembleia onde os deputados costumam falar com os jornalistas, e dirigiu-se às câmaras. “Podemos regozijar com uma vitória ideológica para a União Nacional, já que agora a ‘prioridade nacional’ está consagrada na lei”, declarou. “Vamos votar a favor deste texto exatamente como ele sair da comissão mista.”

Mas algumas das alíneas do texto visam diretamente imigrantes em situação regular. É o caso das limitações aos apoios sociais, que agora só são concedidos a imigrantes ao fim de 30 meses em França (se estiverem empregados) ou cinco anos (para os desempregados). É também o caso da alteração do princípio de jus soli, que até aqui permitia a todos os filhos de estrangeiros obterem nacionalidade francesa se tivessem nascido no território — mas que agora pode ficar vedado aos que tiverem tido cadastro enquanto menores.

São propostas que muitos em França dizem serem semelhantes à ideia da “prioridade nacional” defendida pela União Nacional (UN) de Marine Le Pen (direitos diferentes para franceses e estrangeiros, mesmo que legais). Ideia que a própria reivindicou na terça-feira. Se até aí tinha sido crítica do governo de Borne no que toca à imigração, no dia da votação Le Pen surpreendeu todos. Apareceu na Salle des Quatre Collones, o local da Assembleia onde os deputados costumam falar com os jornalistas, e dirigiu-se às câmaras. “Podemos regozijar com uma vitória ideológica para a União Nacional, já que agora a ‘prioridade nacional’ está consagrada na lei”, declarou. “Vamos votar a favor deste texto exatamente como ele sair da comissão mista.”

A jogada apanhou todos completamente desprevenidos, até dentro da própria União Nacional — o porta-voz, Laurent Jacobelli, foi informado por um jornalista, nota o Le Monde. Mas foi um sucesso. Até aí, Macron tinha tentado definir a proposta como moderada — muito embora nos bastidores os lepenistas já se gabassem de que os Republicanos tinham imposto uma agenda exatamente igual à sua (“Fizemos outsourcing do trabalho”, comentava com o Figaro uma fonte próxima de Le Pen).

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A líder da UN, Marine Le Pen, apoiou integralmente a lei da imigração

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Agora, com Le Pen a abençoar o texto na íntegra, o Presidente perdia a face e tinha dificuldades em manter o discurso que adotara na campanha, quando prometera ser a “barragem” à extrema-direita. “A barragem rebentou duas vezes: quando os Republicanos adotaram a ‘prioridade nacional’ e depois quando o macronismo também a adotou”, declarou o deputado da UN Jean-Philippe Tanguy.

Perante este cenário, Macron não recuou. Na entrevista ao  “C à Vous”, quando muitos esperavam desculpas ou remodelações, defendeu a proposta. E justificou-a não como uma cedência à extrema-direita, mas antes como uma forma de a combater. “Se fecharmos os olhos [à imigração], fazemos o jogo da UN”, disse.

A estratégia foi a de cavalgar o tema da imigração, tentando roubá-lo a Le Pen. “Os nossos compatriotas esperavam por esta lei e se queremos evitar que a União Nacional chegue ao poder, temos de lidar com os problemas que a alimentam”, declarou Macron. “Quando se vive num bairro de classe trabalhadora e se tem problemas de segurança, quando se enfrentam as consequências da imigração ilegal, é-se a favor desta lei”.

Governo e presidência enviam a própria lei para o Constitucional

Mas o conteúdo da proposta de lei é tão complexo que o próprio Presidente reconheceu que irá enviá-la para o Conselho Constitucional (com funções semelhantes à do Tribunal Constitucional português). “Há coisas que não me entusiasmam”, reconheceu, exemplificando com a exigência de um “depósito” aos estudantes estrangeiros. “Mas precisamos [deste texto] e as provisões com que não concordamos não justificam bloquear toda a proposta”, defendeu.

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A primeira-ministra, Élisabeth Borne, e o Presidente envolveram-se pessoalmente nas negociações para aprovar a lei

POOL/AFP via Getty Images

A sua própria primeira-ministra, Élisabeth Borne, já tinha dado o flanco de manhã, admitindo numa entrevista à rádio France Inter que algumas medidas podem ser inconstitucionais. “Expressámos as nossas dúvidas aos Republicanos”, justificou-se. Em concreto, apontou como exemplo o facto de que, sob a nova lei, um cidadão estrangeiro que se case com um francês pode ser impedido de morar em França por não falar bem a língua.

Isto apesar de todo o processo ser sido conduzido por si, enquanto primeira-ministra, e com estreita colaboração com o Eliseu — o Le Monde nota, por exemplo, que Macron telefonava frequentemente a Borne para pedir atualizações sobre as negociações. As reuniões com os Republicanos chegaram mesmo a decorrer não na Assembleia Nacional, mas na própria residência da primeira-ministra, em Matignon.

Razões pelas quais muitos especialistas notam uma incongruência na decisão do governo e da presidência de enviar o texto para o Conselho Constitucional. Um dos antigos presidentes do órgão, Jean-Éric Schoettl, notou que, nas três vezes em que presidentes enviaram leis para o Conselho no passado, estavam a “cumprir a função de árbitro que lhes é conferida pela Constituição”; desta vez, diz, “este é um jogador que está pessoalmente investido no resultado final do jogo”.

Macronistas divididos, à espera que Presidente “vire a mesa” em janeiro

A situação é ainda mais delicada se tivermos em conta que muitas das críticas à lei vêm de dentro da própria maioria que sustenta o atual governo. A proposta de lei foi aprovada com 349 votos (que incluem os deputados da UN e dos Republicanos), mas nem todos os macronistas estiveram a favor: entre os 170 deputados dos três partidos que apoiam a atual maioria (o Renascença — partido do próprio Macron — o Modem e o Horizontes), 39 abstiveram-se ou votaram contra.

E a rebelião não foi apenas entre os deputados. Logo na terça-feira, antes de a lei ser votada, o Figaro indicava que quatro ministros da ala mais à esquerda estavam a considerar demitir-se: Aurélien Rousseau (Sáude), Patrice Vergriete (Habitação), Clément Beaune (Transportes) e Sylvia Retailleau (Ensino Superior). Nessa noite, jantaram juntos no Ministério dos Transportes — uma reunião que o Les Echos definiu como “terapia de grupo”. No final do encontro, Rousseau anunciou ter pedido a demissão, no que parecia ser o tiro de partida de uma debandada geral da ala esquerda.

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Vários consideraram, mas Aurelian Rosseau foi o único ministro a apresentar a demissão

SOPA Images/LightRocket via Gett

Ao longo do dia, porém, não se materializou nenhuma outra demissão. Enquanto Macron dava a entrevista ao France 5 na noite de quarta-feira, os seus ministros reuniam-se no jantar de Natal do governo promovido por Élisabeth Borne em clima de conspiração. “O que vai o Presidente oferecer à sua primeira-ministra de presente?” era a pergunta que pairava no ar, relata o Figaro. “Talvez um guia de campanha para as próximas eleições legislativas”, alvitrava um conselheiro político, segundo o jornal.

Na verdade, a entrevista de Macron nada esclareceu sobre o futuro da maioria. O Presidente apenas garantiu que ainda tem “três anos e meio” pela frente, com ou sem Borne. Dentro do executivo, aguarda-se agora pela “comunicação ao país” que Macron já havia prometido para janeiro de 2024 e sobre a qual o Presidente evitou elaborar na noite desta quarta-feira: “Quando marco uma reunião para janeiro, não vou honrá-la antes em dezembro”, limitou-se a dizer, antes de prometer que quer apresentar “um novo rumo” ao país.

“Esta entrevista é talvez o último passo antes de uma muito temida crise de regime. Não imagino que o Presidente possa fazer outra coisa senão virar a mesa. Mas essa é a sua natureza”.
Gilles Le Gendre, deputado do Renascença

Os comentadores políticos não estão convencidos. “Este novo mandato não tem coluna vertebral, coerência, um horizonte”, lamentava-se o editorial do Figaro publicado após a entrevista, intitulado “O rei vai nu”. O Libération classificava o exercício da entrevista como “método bóia”. E no Les Échos escrevia-se que Macron tem de apresentar “algo mais do que um espetáculo, do que festas de Natal”.

Dentro das fileiras do macronismo, porém, a esperança de muitos é que janeiro traga essa mudança, em que a primeira-ministra Borne pode vir a ser a sacrificada. “Esta entrevista é talvez o último passo antes de uma muito temida crise de regime”, avisou Gilles Le Gendre, deputado do Renascença e antigo líder parlamentar do partido de Macron. “Não imagino que o Presidente possa fazer outra coisa senão virar a mesa. Mas essa é a sua natureza”.

*Artigo corrigido às 12h50: A reunião entre ministros teve lugar no Ministério dos Transportes e não do Trabalho

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