É impossível falar de literatura gótica sem referir o nome de John William Polidori. Apesar de ser hoje uma personagem pouco conhecida, Polidori foi responsável pela criação do vampiro tal como o conhecemos — uma figura aristocrática, que procura as suas presas na alta sociedade. Foi assim que ele o descreveu no conto “O Vampiro”, originalmente publicado a 1 de abril de 1819 na revista britânica New Monthly Magazine, 78 anos antes de Bram Stoker criar o morto-vivo mais famoso da história, Drácula. “O Vampiro” de Polidori é, por isso, precursor de toda uma literatura, tendo sido o primeiro a fundir diferentes elementos do folclore associados à figura do vampiro para criar uma história coesa. O conto serviu de inspiração a muitos dos escritores que lhe seguiram, que cimentaram e popularizaram a literatura gótica em Inglaterra.
Tal como Drácula 78 anos depois, “O Vampiro” foi um sucesso imediato. Isso deveu-se não só à exploração dos elementos da literatura de terror, mas sobretudo por a sua autoria ter sido atribuída erradamente a Lord Byron. Byron foi, na verdade, a principal fonte de inspiração de Polidori, que partiu de um fragmento do autor de “She Waks in Beauty” para escrever a sua história e da vida do próprio poeta para criar o seu vampiro, Lord Ruthven. Polidori terá ido buscar nome da personagem ao primeiro romance de Lady Caroline Lamb, Glenarvon, onde existe um Ruthven, interpretado por alguns autores como sendo inspirado também em Byron. Lamb foi amante do poeta.
O texto original de Lord Byron, conhecido por “A Fragment”, surgiu num dos serões passados na Villa Diodati, uma mansão em Genebra, junto ao Lago Lemano, onde o poeta passou o verão de 1816 — o “ano sem verão” — com Percy e Mary Shelley. O grupo, onde se incluía Polidori (que era médico de Byron) e Claire Clairmont (que era amante de Byron), tinha por hábito passar as noites a contar histórias de fantasmas junto à lareira. Foi assim que nasceu Frankenstein e também “A Fragment”, que, se Byron tivesse publicado de imediato, seria considerado o fundador da literatura moderna sobre vampiros. O texto acabou por vir a público também em 1819, numa tentativa de afastar os boatos de que “O Vampiro” teria sido escrito pelo poeta. De pouco valeu — o conto continuou a ser-lhe atribuído.
Neste Halloween, o Observador decidiu recuperar “O Vampiro” de John William Polidori, numa tradução de Pedro Miguel. A versão portuguesa foi publicada na coletânea Histórias de Vampiros, que inclui textos de Bram Stoker, Johann L. Tieck e do próprio Byron. O livro foi editado pela Relógio d’Água em 2008.
“O Vampiro”
de John William Polidori
Quis o acaso que, no meio dos divertimentos próprios de um Inverno londrino, tenha aparecido nas várias festas dos senhores da moda um certo aristocrata mais notável pelas suas singularidades do que pela sua posição social. Olhava para a alegria que o cercava como se não pudesse participar nela. Aparentemente, o riso frívolo dos belos atraía a sua atenção apenas para logo a seguir o sufocar com um olhar e lançar medo naqueles peitos onde imperava a leviandade. Os que experimentavam essa sensação de temor não sabiam explicar o que a originava: uns atribuíam-na aos mortiços olhos cinzentos que, ao fixarem o rosto de uma pessoa, pareciam não conseguir penetrá-lo num relance e rasgar caminho até aos mais secretos mecanismos do coração, antes pousando como um raio de chumbo e pesando sobre a pele que não logravam trespassar. As suas peculiaridades faziam com que fosse convidado para todas as casas; todos desejavam vê-lo, e os que estavam habituados a emoções violentas, e sentiam agora o peso do ennui, ficavam satisfeitos por encontrarem, na sua presença, alguma coisa capaz de lhes cativar a atenção. Apesar da lividez do seu rosto, que nunca ganhava cor mais quente, fosse pelo rubor da modéstia ou pela emoção forte da paixão (embora a sua forma e os seus contornos fossem belos), muitas das caçadoras de notoriedade tentavam conquistar os seus galanteios ou, pelo menos, alguns sinais do que poderiam classificar como afecto: Lady Mercer, que desde o seu casamento tinha sido objecto do escárnio de todos os monstros frequentadores de salões, atravessou-se no seu caminho e só lhe faltou vestir-se de saltimbanco para atrair a sua atenção — mas em vão: quando parou à frente dele, e apesar de os seus olhos estarem aparentemente fixos nos dela, pareciam mesmo assim alheados, frustando-lhe a própria impudência destemida e obrigando-a a abater em retirada. Mas se a vulgar adúltera não conseguia influenciar sequer o rumo do seu olhar, tal não significava que o sexo feminino lhe fosse indiferente: no entanto, a aparente cautela com que falava à esposa virtuosa e à filha inocente era tal, que poucos se apercebiam que, por vezes, ele se dirigia a mulheres. Tinha, contudo, fama de possuir uma língua cativante; e fosse por ela ultrapassar da sua personalidade singular, ou porque as emocionava a sua aparente aversão pelo vício, era visto com igual frequência, tanto com aquelas mulheres que baseiam o orgulho do seu sexo nas suas virtudes domésticas, como entre as que o maculam com os seus vícios.
Por esta época, chegou a Londres um jovem cavalheiro como apelido de Aubrey: tratava-se de um órfão que herdara, juntamente com a sua única irmã, uma grande fortuna dos pais que tinham morrido quando era ainda criança. Entregue a si mesmo pelos tutores, que consideravam seu dever cuidar-lhe somente da fortuna, enquanto abandonavam o encargo mais importante da sua mente ao cuidado de subalternos mercenários, cultivou mais a imaginação do que o discernimento. Era assim vítima daquele elevado sentimento romântico de honra e sinceridade que todos os dias traz a ruína a tantos aprendizes de chapeleiro. Acreditava que todos simpatizavam com a virtude, e que o vício era enviado pela Providência apenas pelo seu efeito pitoresco no cenário, como vemos nos romances: pensava que a miséria de uma cabana consistia apenas em nela se vestirem roupas que, sendo tão quentes como as outras, mais bem se adaptavam à visão do pintor, devido às suas pregas irregulares e aos seus vários remendos coloridos. Pensava, em suma, que os sonhos dos poetas eram as realidades da vida. Era belo, franco e rico e por tais razões, quando entrava nos círculos festivos, muitas eram as mães que o cercavam, rivalizando entre si para ver qual descrevia com menos verdade as suas lânguidas ou turbulentas favoritas: as filhas, de igual modo, pelo iluminar dos seus semblantes quando se aproximava, e pelo lampejar dos seus olhos, quando descerrava os lábios, depressa lhe incutiram falsas ideias acerca dos seus talentos e do seu mérito. Afeiçoado como era ao devaneio das suas horas solitárias, alarmou-se ao descobrir que, com excepção das velas de sebo e das velas de cera que bruxuleavam, não devido à presença de um fantasma, mas sim pela necessidade de serem espevitadas, não havia qualquer fundamento na vida real para nenhum daqueles acervos de agradáveis quadros e descrições contidos nos volumes em que baseara a sua educação. Encontrando, todavia, alguma compensação na vaidade gratificada, preparava-se para renunciar aos seus sonhos quando o extraordinário ser que acima descrevemos lhe contrariou os planos.
Começou a vigiá-lo, e a própria impossibilidade de formar uma ideia do carácter de um homem inteiramente absorto em si mesmo, e que poucos outros sinais dava da sua observação de objectos exteriores para além do assentimento tácito da sua existência, implícito na abstenção de contacto com eles, permitiu à sua imaginação conceber todas as coisas capazes de lisonjear a sua tendência para as ideias extravagantes; e não demorou a transformar essa pessoa no herói de um romance e a decidir observar o fruto do seu devaneio, em vez do homem que tinha diante de si. Travou conhecimento com ele, foi cortês e de tal modo fez notar por ele que a sua presença era sempre reconhecida. Pouco a pouco, soube que os negócios de Lord Ruthven se haviam complicado e depressa descobriu, pelos sinais de preparativos em ____ Street, que ele se preparava para viajar. Desejoso de conseguir informação a respeito da singular personagem, que até então apenas aguçara a sua curiosidade, deu a entender aos seus tutores ser chegado o momento de empreender aquela viagem que, há muitas gerações, tem sido considerada necessária para habilitar os jovens a dar alguns passos rápidos no caminho da depravação, a fim de os pôr em pé de igualdade com os mais velhos e evitar que pareçam caídos dos céus, naquelas ocasiões em que são mencionadas intrigas escandalosas, como objectos de gracejo ou elogio, consoante o grau de habilidade demonstrado na condução das mesmas. Eles consentiram, e Aubrey, que logo revelou as suas intenções a Lord Ruthven, ficou surpreendido ao receber dele um convite para o acompanhar. Lisonjeado por semelhante demonstração de apreço da parte de quem, aparentemente, nada tinha em comum com outros homens, aceitou de bom grado e, volvidos poucos dias, tinham transposto as águas circundantes.
Aubrey não tivera nenhuma oportunidade até então de estudar o carácter de Lord Ruthven, e descobria agora que, embora um
maior número dos seus actos fosse exposto aos seus olhos, os resultados ofereciam conclusões discordantes dos motivos aparentes da sua conduta. O seu companheiro era pródigo na liberalidade: o ocioso, o vagabundo e o mendigo recebiam das suas mãos mais do que o suficiente para aliviar as suas carências imediatas. Mas Aubrey não pôde deixar de notar que não era aos virtuosos, reduzidos à indigência pelos infortúnios que até a virtude acompanham, que concedia as suas esmolas; estes eram mandados embora da sua porta com sarcasmos mal disfarçados; mas quando os dissolutos iam pedir alguma coisa, não para aliviar as suas carências, mas sim para chafurdar na luxúria, ou para se afundarem ainda mais na iniquidade, partiam com avultada caridade. Atribuía isso, no entanto, à maior ousadia dos perversos, que geralmente prevalece sobre a vergonha reservada dos indigentes virtuosos. Havia um pormenor na caridade de Sua Senhoria que estava ainda mais marcado na sua mente: todos aqueles a quem era concedida descobriam inevitavelmente pesar sobre ela uma maldição, pois ou iam parar ao cadafalso, ou mergulhavam na mais baixa e mais abjecta miséria. Em Bruxelas e noutras cidades pelas quais passaram, Aubrey ficou surpreendido com a aparente abstracção mental com que o seu companheiro procurava os antros da depravação que estavam em moda, onde mergulhava por completo no espírito da mesa de faraó: apostava e era sempre bem-sucedido, excepto quando tinha como adversário o batoteiro conhecido, pois então perdia mais ainda do que ganhava, mas fazia-o sempre com o mesmo rosto inalterável com que geralmente observava quem o rodeava. Tal já não sucedia, porém, quando defrontava o jovem principiante temerário ou o desafortunado chefe de uma família numerosa; nestas ocasiões o seu próprio desejo parecia a lei da fortuna: punha de lado a abstracção e os seus olhos cintilavam com mais fogo que os do gato enquanto se entretém com o rato moribundo. Em todas as cidades, deixava o antes opulento jovem, arrancado do círculo que adornara, amaldiçoando na solidão de um cárcere o destino que o colocara ao alcance daquele demónio; ao mesmo tempo, quantos pais assistiam, desvairados, aos olhares eloquentes de crianças famintas e silenciosas, sem terem já uma ínfima moeda da sua imensa fortuna anterior com que comprar sequer o suficiente para lhes saciar a fome presente. No entanto, não retirava dinheiro algum da mesa de jogo, mas imediatamente perdia, para ruína de muitos, o último florim acabado de arrancar das mãos convulsas dos inocentes: seria talvez o resultado de um certo grau de perícia, considerável já, mas incapaz ainda de combater a astúcia dos mais experientes. Aubrey desejava muitas vezes expor isso ao seu amigo, e rogar-lhe que renunciasse àquela caridade e àquele prazer que acabavam por se transformar na ruína de todos, e também não revertiam em seu próprio benefício; mas ia adiando, pois a cada dia esperava que o seu amigo lhe desse uma oportunidade para lhe falar franca e abertamente — o que, porém, nunca aconteceu. Lord Ruthven, na sua carruagem ou no meio dos diversos cenários selvagens e acolhedores da natureza, era sempre o mesmo: os seus olhos falavam menos do que os seus lábios; e embora Aubrey estivesse perto do objecto da sua curiosidade, não obtinha dele maior recompensa do que a excitação constante de inutilmente desejar decifrar aquele mistério que, na sua exaltada imaginação, começava a assumir a aparência de algo sobrenatural.
Em breve chegaram a Roma, e, durante algum tempo, Aubrey perdeu de vista o seu companheiro; deixava-o diariamente na companhia do círculo matinal de uma condessa italiana, enquanto ele ia em busca dos monumentos de mais uma cidade quase deserta. Estava assim ocupado quando chegaram cartas de Inglaterra, que ele abriu com ansiosa impaciência. A primeira era da irmã e só respirava afeição; as outras eram dos seus tutores e encheram-no de espanto. Se antes entrara na sua imaginação que uma força maligna habitava no seu companheiro de viagem, estas cartas pareciam agora dar-lhe motivo quase suficiente para aceitar essa convicção. Os seus tutores insistiam para que deixasse imediatamente o amigo, cujo carácter, afirmavam, era terrivelmente perverso, pois a posse de irresistíveis poderes de sedução tornava os seus hábitos licenciosos ainda mais arriscados para a sociedade. Fora descoberto que o seu desprezo pela adúltera não tivera origem na aversão pelo carácter dela, mas que ele exigira, para intensificar o seu prazer, que a sua vítima, a sócia da sua culpa, fosse lançada do cume da virtude impoluta para o mais fundo abismo da infâmia e da degradação: em suma, que todas aquelas mulheres que procurara, aparentemente por causa da sua virtude, haviam, desde a sua partida, deposto a máscara, e não tinham tido escrúpulos de expor aos olhares públicos toda a deformidade dos seus vícios.
Aubrey resolveu deixar aquele homem cujo carácter não mostrara ainda um único ponto favorável em que pudesse repousar os olhos. Decidiu inventar um pretexto plausível qualquer para o abandonar de vez, propondo-se, entretanto, observá-lo com mais atenção e não deixar escapar o mínimo pormenor. Entrou no mesmo círculo e não tardou a perceber que Sua Senhoria arquitectava aproveitar-se da inexperiência da filha da condessa cuja casa frequentava com grande assiduidade. Em Itália, são raras as possibilidades de encontro em sociedade com uma mulher solteira, o que o obrigava a prosseguir os seus intentos em segredo; mas os olhos de Aubrey seguiam todos os seus tortuosos passos e depressa descobriram que fora marcado um encontro que muito provavelmente culminaria na perdição de uma rapariga inocente, ainda que inconsciente. Sem perda de tempo, entrou nos aposentos de Lord Ruthven e perguntou-lhe abruptamente quais eram as suas intenções a respeito da referida senhora, informando-o, de caminho, estar ao corrente de que ia encontrar-se com ela naquela mesma noite. Respondeu-lhe Lord Ruthven serem as suas intenções as que, supunha, todos teriam em semelhante ocasião, e ao ser pressionado sobre se tencionava casar com ela, limitou-se a rir. Aubrey retirou-se e, escrevendo de imediato um bilhete em que comunicava que, a partir daquele momento, era forçado a deixar de acompanhar Sua Senhoria no resto da viagem combinada, ordenou ao seu criado que procurasse outro alojamento. Em seguida visitou a mãe da senhora em questão e contou-lhe tudo quanto sabia, não apenas a respeito da sua filha, mas também do carácter de Sua Senhoria. O encontro foi evitado. No dia seguinte, Lord Ruthven mandou simplesmente o criado comunicar a sua completa concordância com uma separação, mas sem deixar transparecer qualquer suspeita de que os seus planos tinham sido frustrados por interferência de Aubrey.
Depois de deixar Roma, Aubrey dirigiu-se para a Grécia e, atravessando a península, em breve chegou a Atenas. Fixou então residência em casa de um grego e não tardou a ocupar-se na procura dos desvanecidos registos de antiga glória em monumentos que, aparentemente envergonhados por narrarem os feitos de homens livres somente perante escravos, se tinham escondido debaixo do solo protector ou de líquenes policromos. Sob o mesmo telhado que o albergava existia um ser tão belo e delicado que poderia ter servido de modelo a um pintor desejoso de retratar na tela a esperança prometida aos fiéis no paraíso de Maomé, não fora denunciarem os seus olhos um espírito demasiado intenso para permitir a alguém pensar que pudesse pertencer aos que não tinham alma. Enquanto dançava na planície ou caminhava pela encosta da montanha, julgar-se-ia a gazela símbolo medíocre das suas formosuras: pois quem trocaria os seus olhos, que eram os da natureza animada, pelo olhar sonolento e voluptuoso do animal, apropriado apenas para o gosto do epicurista? Os passos leves de Ianthe acompanhavam com frequência Aubrey na procura de antiguidades, e não era raro a inconsciente rapariga, empenhada a perseguir uma borboleta-de-caxemira, revelar toda a beleza das suas formas, como se flutuasse no vento, ao ávido olhar dele, que esquecia então as letras acabadas de decifrar numa placa quase apagada, perdido na contemplação da sua figura de sílfide. Era também frequente as suas tranças caírem, enquanto ela se movia, lesta, mostrando à luz de um raio de sol tonalidades tão delicadamente luminosas e cambiantes tão fugazes que bem poderiam justificar o alheamento do arqueólogo, que deixava escapar do pensamento o mesmo objecto que antes considerara de importância vital para a interpretação correcta de um trecho de Pausânias. Mas para quê tentar descrever encantos que todos sentem, mas ninguém pode avaliar? Era inocência, juventude e beleza, sem a mácula dos salões repletos e dos bailes asfixiantes. Enquanto ele desenhava aqueles despojos dos quais gostava de se lembrar suas horas futuras, ela parava a observar os efeitos mágicos do seu lápis a traçar as paisagens da sua terra natal; descrevia-lhe depois a dança de roda na planície aberta, pintava para ele, com todas as fulgentes cores da memória juvenil, a pompa nupcial que se lembrava de ter visto na infância, e depois, mudando para assuntos que tinham claramente deixado uma marca mais funda no seu espírito, contava-lhe todas as histórias sobrenaturais que ouvira da sua ama. A sua seriedade e a aparente crença no que narrava despertavam o interesse de Aubrey, e muitas vezes, enquanto ela lhe contava a história do vampiro vivo, que passara anos entre os seus amigos e familiares mais queridos, a cada ano, obrigado, a alimentar-se da vida de uma mulher encantadora para prolongar a sua existência nos meses seguintes, o sangue de Aubrey gelava enquanto tentava, rindo, desviar-lhe o pensamento de tão ociosas e horríveis fantasias. Mas Ianthe citou-lhe os nomes de anciãos que tinham acabado por descobrir um a viver entre eles, depois de vários parentes chegados e filhos seus terem sido encontrados com a marca do apetite do demónio, e achando-o tão incrédulo rogou-lhe que acreditasse nela, pois, segundo ouvira dizer, quantos ousavam duvidar da sua existência recebiam sempre alguma prova que os obrigava, com
mágoa e dor profunda, a confessar que era verdade. Relatou-lhe em pormenor o aspecto tradicional de tais monstros, e o horror
dele aumentou ao ouvir uma descrição muito exacta de Lord Ruthven; persistiu contudo em persuadi-la de que não existia verdade alguma nos seus temores, embora ao mesmo tempo se tenha questionado sobre as muitas coincidências, todas elas tendentes a despertar uma crença no poder sobrenatural de Lord Ruthven.
Aubrey começou a afeiçoar-se cada vez mais a Ianthe. A sua inocência, tão contrastante com todas as falsas virtudes das mulheres entre as quais procurara o seu ideal de romance, conquistou-lhe o coração, e embora escarnecesse da ideia de um jovem de hábitos ingleses casar com uma rapariga grega sem instrução, mesmo assim dava consigo cada vez mais preso àquela forma de quase fada que tinha diante de si. Às vezes forçava-se a estar longe dela e, arquitectando um plano para alguma investigação arqueológica, partia decidido a não regressar enquanto não alcançasse o seu objectivo; mas achava sempre impossível concentrar a atenção nas ruínas que o cercavam, enquanto na sua mente guardava uma imagem que parecia ser a única e legítima dona dos seus pensamentos. Ianthe não tinha consciência do seu amor e nunca deixava de ser a mesma criatura franca e infantil que ele conhecera da primeira vez. Parecia sempre separar-se dele com relutância, mas isso era porque deixava de ter com quem pudesse visitar os seus lugares preferidos, enquanto o seu protector se ocupava a desenhar ou pôr a descoberto algum fragmento que, por enquanto, escapara à mão destruidora do tempo. Consultou os pais dela sobre o assunto dos Vampiros, e ambos, na presença de várias pessoas, afirmaram a sua existência, pálidos de horror só de ouvirem esse nome. Pouco depois, Aubrey resolveu fazer uma das suas excursões, que o ocuparia durante algumas horas. Quando ouviram o nome do lugar, todos logo lhe suplicaram que não regressasse à noite, pois teria de atravessar uma floresta onde nenhum grego jamais iria, depois de findo o dia, fossem quais fossem as circunstâncias. Descreveram-lha como o covil dos vampiros nas suas orgias nocturnas, e enumeraram os mais terríveis males que recaíam sobre quem ousasse atravessar o seu caminho. Aubrey fez pouco caso desses avisos e tentou afastá-los do pensamento e rir. Mas quando os viu estremecer da sua ousadia ao troçar assim de uma força infernal superior, cujo simples nome bastava aparentemente para lhes gelar o sangue, ficou silencioso.
Na manhã seguinte, partiu sozinho para a sua excursão. Ficou surpreendido com o semblante melancólico do seu anfitrião, e pesaroso por verificar que as suas palavras, zombando da crença naqueles horríveis demónios, lhes tinham inspirado tamanho terror. Quando estava prestes a afastar-se, Ianthe veio ao lado do seu cavalo e rogou-lhe ansiosamente que regressasse antes que a noite permitisse que o poder daqueles seres actuasse. Ele prometeu. De tal modo se embrenhou, no entanto, na sua investigação, que não se deu conta de que a luz do sol findaria em breve, nem de que no horizonte havia uma daquelas manchas que, nos climas mais quentes, num instante se transformam numa massa tremenda e descarregam toda a sua fúria na sequiosa região. Acabou, finalmente, por montar a cavalo, decidido a compensar o atraso com a velocidade: mas era tarde demais. O crepúsculo, nestes climas meridionais, quase não existe, e mal o Sol se põe, a noite começa. Antes que Aubrey tivesse podido avançar muito, a força da tempestade estava já sobre ele — os seus ribombantes trovões sucediam-se quase sem uma pausa e a chuva grossa e densa abrira caminho, à força, pela folhagem das copas das árvores, enquanto os relâmpagos azuis em forquilha pareciam cair e silvar aos seus próprios pés. De súbito, o seu cavalo assustou-se e disparou com incrível rapidez pelo meio da emaranhada floresta. Por fim, vencido pela fadiga, o animal parou e ele descobriu, graças aos clarões dos relâmpagos, que se encontrava nas imediações de uma choupana que mal sobressaía dos montes de folhas mortas e do matagal que a cercavam. Desmontou e aproximou-se, na esperança de encontrar alguém que o guiasse até à cidade ou de, pelo menos, obter abrigo da fúria da tempestade. Os trovões momentaneamente silenciosos permitiram-lhe ouvir, ao acercar-se, os aflitivos gritos agudos de uma mulher, misturados com a zombaria abafada e exultante de uma gargalhada, que se prolongava num som quase ininterrupto. Ficou assustado. Mas, impelido pelo trovão que de novo ribombava sobre a sua cabeça, abriu, com um esforço repentino, a porta da cabana. Encontrou-se numa escuridão absoluta; o som, porém, guiou-o. A sua chegada passou aparentemente despercebida, pois, apesar dos seus chamamentos, os ruídos continuaram sem que lhe respondessem. Tocou em alguém, a quem imediatamente se segurou. «Enganado de novo!», gritou uma voz, à qual se seguiu uma gargalhada alta, e ele sentiu-se agarrado por um ser cuja força lhe pareceu sobre-humana. Determinado a vender a vida tão cara quanto pudesse, lutou; mas em vão: foi levantado em peso e arremessado ao chão com toda a força. O inimigo atirou-se para cima dele e, ajoelhando sobre o seu peito, colocara as mãos à roda do seu pescoço quando o clarão de muitos archotes, penetrando pelo buraco que de dia deixava entrar a luz, o interrompeu. Levantou-se de imediato e, abandonando a presa, irrompeu porta fora. Um instante depois, o estalar dos ramos, que ele provocara ao abrir caminho pela floresta deixou de se ouvir. A tempestade acalmara e Aubrey, incapaz de se mexer, não tardou a ser ouvido pelos que se encontravam no exterior. Entraram. A luz dos archotes alastrou pelas paredes de barro e pelo telhado de colmo completamente coberto de flocos de fuligem. Por vontade de Aubrey, procuraram aquela cujos gritos o tinham atraído, e ele achou-se novamente nas trevas. Mas qual não foi o seu horror quando a luz dos archotes voltou e viu a forma etérea da sua bela guia ser trazida, agora como um cadáver inerte. Cerrou os olhos, na esperança de se tratar apenas de uma visão nascida da sua transtornada imaginação; mas de novo viu a mesma forma, estendida a seu lado, quando os descerrou. Não havia cor nas suas faces, nem sequer nos seus lábios; havia contudo, no seu rosto, uma quietude que parecia quase tão cativante como a vida que outrora lá habitara: tinha sangue no pescoço e no colo, e na sua garganta as marcas dos dentes que tinham aberto a veia — foi para isso que os homens apontaram, gritando, tomados todos eles de horror: «Um Vampiro! Um Vampiro!» Construíram rapidamente uma padiola, na qual Aubrey foi estendido ao lado daquela que, nos últimos tempos, fora para ele o objecto de tantas tão radiosas e místicas visões, caída agora com a flor da vida que morrera dentro dela. Não sabia no que pensava: a sua mente estava entorpecida e evitava a reflexão, preferindo refugiar-se no vazio; segurava quase inconscientemente um punhal desembainhado de formato invulgar, que fora encontrado na cabana. Reuniram-se-lhes pouco depois vários grupos que se tinham empenhado na procura daquela cuja falta uma mãe sentira. Os seus brados lamentosos, ao aproximarem-se da cidade, foram para os pais dela arautos de uma terrível tragédia. Descrever a sua dor seria impossível; mas quando compreenderam a causa da morte da filha, olharam para Aubrey e apontaram para o cadáver. Ficaram inconsoláveis; morreram ambos com o coração despedaçado.
Caído à cama, Aubrey foi atacado por uma febre muito violenta e frequentemente delirava. Nesses momentos, chamava por Lord Ruthven e por Ianthe: por qualquer inexplicável associação, parecia suplicar ao seu ex-companheiro que poupasse o ser que amava. Noutras ocasiões, lançava maldições contra ele e amaldiçoava-o como o destruidor dela. Quis o acaso que Lord Ruthven chegasse a Atenas nessa altura e, tomando por qualquer motivo conhecimento do estado de Aubrey, logo se instalou na mesma casa e o velou constantemente. Quando se refez do delírio, Aubrey ficou horrorizado e assustado ao ver aquele cuja imagem associava agora com a de um vampiro; mas Lord Ruthven, com palavras bondosas, quase sugerindo arrependimento pelo erro que causara a sua separação, e mais ainda com as atenções, a preocupação e o cuidado que demonstrava, em breve o reconciliou com a sua presença. Parecia muito mudado, dir-se-ia não ser já aquele ser apático que tanto surpreendera Aubrey; mas à medida que a convalescença deste progredia, o outro regressava pouco a pouco ao mesmo estado de espírito, e Aubrey deixou de encontrar qualquer diferença entre ele e o homem anterior, a não ser quando, às vezes, surpreendia o seu olhar atentamente fixo nele, com um sorriso de malévola exultação nos lábios: não sabia porquê, mas esse sorriso perseguia-o. Durante a última fase da recuperação do enfermo, Lord Ruthven ocupava-se aparentemente em observar as ondas sem maré provocadas pela brisa refrescante, ou em acompanhar o movimento daqueles círculos que, como o nosso mundo, giravam à volta do estático Sol — na realidade, parecia ser seu desejo evitar os olhos de todos.
O choque deixara a mente de Aubrey muito debilitada, e a flexibilidade de espírito que antes o distinguira dir-se-ia tê-lo abandonado para sempre. Tornara-se agora tão amante da solidão e do silêncio como Lord Ruthven, mas por muito que desejasse a primeira, o seu espírito não conseguia encontrá-la nas imediações de Atenas: se a procurava entre as ruínas que anteriormente frequentara, a forma de Ianthe erguia-se a seu lado; se a procurava nas florestas, os seus passos leves pareciam vaguear no meio da vegetação, procurando uma simples violeta, e se acaso se virava de repente, apresentavam-se à sua desvairada imaginação o rosto pálido e a garganta ferida da jovem, com um doce sorriso nos lábios. Resolveu deixar esses lugares onde tudo despertava na sua mente tão amargas associações. Propôs a Lord Ruthven, ao qual se sentia ligado pelos solícitos cuidados que lhe dispensara durante a sua doença, que visitassem as regiões da Grécia que nenhum deles ainda vira. Viajaram em todas as direcções e procuraram todos os pontos a que podia estar ligada alguma recordação: mas embora se apressassem assim de lugar para lugar, pareciam não prestar atenção ao que viam. Ouviam falar muito de ladrões, mas com o tempo começaram a dar pouca importância a esses relatos, que imaginavam tratar-se apenas de invenção de indivíduos interessados em estimular a generosidade daqueles que defendiam de pretensos perigos. Em consequência de assim desprezarem os conselhos dos habitantes, em certa ocasião viajaram apenas com alguns guardas, mais para lhes servirem de guias do que como defesa. Ao entrarem, contudo, num estreito desfiladeiro, em cujo fundo se rasgava o leito de uma torrente e havia grandes massas de rochas caídas dos precipícios vizinhos, tiveram motivos para se arrepender da sua negligência; pois mal todos os membros do grupo se encontraram na estreita passagem, foram surpreendidos pelo silvar de balas rente às suas cabeças, e pelos ecos da detonação de várias armas de fogo. Num instante, os guardas desapareceram e, escondendo-se atrás de rochas, começaram a disparar na direcção dos tiros. Seguindo o seu exemplo, Lord Ruthven e Aubrey abrigaram-se por instantes atrás da curva protectora do desfiladeiro. Mas, envergonhados por serem assim detidos por um inimigo que, com gritos insultuosos, os desafiava a avançar, e achando-se expostos a uma morte sem resistência se algum dos assaltantes subisse acima deles e os apanhasse pela retaguarda, logo decidiram lançar-se para a frente ao encontro do adversário. Mal deixaram, contudo, o abrigo da rocha, Lord Ruthven foi atingido por um tiro num ombro que o atirou por terra. Aubrey correu em seu socorro e, deixando de pensar na luta e no seu próprio perigo, em breve se viu cercado por todos os lados pelos rostos dos ladrões. Os seus guardas, vendo Lord Ruthven ser atingido, tinham de imediato levantado os braços, em rendição.
Mediante promessas de grande recompensa, Aubrey não teve dificuldade em convencê-los a transportar o seu amigo ferido para uma choupana próxima, e, depois de concordar com o pagamento de um resgate, não voltou a ser incomodado pela sua presença: os ladrões contentaram-se em guardar a entrada, até um deles voltar com a soma prometida, para a qual lhe fora dada uma ordem de pagamento. As forças de Lord Ruthven esvaíram-se rapidamente; em dois dias sobreveio a gangrena e a morte parecia avançar a passos largos. A sua conduta e o seu aspecto não tinham mudado, parecia tão inconsciente da dor como dos objectos que o cercavam; mas perto do fim da última noite o seu pensamento tornou-se aparentemente irrequieto e os seus olhos fixavam-se com frequência em Aubrey, que se sentiu levado a oferecer a sua ajuda com uma sinceridade maior do que a habitual. «Ajude-me! Pode salvar-me… pode fazer mais do que isso… não me refiro a salvar-me a vida, importa-me tão pouco a morte da minha existência como a do dia que passa; mas pode salvar a minha honra, a honra do seu amigo.» «Como? Diga-me como! Eu farei seja o que for», respondeu Aubrey. «Preciso de pouco… a minha vida esvai-se rapidamente… não posso explicar todas as coisas… mas se ocultar tudo o que sabe de mim, a minha honra ficará limpa de mácula na boca do mundo… e se a minha morte for ignorada durante algum tempo em Inglaterra, eu… eu…» «Não será conhecida.» «Jure!», gritou o moribundo, erguendo-se com exultante violência. «Jure por tudo quanto a sua alma venera, por tudo quanto a sua natureza teme, jure que durante um ano e um dia não partilhará o seu conhecimento dos meus crimes nem da minha morte com nenhum ser vivo, seja de que modo for, aconteça o que acontecer, ou veja o que vir.» Os seus olhos pareciam querer saltar das órbitas. «Juro!», respondeu Aubrey, e ele começou a rir, deixou-se cair na almofada e não respirou mais.
Aubrey retirou-se para descansar, mas não conseguia dormir. As muitas circunstâncias relacionadas com o seu conhecimento
daquele homem vinham-lhe ao pensamento, sem saber porquê, e quando recordava o que jurara apoderava-se dele um calafrio
gelado, como o pressentimento de que o esperava alguma coisa horrível. Quando se levantou, de manhã cedo, e se preparava
para entrar na choupana onde deixara o cadáver, um dos ladrões veio ao seu encontro e informou-o de que ele já ali não estava, pois fora levado por ele próprio e pelos camaradas, quando Aubrey se retirara, para o cume de um monte vizinho, no cumprimento da promessa que tinham feito a Sua Senhoria de que o corpo seria exposto ao primeiro raio de luar que brilhasse depois da sua morte. Aubrey ficou estupefacto e, levando consigo alguns dos homens, resolveu ir sepultá-lo no lugar onde se encontrava. Mas, chegado ao cume do monte, não viu quaisquer vestígios nem do cadáver nem das roupas, embora os ladrões jurassem indicar a rocha onde tinham deixado o corpo. Durante algum tempo o seu pensamento perdeu-se em conjecturas, mas
por fim regressou, convencido de que eles tinham enterrado o corpo para ficarem com as roupas.
Cansado de um país onde conhecera infortúnios tão terríveis, e onde, aparentemente, tudo conspirava para agravar a supersticiosa melancolia que se apoderara da sua mente, resolveu deixá-lo, e em breve chegou a Esmirna. Enquanto esperava por um navio que o transportasse para Otranto ou Nápoles, ocupou-se a arrumar os objectos pertencentes a Lord Ruthven que tinha consigo. Entre outras coisas, havia um estojo contendo diversas armas ofensivas mais ou menos adaptadas para assegurar a morte da vítima. Havia vários punhais e iatagãs. Enquanto os rodeava, examinando as suas formas curiosas, qual não foi a sua surpresa ao encontrar uma bainha aparentemente ornamentada ao do mesmo estilo do punhal descoberto na fatal cabana. Estremeceu. Apressando-se a procurar confirmação, foi buscar a arma, e pode imaginar-se o seu horror ao descobrir que correspondia, apesar da sua forma peculiar, à bainha que tinha na mão. Os seus olhos não pareciam precisar de mais nenhuma certeza — era como se estivessem presos ao punhal —, mas mesmo assim desejava não acreditar. Contudo, a forma especial, as mesmas tonalidades diversas no punho e na bainha, o igual esplendor de um e da outra, não deixavam espaço para qualquer dúvida. Havia também pingos de sangue em ambas as coisas.
Partiu de Esmirna e, no regresso a casa, quando passou por Roma, as suas primeiras indagações foram acerca da senhora que tentara arrebatar às artes de sedução de Lord Ruthven. Encontrou os seus pais angustiados, perdida a fortuna e sem terem notícias da filha desde a partida de Sua Senhoria. A sanidade mental de Aubrey quase cedeu sob o peso de tantos horrores repetidos; receou que a senhora em questão tivesse sido vítima do destruidor de Ianthe. Tornou-se taciturno e silencioso, e a sua única ocupação consistiu em ordenar velocidade aos postilhões, como se fosse salvar a vida de alguém que lhe era querido. Chegado a Calais, uma brisa que parecia obedecer à sua vontade depressa o transportou para as costas inglesas. Dirigiu-se rapidamente para a mansão dos seus antepassados onde, por momentos, pareceu perder, entre os abraços e as carícias da irmã, toda a memória do passado. Se, antes, com as suas carícias infantis, ela conquistara o seu afecto, agora que a mulher despontava tornou-se ainda mais cativante como companheira.
Miss Aubrey não possuía aquela sedutora graça que conquista o olhar e o aplauso dos frequentadores de recepções formais. Não tinha nenhum daquele esplendor superficial que só existe na atmosfera acalorada de uma casa cheia de gente. Os seus olhos azuis nunca se iluminavam por uma frivolidade do espírito que existia atrás deles. Havia neles um encanto melancólico que não parecia emanar do infortúnio, mas sim de algum sentimento íntimo, que dir-se-ia denunciar uma alma consciente da existência de um reino mais luminoso. O seu andar não era aquele passo leve que se desvia onde uma borboleta ou uma cor o atraem: era sereno e pensativo. Quando estava só, o seu rosto nunca se iluminava pelo sorriso da alegria; mas quando o irmão lhe murmurava o seu afecto e, na sua presença, esquecia aquelas mágoas que ela sabia destruírem o seu repouso, quem trocaria o seu sorriso pelo de uma mulher voluptuosa? Dir-se-ia que aqueles olhos, aquele rosto, se recreavam em tais momentos à luz do seu próprio sol nativo. Tinha apenas dezoito anos e ainda não fora apresentada à sociedade, por terem os seus tutores considerado mais apropriado adiar essa apresentação até ao regresso do irmão do continente, já que ele poderia então ser o seu protector. Foi, pois, decidido que a recepção seguinte, que se aproximava rapidamente, seria a ocasião escolhida para a sua entrada na «cena activa». Aubrey teria preferido ficar na mansão dos seus antepassados, alimentando-se da melancolia que o acabrunhava. Não conseguia sentir nenhum interesse pelas frivolidades de desconhecidos em voga, quando o seu espírito tinha sido tão dilacerado pelos acontecimentos que presenciara; mas resolveu sacrificar o seu próprio bem-estar à protecção da irmã. Não tardaram a chegar à cidade e a preparar-se para o dia seguinte, para o qual fora anunciada uma recepção.
A quantidade de gente era excessiva — não havia uma recepção há muito tempo, e todos quantos estavam ansiosos por se aquecer ao sol do sorriso da realeza para lá se dirigiram. Aubrey compareceu com a irmã. Encontrava-se parado sozinho, a um canto, alheio a tudo quanto o rodeava e entregue à recordação de que fora naquele mesmo lugar que tinha visto pela primeira vez Lord Ruthven, quando se sentiu subitamente agarrado por um braço e uma voz, que para seu tormento reconheceu demasiado bem, soou ao seu ouvido: «Lembre-se do seu juramento.» Mal teve coragem para se virar, receoso de ver um espectro que o fulminaria, quando descobriu a pouca distância a mesma figura que atraíra a sua atenção na primeira vez que frequentara a sociedade. Continuou a olhar até que, negando-se quase as pernas a suportar-lhe o peso, foi obrigado a tomar o braço de um amigo e, forçando uma passagem por entre a multidão, se lançou para dentro da sua carruagem e foi transportado para casa. Andou de um lado para o outro, com passos apressados, e apertou a cabeça com as mãos, como se receasse que os pensamentos lhe estivessem a saltar do cérebro. Lord Ruthven de novo diante dele… o desenrolar das circunstâncias numa sequência assustadora… o punhal… o seu juramento. Levantou-se, não podia acreditar que fosse possível — o ressuscitar dos mortos! Pensou que tinha sido a sua imaginação que evocara a imagem em que a sua mente se demorava. Era impossível que tivesse sido real. Resolveu, portanto, frequentar de novo a sociedade; pois embora tentasse indagar a respeito de Lord Ruthven, o nome ficava suspenso dos seus lábios, e não conseguia pronunciá-lo e obter informações. Foi algumas noites depois, com a irmã, a um baile de um amigo próximo. Deixando-a sob a protecção de uma mãe de família, retirou-se para um recanto, onde se abandonou aos seus vorazes pensamentos. Dando-se conta, finalmente, de que muitos estavam a partir, fez um esforço e, entrando noutra sala, encontrou a irmã rodeada por diversos homens, aparentemente em animada conversa. Tentava passar e aproximar-se dela quando um deles, a quem pedira que se afastasse, se virou e lhe mostrou as feições que mais detestava. Saltou para a frente, agarrou o braço da irmã e, com passos apressados, conduziu-a na direcção da rua. Chegado à porta, viu a passagem obstruída pela turba de criados que esperavam os seus amos, e enquanto se ocupava a abrir caminho pelo meio deles, ouviu de novo aquela voz murmurar perto de si: «Lembre-se do seu juramento!» Não ousou voltar-se; apressou a irmã e pouco depois chegaram a casa.
Aubrey quase enlouqueceu. Se, antes, a sua mente estivera absorta num assunto, ainda mais o estava agora que a certeza de
que o monstro vivia de novo oprimia os seus pensamentos! As atenções da irmã passavam-lhe despercebidas, e em vão ela lhe
suplicou que lhe explicasse o que causara o seu tão abrupto comportamento. Limitou-se a proferir algumas palavras que a aterrorizaram. Quanto mais pensava, mais confuso se sentia. O seu juramento assustava-o: teria de permitir que aquele monstro
vagueasse, exalando destruição, entre todos aqueles que lhe eram queridos, sem fazer nada para impedir o seu avanço? A sua própria irmã podia ter sido tocada por ele. Mas mesmo que quebrasse o juramento e revelasse as suas suspeitas, quem acreditaria nele? Pensou usar as suas próprias mãos para livrar o mundo de tal miserável; mas lembrou-se de que a morte já fora escarnecida. Permaneceu dias nesta disposição. Fechado no seu quarto, não via ninguém e comia apenas quando a irmã, lavada em lágrimas, lhe suplicava que, por amor dela, se alimentasse. Por fim, incapaz de suportar a inércia e a solidão, saiu de sua casa e vagueou de rua em rua, ansioso por fugir daquela imagem que o atormentava. O seu vestuário tornou-se descuidado, e vagueava, exposto com igual frequência tanto ao sol do meio-dia como à humidade da meia-noite. Estava irreconhecível; ao princípio regressava a casa com o anoitecer, mas por fim deitava-se para descansar onde quer que a fadiga lho ditasse. A irmã, preocupada com a sua segurança, contratou pessoas para o seguirem, mas elas eram rapidamente deixadas para trás por aquele que fugia de um perseguidor mais veloz do que qualquer outro: o pensamento. No entanto, a sua conduta mudou, de repente. Defrontado com a ideia repentina de que, com a sua ausência, deixava todos os seus amigos com um demónio no seu seio, sem terem conhecimento da sua presença, decidiu regressar à vida social e observá-lo de perto, inquieto por avisar, não obstante o seu juramento, todos aqueles de quem Lord Ruthven se aproximasse intimamente. Mas quando entrava numa sala, o seu aspecto abatido e desconfiado era tão impressionante, as suas tremuras interiores tão visíveis, que a irmã acabou por se sentir obrigada a rogar-lhe que se abstivesse de procurar, por ela, uma aquela companhia que o afectava tão fortemente. Quando, todavia, os conselhos se mostraram inúteis, os tutores acharam apropriado intervir e, temendo que a sua mente estivesse a ficar alienada,
consideraram ser mais do que tempo de reatar o encargo que lhes fora antes imposto pelos pais de Aubrey.
Desejosos de lhe poupar os agravos e sofrimentos com que se deparara diariamente nas suas vagueações, e de impedir que expusesse aos olhares públicos os sinais daquilo que consideravam ser loucura, contrataram um médico para residir em sua casa e cuidar dele constantemente. Aubrey mal parecia dar-se conta disso, a tal ponto a sua mente estava imersa num só assunto. A sua incoerência acabou por adquirir tais dimensões que foi confinado ao seu quarto. Aí permanecia dias e dias, incapaz de se levantar. Emagrecera muito, os seus olhos tinham adquirido um brilho vítreo, e o único sinal de afecto e memória que lhe restava mostrava-se apenas com a entrada da irmã: então estremecia, por vezes, e, agarrando-lhe as mãos com olhares que a afligiam profundamente, recomendava-lhe que não lhe tocasse. «Oh, não lhe toques, se tens algum amor por mim, não te aproximes dele!» Quando, porém, ela perguntava a quem se referia, a sua única resposta era, «É verdade, é verdade!», e de novo mergulhava num estado a que nem ela conseguia arrancá-lo. Isto durou muitos meses. Pouco a pouco, no entanto, com o correr do ano, as suas incoerências tornaram-se menos frequentes e a sua mente expulsou uma parte da melancolia, ao mesmo tempo que os seus tutores o surpreendiam, várias vezes ao dia, contando pelos dedos determinado número e depois sorrindo.
O prazo quase terminara quando, no último dia do ano, um dos seus tutores entrou no quarto e começou a falar com o médico da funesta circunstância que era encontrar-se Aubrey em tão triste situação, atendendo a que a sua irmã casaria no dia seguinte. A atenção de Aubrey ficou imediatamente alerta, e ele perguntou, ansioso, com quem. Satisfeitos com essa demonstração de regresso do intelecto, do qual haviam receado de que ele tivesse sido privado, mencionaram o nome do Conde de Marsden. Pensando que se tratava de um jovem conde que conhecera em sociedade, Aubrey pareceu satisfeito, e surpreendeu-os ainda mais ao exprimir a sua intenção de estar presente nos esponsais e o seu desejo de ver a irmã. Não lhe responderam, mas decorridos poucos minutos a irmã estava com ele. Pareceu de novo sensível à influência do seu encantador sorriso, pois apertou-a ao peito e beijou-lhe a face molhada de lágrimas, provocadas pelo pensamento de que o irmão estava novamente vivo para as emoções do afecto. Ele começou a falar com todo o seu entusiasmo antigo, e a felicitá-la por ir casar com uma pessoa tão distinta em condição social e educação. Nisto, porém, viu um medalhão no peito dela, e qual não foi o seu espanto quando, abrindo-o, deparou com o rosto do monstro que há tanto tempo influenciava a sua vida. Agarrou o retrato num acesso de raiva, atirou-o ao chão e pisou-o. Perguntando-lhe ela porque destruíra assim o retrato do seu futuro marido, pareceu não a compreender. Depois, apertando-lhe as mãos e olhando-a com uma expressão desvairada, pediu-lhe que jurasse que jamais casaria com aquele monstro, pois ele… Mas não conseguiu adiantar mais nada, foi como se aquela voz lhe ordenasse de novo que se lembrasse do seu juramento. Voltou-se de súbito, pensando que Lord Ruthven estava perto dele, mas não viu ninguém. Entretanto, os tutores e o médico, que tinham ouvido tudo e pensavam que se tratava apenas do regresso da sua doença, entraram e obrigaram-no a largar Miss Aubrey, a quem disseram que o deixasse. Ele ajoelhou-se diante deles, implorou, rogou-lhes que adiassem apenas um dia. Eles, atribuindo as suas palavras à loucura que imaginavam ter-se apoderado da sua mente, trataram de apaziguá-lo e retiraram-se.
Lord Ruthven fora lá a casa na manhã seguinte à recepção e não tinha sido recebido, tal como acontecera com todas as outras pessoas. Quando ouviu dizer que Aubrey não estava de boa saúde, compreendeu logo ser ele a causa disso; mas, ao saber que o julgavam demente, quase não conseguiu ocultar a sua exultação e o seu prazer daqueles de quem obtivera essa informação. Dirigiu-se sem demora a casa do seu antigo companheiro e, mercê de presença constante e de fingimento de grande afecto pelo irmão e interesse pela sua sorte, conquistou gradualmente a atenção de Miss Aubrey. Quem podia resistir a seu poder? A sua língua tinha perigos e trabalhos para contar — sabia falar de si próprio como de um indivíduo sem simpatia por qualquer ser desta terra sobrepovoada, a não ser por aquela a quem se dirigia, e dizer como, desde que a conhecera, a sua existência começara a parecer-lhe digna de ser vivida, quanto mais não fosse para que pudesse escutar o suave som da sua voz: em suma, soube usar tão bem a arte da serpente — ou então era essa a vontade do destino —, que conquistou a sua afeição. E tendo-lhe cabido, finalmente, o título do ramo mais antigo da família, obteve uma importante embaixada, o que serviu de pretexto para apressar o casamento (apesar do estado de insanidade mental do irmão dela), que se realizaria exactamente
na véspera da sua partida para o continente.
Quando o médico e os tutores o deixaram, Aubrey tentou subornar os criados, mas em vão. Pediu caneta e papel, que lhe foram dados, e escreveu uma carta à irmã, implorando-lhe que, se dava valor à sua própria felicidade, à sua própria honra e à daqueles que se encontravam já na sepultura, mas que outrora a tinham apertado nos braços como a sua esperança e a esperança da sua casa, adiasse, nem que fosse por algumas horas, apenas, aquele casamento sobre o qual profetizava as mais negras maldições. Os criados prometeram que entregariam a carta, mas deram-na ao médico, o qual achou preferível não afligir mais o espírito de Miss Aubrey com o que considerava serem os delírios de um louco. A noite passou sem repouso para os atarefados moradores da casa, enquanto Aubrey ouvia, com um horror mais fácil de imaginar do que de descrever, os sons dos diligentes preparativos. Chegada a manhã, o barulho das carruagens deixou-o quase desvairado. Por fim, a curiosidade dos criados sobrepôs-se à vigilância e foram-se escapando a pouco e pouco, deixando-o ao cuidado de uma velha atarantada. Ele aproveitou a oportunidade e, com um salto, saiu do quarto, chegando num instante ao aposento onde estavam todos reunidos. Lord Ruthven foi o primeiro a vê-lo: aproximou-se de imediato e, pegando-lhe à força num braço, levou-o à pressa para fora da sala, mudo de raiva. Na escada, segredou-lhe ao ouvido: «Lembre-se do seu juramento e saiba que, se não for minha noiva hoje, a sua irmã está desonrada. As mulheres são fracas!» Dizendo isto, empurrou-o para os que tinham o encargo de cuidar dele, os quais, alertados pela velha, tinham vindo à sua procura. Aubrey já não conseguia manter-se de pé: não encontrando escape, a sua fúria rebentara-lhe um vaso sanguíneo, e teve de ser transportado para o leito. Este incidente não foi comunicado à irmã, que não estava presente quando ele entrara, porque o médico receou abalá-la. O casamento foi realizado e a noiva e o noivo deixaram Londres.
A fraqueza de Aubrey aumentou; a efusão de sangue produziu sintomas indicadores de que a morte se aproximava. Desejou que os tutores da irmã fossem chamados, e ao bater da meia-noite relatou serenamente o que o leitor acaba de ler — e logo depois morreu.
Os tutores apressaram-se a ir em socorro de Miss Aubrey, mas quando chegaram era tarde demais. Lord Ruthven desaparecera e a irmã de Aubrey saciara a sede de um VAMPIRO!