Os fiscalistas já as encaram como “letra morta”. Há normas aprovadas no Código dos Regimes Contributivos de 2011 que aumentariam as contribuições sociais a pagar pelas empresas e trabalhadores em situações específicas, mas que foram sucessivamente adiadas. Resultado: estão há 12 anos por regulamentar. O Ministério do Trabalho não diz se, ou quando, vai retomá-las. Ou se, ao invés, vai mantê-las no limbo ou deixá-las cair de vez.
Em causa estão o fim da isenção de contribuições sociais aplicadas sobre algumas gratificações de balanço (quando os lucros, ou parte dos lucros, são distribuídos pelos trabalhadores), de contribuições a cargo do empregador sobre os seguros de vida, planos de poupança reforma ou fundos de pensões ou sobre os prémios relacionados com o desempenho da empresa. Enquanto não há regulamentação, estas rubricas continuam isentas de Segurança Social, embora a lei publicada em 2009 para entrar em vigor em 2011 tenha ditado o contrário.
No grupo das normas suspensas está também o agravamento das contribuições a cargo dos empregadores sobre os contratos precários. Em 2019, ganhou um novo desenho — com a famosa taxa de rotatividade —, mas nem assim viu a luz do dia.
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Todas estas normas estavam previstas no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social de 2011, criado pelo então ministro socialista José António Vieira da Silva. Na altura, o texto da lei fazia depender a entrada em vigor das normas da regulamentação. Uma alteração legislativa de 2011 adiou essa regulamentação para depois de janeiro de 2014 e após consulta dos parceiros sociais na concertação social. Mas a data passou, nove anos decorreram e as normas continuam no papel.
Questionado pelo Observador, o Ministério do Trabalho, liderado por Ana Mendes Godinho, não diz por que razão não procedeu à regulamentação que estava prevista, nem se pretende retomá-la num futuro próximo, se a questão já foi levada à concertação social ou se, por outro lado, vai desistir das normas.
Quanto à taxa de rotatividade, o Dinheiro Vivo escreveu, em fevereiro deste ano, que o Governo iria deixá-la cair e preparava uma alternativa para o segundo semestre do ano. O Ministério também não respondeu sobre a alternativa.
Os sucessivos adiamentos
O Código dos Regimes Contributivos foi preparado pelo então ministro de José Sócrates, José António Vieira da Silva, em 2009, antes da intervenção da troika. Entre as principais alterações estava o alargamento da base de incidência das contribuições, levando ao fim da isenção de alguns subsídios e remunerações. “Houve um processo de regularização, no sentido de diminuir significativamente as isenções e reduções da taxa social única”, limitando “algumas isenções pouco eficazes ou excessivas“, lembra José Vieira da Silva, em declarações ao Observador.
No final de 2009, o Código dos Regimes Contributivos foi adiado para 1 de janeiro de 2011. Quando entra em vigor, já o país estava mergulhado em crise, que culmina com a chamada da troika três meses depois.
O Código previa a regulamentação das várias normas por decreto-lei ou decreto regulamentar. O Orçamento do Estado para 2011 introduziu uma alteração importante para as normas com que iniciámos este artigo: não só adiava a entrada em vigor para janeiro de 2014, meses antes do fim do programa de assistência, como tornava dependente de uma avaliação feita com os parceiros sociais.
Mas passou janeiro de 2014 e nada. Na altura, era Pedro Mota Soares ministro do Trabalho e da Segurança Social, do governo de Pedro Passos Coelho. Ao Observador, assume que foi deliberado não avançar para a regulamentação, que colocaria um fim às isenções. “Lembro-me que a questão se colocou, mas o nosso entendimento foi que qualquer coisa que significasse encarecer o fator trabalho não seria positivo, numa altura em que a preocupação central era recuperar emprego. O país estava a viver um momento muito difícil”, refere.
O governo muda no final de 2015, Vieira da Silva volta ao governo — como ministro do Trabalho e no executivo de António Costa — e nem aí as normas ganham vida. Nem mesmo em 2019, quando aprova alterações à lei laboral que têm ecos no Código dos Regimes Contributivos. Mais concretamente, deixa cair da lei a menção a “depois de janeiro de 2014” (afinal, já tinham passado cinco anos), mas mantém a obrigatoriedade de levar as questões à concertação social.
Fiscalistas divididos sobre benefícios da isenção aos prémios de produtividade proposta pelo PSD
Passou a ler-se no Código dos Regimes Contributivos (e é essa a redação atual) que: “A regulamentação das alíneas r), x) e aa) do n.º 2 do artigo 46.º e do artigo 55.º-A, ambos do Código, é precedida de avaliação efetuada em reunião da Comissão Permanente de Concertação Social“.
Ao Observador, Vieira da Silva diz não se recordar em concreto dos motivos que levaram o governo de que fez parte a adiar sucessivamente a regulamentação das normas, e de não as revogar. Mas admite que a “conjuntura política”, e o puzzle político-partidário inerente à chamada “geringonça” que então se formou, pode ter ajudado a explicar.
“Estávamos numa situação em que as mudanças precisavam de uma maioria que tinha de ser construída a todos os momentos, não era um contexto de maioria absoluta”, frisa. “Nessas alturas, há uma condicionante de quem decide, que é a de ter de se construir uma maioria no Parlamento. Porque além daquilo que estava nos acordos com os diferentes partidos que fizeram parte da chamada “geringonça”, tudo o resto era alvo de um processo negocial. É um puzzle em que todas as peças têm de ser conjugadas“, acrescenta.
Arménio Carlos, secretário-geral da CGTP entre 2012 e 2020, recorda-se de “uma ou outra conversa” sobre o assunto na concertação social, mas sem nenhuma proposta concreta por parte dos governos — só compromissos de estudarem o assunto. “Foi uma ou outra conversa que se fez em termos gerais, mas nem tampouco acertadas do ponto de vista do calendário e de uma eventual conclusão”, afirma, ao Observador.
Quem também acompanhou a concertação social na altura, até ao ano passado (quando foi eleito deputado pelo PS), foi Sérgio Monte, da UGT, que não tem memória de o assunto ter sido apresentado aos parceiros sociais. O socialista admite que a questão possa, entretanto, ter sido adiada com as discussões da agenda do trabalho digno, que se prolongaram, a queda do governo em 2021 e a prioridade dada ao acordo na concertação social de rendimentos e competitividade. As regulamentações em falta “podem ter ficado um bocado para trás, até porque se trata de remunerações variáveis”.
Questionado pelo Observador sobre se pretende revogar estas normas, ou se pretende adiá-las indefinidamente, o Ministério do Trabalho não respondeu a nenhuma das questões.
Regulamentar agora “faz pouco sentido do ponto de vista prático”
A lei passou a incluir na delimitação da base de incidência contributiva — sobre a qual incidem as contribuições e quotizações — as “prestações pecuniárias ou em espécie que nos termos do contrato de trabalho, das normas que o regem ou dos seus usos são devidas pelas entidades empregadoras aos trabalhadores como contrapartida do seu trabalho”.
A alteração de 2009 passou a introduzir neste leque “os montantes atribuídos aos trabalhadores a título de participação nos lucros da empresa”, mas “desde que ao trabalhador não esteja assegurada pelo contrato uma remuneração certa, variável ou mista adequada ao seu trabalho“. Como aferir que a remuneração é ou não adequada? Luís Leon, fiscalista e co-fundador da consultora Ilya, dá alguns exemplos: por comparação com os acordos coletivos ou estudos salariais por setor, mas acrescenta que a regulamentação deveria especificar essas situações.
Também passariam a pagar Segurança Social, se a regulamentação fosse feita, “os valores despendidos obrigatória ou facultativamente pela entidade empregadora com aplicações financeiras, a favor dos trabalhadores, designadamente seguros do ramo «Vida», fundos de pensões e planos de poupança reforma”, bem como “quaisquer regimes complementares de segurança social, quando sejam objeto de resgate, adiantamento, remição ou qualquer outra forma de antecipação de correspondente disponibilidade ou em qualquer caso de recebimento de capital antes da data da passagem à situação de pensionista, ou fora dos condicionalismos legalmente definidos”.
Igualmente dependente da regulamentação está o fim da isenção das “prestações relacionadas com o desempenho obtido pela empresa quando, quer no respetivo título atributivo quer pela sua atribuição regular e permanente, revistam caráter estável independentemente da variabilidade do seu montante”.
Por último, a taxa de rotatividade. Quando o Código dos Regimes Contributivos entrou em vigor, em 2011, previa um agravamento da taxa contributiva paga pelas entidades empregadoras sobre os contratos de trabalho a termo, exceto nos firmados para substituir trabalhadores em licença de parentalidade ou com incapacidade temporária.
Esta norma foi revogada e substituída em 2019 pela famosa “taxa de rotatividade” que o Governo criou para penalizar as empresas que mais recorressem à contratação temporária. Em concreto, ser-lhes-ia aplicada uma taxa adicional, progressiva e até 2% das remunerações dos trabalhadores precários, “por rotatividade excessiva” quanto tivessem um peso anual da contratação a termo superior ao referencial do setor, que seria determinado pelo governo.
Mas este novo desenho também não chegou a ser aplicado por falta de regulamentação e a difícil aplicação levou o Governo a procurar uma alternativa. Em fevereiro, o Dinheiro Vivo escreveu que a solução seria conhecida no segundo semestre deste ano. Mas o Ministério também não responde sobre esta questão.
Em teoria, Luís Leon diz que as normas podem passar anos sem conhecer regulamentação: “Já passaram 12 anos e nunca foram regulamentadas. Tanto que agora já dizemos que é letra morta e não faz sentido regulamentar.” A discussão, acredita, teria pouco sentido no contexto atual de perda de poder de compra.
Pôr fim à isenção seria “colocar um ónus adicional em cima das empresas“, incluindo “naquelas que até já estão a partilhar os lucros, por exemplo”, que passariam a pagar quase 35% — 23,75% do lado da empresa e 11% do trabalhador. “Isso iria tirar mais liquidez aos trabalhadores. Se do ponto de vista conceptual faz pouco sentido, do ponto de vista prático e pragmático ainda faz menos sentido. Sobretudo num contexto de taxas de inflação elevadas em que as pessoas estão desesperadas por liquidez”.
De fora da isenção estão já os prémios de produtividade baseados na performance individual do trabalhador. O PSD já propôs, aliás, que tanto no público como no privado estes prémios deixem de pagar IRS e TSU na parte que diz respeito ao trabalhador e ao empregador até aos 6% da remuneração base anual. Para evitar o risco de planeamento fiscal agressivo por parte das empresas — ou seja, que estas pagassem rendimento como prémio para escapar à tributação, o que poderia prejudicar a carreira contributiva dos trabalhadores —, os social-democratas criaram uma limitação à utilização abusiva deste incentivo: o montante a ser recebido pelo trabalhador na qualidade de remuneração regular com carácter de retribuição nos últimos 12 meses não pode ser inferior ao valor médio dessas mesmas remunerações auferidas nos últimos 36 meses.