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O advogado Manuel Magalhães e Silva garante, em declarações ao Observador, que a perda alargada de bens sem condenação transitada em julgado já existe no nosso ordenamento jurídico e já foi considerada como estando de acordo com a Constituição pelo Tribunal Constitucional.
Mais: foi o governo de António Costa que introduziu em 2017 essa matéria na lei portuguesa, transpondo uma diretiva da União Europeia relacionada com o congelamento e perda de bens adquiridos com fundos com proveniência ilícita.
São declarações que vão contra algumas críticas de juristas ouvidas no espaço público sobre a alegada inconstitucionalidade e novidade da medida de perda alargada de bens sem condenação (em casos muito concretos) que o Governo de Luís Montenegro quer implementar, na sequência, aliás, do processo de transposição de uma nova diretiva europeia sobre a perda de bens.
“Mecanismos de perda de bens sem condenação já existem na lei. E são constitucionais”
Em vez de apostar numa nova tentativa de criminalizar o enriquecimento ilícito — que em parte foi preenchido pelo crime de ocultação intencional de património que foi criado em 2019 e reforçado em 2021 —, a ministra Rita Júdice prefere aprofundar os mecanismos de perda alargada de bens que existe na nossa lei desde 2002 e, curiosamente, por proposta do então ministro António Costa.
E aqui entra a parte que já está dar polémica, visto que as novas regras passam por permitir a perda alargada de bens sem condenação transitada em julgado em determinadas situações, como de prescrição do processo, de morte dos arguidos ou até de doença prolongada.
A inspiração é claramente assumida pelo Governo como sendo a Diretiva 2024/1260 do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de abril de 2024 — tendo sido publicada no Jornal Oficial da União Europeia de 2 de maio de 2024. Ou seja, é uma diretiva com cerca de um mês e meio.
Vários juristas colocaram em cima da mesa o conflito entre essa nova regra europeia e o princípio estruturante da presunção de inocência — que impede, por exemplo, a execução de qualquer pena sem trânsito em julgado. Contudo, e de acordo, com o advogado Manuel Magalhães e Silva, “a perda alargada de bens sem condenação já existe na nossa lei” para algumas situações e para alguns crimes.
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“Desde 2017, por proposta do Governo de então, que existem mecanismos de perda alargada que permitem a declaração judicial de bens a favor de Estado mesmo em casos em que não houve condenação. Isso pode acontecer em casos de arquivamento, de dispensa de pena e de suspensão provisória do processo. E para crimes de catálogo devidamente estipulados na lei de 2017”, afirma Magalhães e Silva por escrito ao Observador.
Ou seja, o advogado que assessorou o Presidente Jorge Sampaio e que foi indicado pelo PS em 2016 para o Conselho Superior do Ministério Público faz questão de recordar que foi o Governo de António Costa que fez essa alteração legislativa, aplicando na altura outra diretiva europeia igualmente relativa à perda de bens: a Diretiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014.
Por exemplo, continua Manuel Magalhães e Silva, “os casos relativos ao óbito de um determinado arguido alvo de apreensão preventiva de bens, de saldos bancários ou de numerário” já “permitem a perda de bens a favor do Estado.”
Sobre a alegada inconstitucionalidade da proposta do Governo PSD/CDS, Magalhães e Silva diz que o “Tribunal Constitucional já analisou vários casos relacionados com a perda alargada de bens sem condenação transitada em julgado e considerou que essa legislação está de acordo com a nossa Constituição”, enfatiza.
Sem conhecer a proposta concreta da ministra Rita Júdice, que ainda vai ser construída do ponto de vista técnico-jurídico, Magalhães e Silva adianta que “o que o Governo quer fazer, por inspiração da diretiva europeia publicada em abril de 2024, é alargar essa perda de bens a outros crimes.”
Ou seja, “a perda de bens sem condenação nas circunstâncias que já existe para determinados crimes de catálogo, nos quais está a corrupção passiva, entre outros” poderá ser estendida a “outros crimes. Por exemplo, O Governo deve querer alargar — especulo eu — para os crime de corrupção ativa, participação económica em negócio e outros ilícitos criminais de funcionário”, conclui o conhecido advogado.
Lei de recuperação de ativos permite venda antecipada de bens apreendidos preventivamente
Acresce igualmente que as normas relativas à recuperação de ativos já permitem a venda antecipada de bens arrestados preventivamente que sejam considerados perecíveis ou que corram sério risco de desvalorização. Tal situação pode ocorrer antes de uma condenação transitada em julgado e é relativamente comum com determinados bens, como, por exemplo, viaturas automóveis, obras de arte ou até bens alimentares. Contudo, e do ponto de vista técnico, isso não é uma perda alargada mas sim uma venda antecipada. Ou seja, nestes casos os arguidos podem ter direito a uma indemnização em caso de absolvição em sede judicial.
É muito comum a distribuição pelo Estado de tais viaturas automóveis apreendidas preventivamente (e antes de qualquer condenação). Vários gabinetes governamentais costumam ficar com viaturas nessas condições, como já aconteceu com o então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho e o ex-ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita, o mesmo acontecendo com a Polícia Judiciária ou outros departamentos públicos.
Tal como é comum a venda antecipada em leilões, como aconteceu recentemente no caso José Veiga, noticiado pelo jornal Público.
No caso de José Veiga, o Gabinete de Administração de Bens, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça quer vender antecipadamente duas viaturas de luxo (um Bentley que pertencia a Paulo Santana Lopes e um Porsche que era de Veiga) e uma moradia em Cascais que estava em nome do ex-ministro das Finanças do Congo Brazzaville. Por serem bens com elevado risco de desvalorização, a lei de recuperação de ativos permite a venda antecipada.
O caso de José Veiga (apelidado de Operação Rota do Atlântico) ainda está na fase de inquérito e nem sequer teve acusação por parte do Ministério Público. Mas, repete-se, trata-se tecnicamente de uma venda antecipada (e não de uma perda alargada de bens) porque o arguido tem o direito a vir a ser indemnizado em caso de absolvição.
Programa eleitoral da AD referia confisco de bens por via de processo civil
Regressando à questão da perda alargada de bens que já existe na lei, Miguel Pereira Coutinho, penalista do escritório Cuatrecasas, é mais cauteloso do que Magalhães e Silva e diz que, “em determinados casos, a lei já permite a declaração de perda a favor do Estado das vantagens do crime, mesmo quando haja arquivamento. Ou seja, sem necessidade de condenação.”
Contudo, Pereira Coutinho considera que “isso não se confunde com a chamada perda alargada, que no fundo corresponde à perda da diferença entre o valor do património total do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Para esses casos, só com condenação será possível, aliás sob pena de violação do principio do in dubio pro reo.”
Isto é, o princípio segundo o qual, em caso de dúvida, a causa deve ser sempre decidida em favor do réu.
O advogado do escritório Cuatrecasas chama a atenção para o facto de que “no programa eleitoral da AD se fazia referência à ideias das chamadas unexplained wealth orders” [manifestações de fortuna não explicadas]. Trata-se de um procedimento da jurisdição britânica em que as “formas de declaração de património incongruente” se executam através de “processos de natureza civil”. O que permite “ultrapassar, entre outras coisas, as dificuldades de prova em processo penal e a morosidade”.
Pereira Coutinho classifica esta última proposta como “uma boa ideia, dependendo da forma como seja depois implementada.”
O que diz a diretiva de abril de 2024 que o Governo quer transpor?
A fonte de inspiração da ministra Rita Júdice para avançar com a extensão para outros crimes da perda alargada de bens e de fundos que tenham proveniência ilícita é, como referimos atrás, a Diretiva 2024/1260 do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de abril de 2024.
E o que dizem estas novas regras relativas à recuperação e perda de bens?
“Para combater eficazmente as atividades criminosas, é possível que haja situações em que seja conveniente que uma condenação por uma infração penal suscetível de dar origem a benefícios económicos seja seguida da perda, não apenas dos bens associados ao crime em questão, incluindo as vantagens do crime ou os seus instrumentos, mas também de bens adicionais que o tribunal apure serem resultantes de conduta criminosa”, começa por se definir na diretiva.
De que de forma tal perda alargada poderá ocorrer? Eis o princípio geral relativo à perda sem condenação e as respetivas regras definidas no texto da diretiva aprovada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho:
- “A perda deverá ser possível em caso de impossibilidade de se estabelecer uma condenação definitiva devido a doença, fuga ou morte do suspeito ou arguido”;
- O caso de doença é definido como sendo uma “incapacidade do suspeito ou arguido de comparecer no processo penal durante um período prolongado, gerando assim um risco de os prazos previstos no direito nacional em matéria de responsabilidade penal expirarem e o processo não poder continuar”;
- Também é possível em caso de prescrição do procedimento criminal, desde que tais prazos de prescrição previstos na lei nacional “forem inferiores a 15 anos e tiverem expirado após o início do processo penal”;
- A perda alargada dos bens e fundos só poderá ser permitida, se o tribunal “estiver convencido de que os instrumentos, vantagens ou bens a ser declarados perdidos sejam resultantes da infração penal ou estejam direta ou indiretamente associados com a infração penal”;
- Isto é, o “tribunal terá de ponderar as circunstâncias específicas do caso, incluindo os factos e as provas disponíveis com base nos quais poderá ser proferida uma decisão de perda alargada”.
O advogado Miguel Pereira Coutinho explica que “as principais inovações” desta nova diretiva europeia “situam-se a nivel da cooperação transfronteiriça, reforço dos poderes de atuação dos gabinetes de recuperação dos bens com maior acesso a informação, e a possibilidade de perda sem condenação em situações de fuga ou até doença do arguido, ou seja, a chamada perda à revelia. Ou ainda em casos em que o prazo de prescrição venha a decorrer na pendência do processo.”
Contudo, alerta, “restará testar essas medidas do ponto constitucional” e de acordo com o entendimento e a jurisprudência do Tribunal Constitucional da República Portuguesa.
Uma Agenda sem prazo para ser aplicada
“Um combate sem tréguas à corrupção” na área da prevenção, da proteção do Estado e que necessita de “eficácia” e “celeridade” na investigação criminais e na administração da Justiça. É esta a descrição geral que o primeiro-ministro Luís Montenegro fez da intenção das 32 medidas da Agenda Anticorrupção aprovada esta quinta-feira pelo Conselho de Ministros.
Uma Agenda que não tem prazo para ser concretizada e que deverá ter na Assembleia da República por desejo do PSD e do CDS (que a vão propor) uma Comissão Eventual para aprofundar e consensualizar todas as propostas de alteração legislativa propostas pelo Governo que necessitem de passar pelo crivo parlamentar.
As 32 medidas tanto apontam para a regulamentação do lobbying, criação da pegada legislativa e de canais de denúncia no próprio Executivo ou para a reformulação do Mecanismo Nacional Anticorrupção (na área da prevenção), como indicam uma aposta da ministra Rita Júdice na reconfiguração da fase de instrução criminal, na aplicação do direito premial no combate ao crime económico, na revisitação do sistema de recursos e, finalmente, na aposta num novo mecanismo de perda alargada de bens, como pode ler aqui em pormenor.
Texto alterado às 8h02