É tido como “o príncipe” da política de Israel que, umas vezes, desafia o “rei” e que noutras estabelece alianças com ele. As comparações ficam-se pelo mundo da realeza, ainda assim. O antigo comandante das Forças de Defesa de Israel, Benny Gantz, representa uma “antítese” do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, que domina politicamente país há décadas. O ex-militar tem um “estilo discreto”, é alguém que cultiva uma imagem “modesta” e até é de certo modo “pouco eloquente”. “É alguém visto como equilibrado, cuidadoso e pragmático”, define ao Hareetz Amotz Asa-El, membro do Instituto Shalom Hartman, que o distingue do estilo “arrogante e individualista” do atual chefe do executivo, o “rei Bibi”.
O passado militar de Benny Gantz talvez ajude a explicar o porquê de colocar a missão de defender o país acima dos interesses partidários, sendo essa a fama que ganhou na sociedade israelita. E isso ficou provado recentemente. Na sequência dos ataques do Hamas em solo israelita a 7 de outubro e da guerra que se desencadeou na Faixa de Gaza, o antigo comandante voltou a estender a mão ao atual primeiro-minsitro, após ter concorrido contra ele nas duas últimas eleições legislativas e até ter integrado uma coligação contra um governo do Likud, o partido liderado por Benjamin Netanyahu.
Benny Gantz aceitou ser ministro sem pasta e integrar o gabinete de guerra liderado por Benjamin Netanyahu. “Nós estarmos lado a lado é uma mensagem clara aos nossos inimigos e, mais importante do que isso, uma mensagem a todos cidadãos de Israel — nós estamos todos juntos, estamos todos mobilizados”, justificou o ex-militar, que passava a fazer parte de um governo com o qual se incompatibilizava inicialmente, devido aos partidos mais ortodoxos e conectados à extrema-direita com quem o primeiro-ministro israelita se aliou para conseguir governar.
Mesmo juntando-se a forças partidárias que criticara duramente, passou sempre a ideia de que Benny Gantz estava novamente a cumprir uma missão: a de moderar o governo de Benjamin Netanyahu, evitando que cedesse às exigências dos partidos mais radicais em tempos de guerra. No entanto, à medida que o tempo passa, as tensões vão-se acumulando, sendo cada vez mais difícil reunir unanimidade entre todos estes parceiros governamentais.
Em termos de imagem pública, a guerra e o ataque que Israel sofreu no dia 7 de outubro foi um duro golpe para Benjamin Netanyahu, que foi acusado de ignorar os avisos no que concerne à ofensiva do Hamas, equacionando-se mesmo que — quando o conflito terminar — o primeiro-ministro vai abandonar a vida política. Em contrapartida, a popularidade de Benny Gantz nunca foi tão alta e a coligação que encabeça, a União Nacional, está agora em primeiro lugar nas sondagens.
Realizada entre 15 e 16 de novembro, não tendo ainda em consideração a troca de reféns e o cessar-fogo temporário, a sondagem citada pelo Times of Israel dava 43 deputados à Unidade Nacional, ao passo que o Likud se ficava por 18 (nas últimas eleições, em novembro de 2022, conseguiu 32). Inclusivamente o principal partido da oposição — o Yesh Atid liderado por Yair Lapid — descia o número de parlamentares eleitos pelo Knesset (o parlamento israelita), passando de 24 para 13.
Há outro dado da sondagem que confirma a popularidade de Benny Gantz. Numa das perguntas que comparava quem tinha mais competência para ser primeiro-ministro neste momento, 52% dos inquiridos disseram o nome do antigo comandante, ao passo que apenas 27% referiram Benjamin Netanyahu.
Tendo ganhado um grande capital político e legitimidade desde o início do conflito, Benny Gantz terá nas mãos o futuro do governo de unidade nacional. Mantendo as habituais desconfianças em relação aos parceiros mais radicais, o antigo comandante saberá que, neste momento, traz uma imagem de credibilidade a um executivo contestado pela maioria dos cidadãos — não só por causa da guerra, como também devido à polémica reforma judicial que acabou por nunca ir avante.
O jogo duplo de Netanyahu que tem de (tentar) agradar a todos
As negociações para o gabinete de guerra não foram fáceis. Pressionado pela opinião pública para formar um governo de unidade nacional, Benjamin Netanyahu contactou aquele que fora o seu antigo parceiro por alguns meses, durante a crise que marcou a política israelita entre 2019 e 2022. Nesse período, Benny Gantz apoiou o chefe do executivo, desfez por mais de uma vez uma coligação com o Likud, integrou um governo que colocou o atual primeiro-ministro como líder da oposição e depois afastou-se do Likud, quando este se decidiu unir aos partidos mais ortodoxos e extremistas.
Estes ziguezagues políticos contaram para uma inicial desconfiança de Benny Gantz, que impôs condições para a formação de um gabinete de guerra: este órgão determinava os objetivos da campanha militar, era o responsável por dar ordens às forças de segurança e formulava as estratégias de guerra. Ficava, em resumo, encarregue praticamente de todas as áreas do conflito. Além disso, o antigo comandante das Forças de Defesa de Israel exigiu que nenhum membro do Partido Sionista Religioso e do Otzma Yehudit — ambos de extrema-direita — integrassem este gabinete de guerra.
O primeiro-ministro israelita acabou por ceder, mas a tarefa que tem em mãos não é fácil. Todas as decisões tomadas pelos três membros do gabinete de guerra (Benny Gantz, Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa, Yoav Gallant) têm de ser validadas por todos os membros do governo, incluindo os mais radicais, como o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, e o da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir.
Assim sendo, Benjamin Netanyahu tem de conciliar vontades distintas, algumas delas antagónicas. Por exemplo, em relação à questão da libertação de reféns, enquanto o gabinete de guerra apoiava de forma unânime a medida, alguns membros mais radicais do seu governo bateram o pé e manifestaram o seu desagrado.
Ainda mais recentemente, houve novamente um momento de tensão em que esteve à vista uma possível crise política. Para a elaboração do Orçamento do Estado para 2024, fortemente condicionado pela guerra, estalou uma polémica entre o ministro das Finanças e a coligação liderada por Benny Gantz, a União Nacional. Numa carta enviada a Benjamin Netanyahu, o ex-militar contestou que algumas verbas tenham sido direcionadas “para necessidades controversas” que prejudicam não só o desfecho do conflito, como também “a resiliência nacional”.
As “necessidades controversas” em causa prendem-se com as verbas destinadas ao desenvolvimento de “projetos identitários judeus” e as canalizadas para a criação de escolas ultraortodoxas — bandeiras envergadas pelo Partido Sionista Religioso a que pertence o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich. Na ótica de Benny Gantz, estes investimentos não fazem sentido. “O público sabe disso e o governo deve agir de acordo com esse princípio”, enfatizou o antigo militar, sublinhando que não “respondiam às necessidades da guerra”.
Para além de denunciar esta situação, a carta que o ex-militar enviou ao primeiro-ministro israelita continha dois sérios avisos. O primeiro é que, no Knesset (o parlamento israelita), a União Nacional provavelmente votaria contra o Orçamento. O segundo, mais sério, consistia no facto de a coligação ter de “reconsiderar os próximos passos a tomar“, deixando no ar a possibilidade de Benny Gantz abandonar o gabinete de guerra.
Em resposta, o gabinete de Benjamin Netanyahu rejeitou as propostas para terminar com as necessidades consideradas “controversas” por Benny Gantz, mas adotou um tom conciliatório. Mesmo com aqueles investimentos, o Orçamento irá, segundo o primeiro-ministro, “responder às necessidades da guerra”. “Responderá às necessidades das Forças de Defesa de Israel, quer ofensiva, quer defensivamente, vai ajudar as famílias dos reféns, dos feridos, dos assassinados e das famílias retiradas das suas casa — e compromete-se a que a economia israelita continue a prosperar.”
Com uma possível crise política a irromper, Benny Gantz veio esclarecer que não vai abandonar o gabinete de guerra. Segundo detalhou a imprensa israelita, o antigo comandante vai continuar a estar por trás do esforço de guerra do país. Sem embargo, a União Nacional vai contestar o orçamento no parlamento, esperando contar inclusivamente com o apoio de alguns membros do partido de Benjamin Netanyahu.
Netanyahu deverá continuar rei do Likud, mas precisa sempre de Gantz
O episódio do Orçamento do Estado revela o frágil equilíbrio das ações políticas de Benjamin Netanyahu. Apesar de a relação com ministros e o gabinete não ser fácil, o primeiro-ministro conta com uma vantagem: o Likud está, como nota o Hareetz, unido em torno da imagem do primeiro-ministro. Fontes do partido sinalizaram àquele jornal israelita que, após alguma dúvida inicial decorrente dos ataques terroristas de 7 de outubro, o chefe do executivo já é novamente visto como um “leão” capaz de sobreviver a todas as crises — como fez ao longo das últimas décadas.
Ainda que fações do partido contra Benjamin Netanyahu tenham ganhado força com o início da guerra, a maioria continua a sentir a influência da “máquina partidária” construída precisamente pelo primeiro-ministro durante anos. Assim, muitos membros do Likud têm medo “de que a máquina os pise”. “Há pessoas que estão a fazer cálculos sobre o seu futuro político. À exceção de Yoav Gallant [ministro da Defesa], nenhum ganharia nada em sair do Likud”, comentou fonte do partido ao Hareetz.
Colocada de parte a possibilidade de o governo cair por ações das fações anti-Netanyahu do Likud, é mais fácil para o primeiro-ministro gerir as crises que poderá haver entre o gabinete de guerra e o seu governo. Ainda assim, perante as sondagens e a popularidade do antigo comandante, há um consenso em praticamente todo o partido do chefe do executivo de que a presença de Benny Gantz enquanto decisor político é essencial neste momento do conflito.
Um ministro preconizou ao Hareetz que “no minuto em que Gantz abandonar o governo” começarão novamente “protestos” contra o governo, tal como sucedeu em meados deste ano, o que poderia levar à queda da governo. Recorde-se que, por conta da reforma judicial, milhares de israelitas saíram às ruas para protestaram contra aquela medida. No entanto, a guerra contra o Hamas desviou as atenções e, para demonstrar unidade, o número de manifestações diminuiu drasticamente após o início do conflito, exceptuando-se aquelas organizadas pelas famílias dos reféns.
Num momento sensível para Benjamin Netanyahu — comprovada pelas sondagens —, a queda do governo e umas possíveis eleições comportariam um risco imenso para o Likud, que poderia sofrer uma derrota em toda a linha. Portanto, o “Rei Bibi” tem de manter, pelo menos temporariamente, o “príncipe” da política israelita a seu lado.
“Bibi” deixou de ser o rei de Israel. Em breve, Netanyahu pode já nem ser o seu primeiro-ministro
O ex-militar que pode (um dia) chegar a primeiro-ministro
Nascido em 1959 em Kfar Ahim, no sul de Israel, Benny Gantz é filho de uma sobrevivente do Holocausto nascida na Hungria e de um romeno que tinha sido preso pelos britânicos por tentar estabelecer um colonato na Palestina durante a ocupação do Reino Unido. Depois da criação do Estado de Israel, os dois ajudaram a fundar a localidade.
Aos 18 anos, Benny Gantz entra nas Forças de Defesa de Israel. Subiu a pulso e cedo comandou as tropas de elites das tropas israelitas. Ao mesmo tempo, ia conciliando a carreira militar com os estudos: licenciou-se em História pela Universidade de Telavive, tirou um mestrado de Ciência Política na Universidade de Haifa e até estudou Gestão de Recursos Nacionais nos Estados Unidos da América (EUA).
Entre os seus principais feitos, o militar foi um dos principais responsáveis pela Operação Salomão, em 1989, que trouxe para Israel cerca de 14.500 judeus da Etiópia. Foi também um dos principais comandantes durante a ocupação israelita do sul da Líbano, tendo igualmente supervisionado a retirada das tropas do país da região.
Mais tarde, em 2011, é nomeado de forma unânime pelo parlamento israelita como chefe das Forças de Defesa de Israel, ascendendo ao cargo de tenente-general. Nessa altura, o primeiro-ministro era também Benjamin Netanyahu que deixava rasgados elogios àquele que viria a alternar — um década depois — entre o papel de rival e aliado político: “É um comandante com uma rica experiência operacional e logística com todos os atributos para ser um comandante das forças armadas bem-sucedido”.
Durante chefe das tropas israelitas, Benny Gantz teve como principal desafio levar a cabo a operação “Margem Protetora”, em que Israel invadiu a Faixa de Gaza em 2014. A guerra durou cerca de dois meses e terminou após Telavive ter alegado que destruiu a rede de túneis que o Hamas terá construído na região. Um ano depois, a alta patente abandonou o cargo e termina a carreira militar.
Depois de uma incursão no mundo empresarial, o antigo militar chega à vida política em 2018 — e tem uma estreia meteórica. Nas eleições legislativas de abril de 2019, Benny Gantz consegue praticamente o mesmo resultado do que o Likud, de Benjamin Netanyahu, que estava no poder há dez anos. Após não haver nenhum acordo, há novas eleições em setembro de 2019 e o antigo comandante vence-as.
A vitória nas legislativas de Benny Gantz não impede que Benjamin Netanyahu chega ao poder através de uma coligação alargada, que acaba por cair em março de 2020. Numa altura em que Israel enfrentava a pandemia de Covid-19, a coligação de Benny Gantz propõe um governo de emergência nacional com o Likud, que dura praticamente um ano e em que o antigo militar assume as funções de vice-primeiro-ministro.
Numas novas eleições em março de 2021, há uma alternância de poder. Ainda que Benjamin Netanyahu tenha novamente vencido, a oposição reuniu-se e construiu uma megacoligação de que fazia parte Benny Gantz, que voltou a assumir o cargo de vice-primeiro-ministro, acumulando-o com o de ministro da Defesa. Após outra queda deste governo mais à esquerda, umas novas eleições no final de 2022 dão novamente a vitória ao Likud, que desta vez se alia aos partidos mais extremistas.
À medida que as eleições se iam repetindo num curto espaço de tempo, os resultados eleitorais da União Nacional iam sendo sucessivamente piores. Ao passo que em 2019 a coligação de Benny Gantz chegou a vencer o Likud com 26% dos votos, três anos depois ficou-se por um resultado na ordem dos 12%.
Com um papel na oposição neste novo governo israelita, Benny Gantz voltou, após o início da guerra, a apoiar Benjamin Netayahu, focando-se numa tarefa que parece ser a de servir o país quando este necessita dele. Embora muitos israelitas pareçam apreciar neste momento este estilo, os críticos apontam-lhe alguma falta de experiência política. E não só. Como relata a Reuters, a sua maneira de abordar a política é visto pelos seus opositores como uma falta de princípios, não se guiando por nenhuma ideologia concreta.
Elogiado pelo seu sentido de missão e criticado por mudar de opinião política consoante quem está no poder, certo é que o antigo militar “modesto” e com pouca experiência já ganhou o estatuto de “príncipe” na política israelita — e é um dos poucos que é capaz de condicionar o primeiro-ministro. Atualmente, Benny Gantz está empenhado em servir o país, mas o seu futuro político está em aberto e as oportunidades parecem ser muitas, apesar da guerra. Resta também saber se o “príncipe” será capaz de fazer xeque-mate ao “rei”.