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Tudo aquilo que não sabemos imaginamos pior, no caso da saúde mental são vários os bichos papões que vão ganhando espaço na nossa mente, toldam o nosso juízo e criam crenças por vezes difíceis de contornar. Nem tudo o que parece é por isso convidámos o João Marques-Teixeira, Professor Jubilado da Universidade do Porto, a desmistificar 10 mitos com os quais, de certeza, já nos cruzámos: hiperatividade é má educação? Uma pessoa com depressão é “só” preguiçosa? A sintomatologia de uma perturbação mental pode melhorar?

Há isto e há muito mais. Faça um favor a si próprio: leia agora para não julgar depois:

Hiperatividade nas crianças: trata-se de um mito de má educação ou existem fatores que justificam este comportamento?

A hiperatividade, com ou sem défice de atenção, que pode ocorrer tanto na criança como no adulto, é uma perturbação psiquiátrica com critérios de diagnóstico clínico bem definidos, com critérios instrumentais quantificáveis através de escalas de avaliação de comportamentos e critérios eletrofisiológicos. É evidente que nem todas as crianças ou adultos que manifestam sintomas de hiperatividade apresentam critérios para terem a perturbação e serem tratados em conformidade. Precisamente por isso, este e outros diagnósticos psiquiátricos apenas devem ser feitos pela observação clínica direta e a aplicação dos vários critérios atrás enunciados. Devemo-nos preocupar quando, na fase pré-escolar, os pais e/ou educadores notam que a criança ‘saltita’ muito de tarefa em tarefa, que é incapaz de as completar, que tem alguma ou muita agitação motora, etc. Ou seja, se a criança apenas consegue manter a atenção, quando a informação lhe é apresentada de uma determinada forma ou em determinado contexto ou quando o ambiente está livre de estímulos distratores, tudo isto poderá constituir um grupo de sinais de alerta. Mas o sinal mais preocupante não é a hiperatividade mas a dificuldade em focar a atenção por muito tempo, saltitando de assunto em assunto.

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O comportamento típico da “idade do armário” … o que o distingue de doença mental?

Primeiro temos de ver o que se entende por doença mental. Segundo a DSM-5 (classificação internacional das doenças) uma Perturbação Mental é “uma Síndrome caracterizada por perturbação clinicamente significativa na cognição, na regulação emocional ou no comportamento de um indivíduo que reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental”. Para além disso, as perturbações mentais estão frequentemente associadas a sofrimento ou incapacidade significativos que afetam os vários domínios da vida de uma pessoa, muito embora nem todo o sofrimento constitui uma perturbação mental. Também as perturbações da personalidade não são perturbações mentais no sentido estrito do termo, mas perturbações do desenvolvimento da personalidade que tornam os sujeitos com menos capacidades de adaptação aos contextos da vida. Portanto, o que torna um comportamento como sendo parte de uma perturbação mental é a sua inclusão num conjunto de critérios clínicos consensualizados e que, em última instância, diminui os graus de liberdade de agir de um determinado sujeito. Existem alguns sinais de alerta: um dos primeiros é a baixa de rendimento escolar. Outro frequente é o isolamento social e familiar (o jovem afasta-se dos seus pares e na família isola-se no seu quarto), ficando muitas vezes apenas com contactos sociais via internet. Outro sinal de alerta é o jovem manifestar que o seu corpo está diferente, ou deixar de se alimentar, ou deixar de dormir de noite e passar os dias a dormir.

As pessoas com esquizofrenia são tendencialmente agressivas? Ou é um mito?

As pessoas com esquizofrenia são essencialmente estranhas pelo facto de o seu comportamento estar, na maioria das vezes, fora do senso comum. Isto é, desencadeiam estranheza nos outros, estranheza essa que faz aumentar o medo e a insegurança. Medo e insegurança são os melhores ingredientes para se construir uma imagem social de agressividade. Os doentes com esquizofrenia são tão agressivos como qualquer outro ser humano, dependendo das circunstâncias sociais em que estão envolvidos e claro do grau de gravidade da sua patologia. Mas isto não se pode generalizar a todos os doentes com esquizofrenia. O principal fator de aumento dos níveis de agressividade num doente com esquizofrenia é o consumo de drogas.

Hoje em dia fala-se em muitas pessoas com depressão? Existem assim tantas? Estas pessoas são mais preguiçosas ou apáticas? O que distingue pessoas mais preguiçosas de pessoas com depressão diagnosticada?

A depressão é um estado que congrega um conjunto de sintomas que se estendem desde a esfera emocional (cujo sintoma mais saliente é uma tristeza profunda e desajustada em relação às circunstâncias do indivíduo, mas também a anedonia ou a incapacidade de sentir prazer em coisas que antes tinha prazer e muitas vezes a ansiedade), motivacional (cujo principal sintoma é a incapacidade de tomar a iniciativa), cognitiva (cujos principais sintomas são as dificuldades de concentração e algumas dificuldades de memória daí decorrentes) e psicofisiológica (como sejam as alterações do sono, do apetite, do peso, etc.). Isto é, um estado para ser diagnosticado como depressão deve enquadrar, com mais ou menos relevância, os sintomas das diferentes esferas que enunciei.

Ora uma pessoa preguiçosa, em termos psicológicos, pode-se descrever como sendo uma pessoa que procrastina e que perdeu ou diminuiu a iniciativa. Se olharmos para a descrição da depressão enquanto estado psicopatológico, como fizemos atrás, vemos que para lhe ser atribuído um diagnóstico de depressão existem um conjunto de condições estandardizadas nos critérios de diagnóstico que essa pessoa tem de cumprir. Dito de outra maneira, uma pessoa preguiçosa pode deprimir, mas um deprimido não é um preguiçoso, mas um doente. Sempre que a funcionalidade geral esteja afetada: a pessoa deixa de participar em atividades sociais, evita contactos com amigos e na família refugia-se no quarto, se trabalha o seu rendimento está a diminuir, a tolerância para a frustração diminui muito, os ruídos incomodam demais, o apetite diminui muito. Se estuda, começa a faltar às aulas ou o regimento a diminuir, isola-se socialmente. As alterações do sono são frequentes. Em síntese, a pessoa deixa de funcionar como funcionava anteriormente e consegue identificar um período temporal onde isso começou a acontecer.

Como ajudar alguém que não pede e/ou não aceita ajuda?

Esta é uma das condições mais difíceis na prática clínica. Em primeiro lugar, temos a questão da liberdade de cada um em querer ou não ser ajudado. Mesmo um doente, seja com uma doença física ou psíquica, tem o direito de recusar ser tratado. Apenas com algumas exceções: se a sua doença põe em causa a segurança de uma comunidade ou se o doente, não tendo consciência da sua doença e põe em perigo a sua vida ou de terceiros. Mas, nestes casos, a intervenção involuntária é determinada pelo Tribunal. Em todos os outros casos trata-se de proceder a uma intervenção psicológica que ajude a pessoa a tomar consciência da sua problemática até conseguir aceitar que a ajuda poderá diminuir o seu sofrimento. Mas como disse, é uma das situações mais difíceis na prática clínica.

A medicação para as doenças mentais deixa as pessoas “dopadas”? Ficam todas apáticas e incapazes de pensar?

Esta é que é uma crença errada que ainda não foi possível resolver. Os primeiros psicofármacos tinham efeitos secundários, como a sedação, que levou à construção desta crença. Mas evolução da investigação psicofarmacológica levou à síntese de novos fármacos, mais “limpos” quanto a efeitos secundários, que se pode dizer que na atualidade e numa grande maioria de casos, os doentes com perturbações mentais podem continuar a trabalhar ou a estudar, ou seja a fazer a sua vida normal, mesmo tomando medicação.

Ao assumir publicamente uma doença mental, os postos de trabalho podem ficar logo em risco?

Esta é a questão do estigma das doenças mentais. Na verdade, o estigma está entrelaçado nas malhas da sociedade e é preciso lutar contra ele. Uma das formas de se lutar contra o estigma das doenças mentais é fornecer informação correta às pessoas e a comunicação social tem um papel determinante nisso.

A pessoa é ou torna-se na sua doença mental? Como diferenciar uma da outra?

Como se diferenciar a pessoa da sua doença mental? Da mesma forma que se diferencia um tumor do resto do organismo. A pessoa, com a sua personalidade e características pessoais, em muitos casos, quando a doença passa, tudo volta ao normal. Digamos que a doença foi um processo transitório que, quando debelado, deixou a pessoa como era antes da doença. Há casos, sobretudo nas doenças mentais crónicas, que com a evolução da doença, também se dá uma deterioração da personalidade, acabando a pessoa por sofrer um processo duplo: a própria doença que não o larga e as consequências desta sobre a personalidade.

Existe, muitas vezes, a crença que alguém com uma doença mental terá de viver com essa sintomatologia para sempre. É verdade?

Não. Como disse atrás, a maior parte das perturbações mentais são tratáveis; isto é, aparecem, tratam-se e desaparecem. Há outros casos, das doenças mentais crónicas, nas quais, muito embora haja períodos em que o doente está equilibrado, haverá outros em que volta a ter recaídas. Mas com a farmacologia moderna, já é possível o controlo destas situações com muito mais sucesso. Por isso, hoje temos doentes com patologias mentais graves e crónicas com uma adaptação ao mundo bastante aceitável, tornando-se mesmo empreendedores.

Os psiquiatras apenas para prescrever medicação? Ou têm outras abordagens?

Os psiquiatras têm uma plétora de instrumentos e de abordagens que podem e devem usar, em função da patologia mental na qual pretendem intervir. Desde logo a medicação que, para muitas das doenças mentais mais graves, é a 1ª opção de tratamento sendo, naturalmente, complementada com outro tipo de intervenções como a abordagem psicoterapêutica, a psicoeducação dos doentes e dos seus familiares, etc. Há outras situações em que a farmacologia não é a 1ª opção, mas sim a psicoterapia que, se o psiquiatra tiver formação específica para tal, pode ser ele a fazê-la. Dentro da psicoterapia há imensas formas diferentes de se praticar, tais como a psicoterapia individual e a psicoterapia de grupo, as psicoterapias verbais e as corporais, as psicoterapias expressivas, etc. Cada uma delas pode estar indicada para situações clínicas particulares.

Agora, pedimos-lhe: passe a palavra e peça a quem contou para fazer o mesmo. Vamos, juntos, tirar o elefante da sala?

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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