Maria (nome fictício) falou com a família pela última vez no domingo. Depois disso, a internet em Cuba foi cortada — e a mulher está há vários dias com coração nas mãos, sem saber notícias do irmão e dos pais idosos, numa altura em que a ilha vive uma onda de protestos inéditos contra o regime, motivados pela pobreza, pela falta de alimentos e por uma economia arrasada devido ao impacto da pandemia no turismo.
“Não sei nada desde que cortaram a internet“, diz Maria, que não quis identificar-se por recear represálias à família. “Falámos há dias, no domingo, antes de cair a internet. O que temos visto são os vídeos, as publicações, de meios, muitos deles em Miami ou no Panamá. Há muitas pessoas que estão lá e que conseguem, em algum momento, carregar alguma coisa.”
“Estou tão perturbada e cansada. Levo dias sem dormir, não vejo solução“, desabafa a cubana ao Observador.
Sem Castro no poder e com acesso à internet, os cubanos reclamam o que a revolução lhes prometeu
Maria nasceu já numa Cuba castrista, foi uma jovem marxista e sofreu na pele as agruras da década de 1990, quando o colapso da União Soviética mergulhou a ilha, patrocinada por Moscovo, na crise e na incerteza. “Senti-me como num rio revolto, não sabíamos para onde ir. Foram anos muito difíceis, porque não tínhamos recursos nenhuns”, lembra. À época, Maria estava a acabar os estudos na área da comunicação e acreditava no ideal da revolução operada em 1959 por Fidel Castro, que depôs o ditador Fulgencio Batista e impôs um regime comunista sob os auspícios da União Soviética.
“Sempre houve aquela ideia de fazer um mundo mais justo, em que todos fossem iguais. A minha geração foi criada com esse objetivo de trabalhar para que todos fôssemos iguais, tivéssemos acesso à educação e à saúde”, lembra. “Nunca foi sacrifício para mim trabalhar ou estudar. Foi uma oportunidade. Mas havia regras que tínhamos de cumprir com aquela ideia de nos proteger, de não sofrer ingerências estrangeiras, seguir um caminho para não ter influências do capitalismo.”
A queda da União Soviética deixou a nu a “dependência” de Cuba. “Não havia economia”, garante: “A maioria produção dependia do campo socialista.”
Quando terminou os estudos, Maria viajou pelo mundo e apercebeu-se de que havia “outras coisas além da ilha”. Viveu quase 15 anos em Portugal, até que a crise a deixou desempregada. Voltou mais uma década a Cuba, mas a recente “situação terrível” voltou a empurrá-la para o desemprego. Em dezembro de 2020, já em plena pandemia da Covid-19, saiu do país com a filha e instalou-se novamente em Portugal.
Maria é uma dos cerca de dois mil cubanos que vivem em Portugal, de acordo com os dados oficiais.
Chegamos a ela através de Gretta Balin Diaz, fundadora da Alocubano, uma associação cultural que reúne algumas dezenas de cubanos que residem em Portugal. Ao Observador, a responsável da associação cultural reconhece que são muitos os cubanos em Portugal desesperados por informações das famílias e dos amigos no país de origem — Gretta Diaz é uma delas.
“Não tenho conseguido falar com pessoas em Cuba, nem com familiares“, diz Gretta ao Observador. “Estamos a seguir nas redes sociais os acontecimentos. Algumas pessoas já conseguiram falar com familiares, porque surgiu uma aplicação para que os cubanos consigam ter internet gratuita e aí então começam a enviar vídeos e fotografias, é assim que conseguimos.”
Gretta Balin Diaz representa uma associação nascida para promover a cultura cubana. “Temos músicos, dançarinos, escritores, pintores, escultores. Organizamos eventos culturais. Antes da pandemia. Agora com a pandemia já pode imaginar que temos tudo parado”, conta. Porém, os protestos que eclodiram no fim-de-semana mudaram as prioridades deste grupo de cubanos.
“Temos pessoas que desde sexta-feira, quando tudo começou, não têm conseguido falar mais com a família. É mais fácil contactar com os que estão em Havana do que com os que moram no interior do país. Aí, já ficaram logo sem telefone, sem internet, passam uma grande parte do dia sem eletricidade também. Já tiveram apagões de seis horas, sobretudo durante a noite. Tem sido muito complicado”, relata Gretta.
Regime de Díaz-Canel cortou internet para reprimir protestos
O corte de internet tem sido uma das principais armas do regime, liderado desde 2018 por Miguel Díaz-Canel, para reprimir os grandes protestos que eclodiram no fim-de-semana para denunciar a pobreza generalizada no país. Díaz-Canel, o primeiro Presidente cubano nascido depois da revolução — e o primeiro fora da família Castro —, foi, curiosamente, o responsável por massificar o uso da internet em Cuba.
Só em 2018 é que os cubanos puderam finalmente ter acesso à rede de internet móvel 3G — até então, o uso da internet dependia de hotspots públicos ou então era um luxo acessível apenas às elites estrangeiras, num país profundamente dependente do turismo. Díaz-Canel, um utilizador ativo do Twitter, expandiu o 3G, mas rapidamente se desiludiu, percebendo que a rede global se transformou num dos principais palcos para os dissidentes políticos.
“Sem internet, as coisas que aconteciam poucas pessoas tinham conhecimento delas. Surgiam boatos: aconteceu uma coisa aqui, aconteceu uma coisa ali. Mas agora com a internet as pessoas podem fazer fotografias, vídeos e rapidamente a informação corre”, explica Gretta: “Exatamente porque a informação se passa através da internet, os grupos organizaram-se através da internet, tem cubano-americanos que estão sempre a enviar informação e a estimular as manifestações. É na internet que acontece tudo, para o bem e para o mal.”
Maria ainda se lembra da vida em Cuba antes da internet. “Gastava-se muito dinheiro para comunicar”, conta a mulher que viveu no país-natal durante quase uma década antes de regressar a Portugal — e aproveitou esses anos para mostrar à filha as dificuldades por que o povo cubano passa. “Na época de Fidel, a internet não era uma prioridade. Passámos muitos anos numa ilha como um caracol, aquela mentalidade de não ter ingerências, contaminação. Mas o desenvolvimento tecnológico tinha de chegar à ilha. As coisas mudaram e as pessoas mudaram.”
“Os militares não têm conhecimento para desenvolver um país“, defende a responsável da associação Alocubano, alertando que “em situação de guerra ninguém está a pensar que o país se desenvolva”: “Essa situação tem de durar pouco tempo. Mas se se estende 60 anos…”
Comer “é uma preocupação diária”
As palavras de Gretta Balin Diaz sobre o seu país-natal são significativas: “Aquilo já era uma panela de pressão, em qualquer altura ia explodir.”
Com efeito, a grande diferença entre os protestos que agora marcam a atualidade cubana e os vários outros picos de tensão vividos ao longo dos últimos anos no país é que, agora, é a pobreza quotidiana — e não a ideologia política — que está na base nas manifestações.
“Cuba vive principalmente do turismo. E, com a pandemia, o turismo praticamente parou“, explica a fundadora da associação cultural cubana em Portugal. “Sem turismo Cuba não tem dinheiro para coisas básicas. As pessoas já tinham uma caderneta, onde a alimentação já estava racionada antes desta situação.”
“Com esta situação, o governo nem consegue dar as coisas básicas que tem na caderneta. O cubano vive diariamente pensando o que vai comer nesse dia. Na caderneta tem direito a um pão diário, tantas libras de feijão, tantas libras de arroz. Essas coisas não vêm todas juntas no início do mês. Cada dia vai chegando uma coisinha diferente. Hoje tem feijão, amanhã tem arroz e na próxima semana tem batatas. É suposto que a alimentação esteja toda assegurada com o que está na caderneta, mas não está. As pessoas têm de comprar no mercado negro o resto da alimentação. É uma preocupação diária”, diz Gretta.
“Cuba já tinha passado por momentos bem complicados politicamente e não tinham surgido estas manifestações. Eram pontuais. É a primeira vez que se foram expandindo pelo país inteiro. Todas as províncias tiveram pessoas na rua. As pessoas demonstram que não estão contentes com o governo, com o trabalho que o Presidente está a fazer”, acrescenta.
Miguel Díaz-Canel foi nomeado em 2018 para suceder a Raúl Castro — que em 2008 já havia sucedido ao irmão, Fidel Castro — e, embora tenha prometido desde o início que governaria numa lógica de continuidade à revolução, o novo Presidente tem sido encarado em Cuba e no resto do mundo como o início do fim da era dos Castros.
Porém, o modo severo como reagiu aos protestos está a deixar os cubanos desiludidos e com medo, diz Maria, reiterando a necessidade de manter o anonimato devido às críticas que faz ao Presidente.
Já com milhares de pessoas nas ruas, Miguel Díaz-Canel dirigiu-se à nação através de um discurso televisivo apelando aos fiéis do regime que também fossem para a rua: “A ordem de combate está dada, os revolucionários às ruas!”
Para cubanos como Maria, esta foi a gota de água. “Tinha o benefício da dúvida para todos nós, mas o facto de ir à televisão convocar uma guerra civil, acho que não está certo”, diz. “Se realmente fosse uma pessoa que se preocupava com a situação… O que ele fez no domingo foi ir à televisão mandar as pessoas matarem-se umas às outras. Não há continuidade, não há palavras para isto. Não sabemos o que vai acontecer.“