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“Sepultados, fomos enterrados mil vezes, e mil vezes a História provou que estavam errados aqueles que previam ou esperavam o nosso desaparecimento. Não posso deixar de sentir uma espécie de esperança.” Marine Le Pen tinha iniciado o discurso de derrota nesta noite eleitoral reconhecendo que os franceses não quiseram o “vento de mudança” que a sua candidatura propunha. Mas, em poucas linhas, reverteu a tendência do discurso: tentou inspirar e deixar claro que a União Nacional, antiga Frente Nacional, não está morta. Uma estratégia clara para mobilizar os seus eleitores a pouco mais de um mês das legislativas em França, para eleger os novos deputados da Assembleia Nacional. E com Le Pen a deixar claro que estará presente para esse combate.
Marine Le Pen e Emmanuel Macron. Quem perder França ainda tem futuro político?
Emmanuel Macron, porém, foi o vencedor da noite. Provou que ainda é possível um Presidente ser reeleito em França — algo que não acontecia desde que Jacques Chirac renovou o mandato, em 2002, precisamente contra Jean-Marie Le Pen — e conseguiu até ter um resultado ligeiramente superior ao que previam as sondagens. Em Bruxelas e várias capitais europeias, suspirou-se de alívio perante a garantia de que França não tinha eleito uma política anti-sistema e populista, com ideias revolucionárias no plano europeu e internacional. Mas o suspiro pode durar apenas até ao próximo susto.
Macron com menos dois milhões de votos, Le Pen com quase mais três milhões
O Presidente renovado sabe-o. Por isso, dedicou grande parte do seu discurso de vitória a reconhecer a divisão profunda que divide a sociedade francesa. Admitiu que muitos dos quase 19 milhões de votos que obteve foram mais para evitar a eleição de Le Pen do que por fé na sua candidatura. “Tenho consciência deste voto e que sou depositário do sentido de dever nos anos futuros”, garantiu. A mensagem era sobretudo para os eleitores de Jean-Luc Mélenchon que engoliram o sapo e votaram em si — talvez mais do que inicialmente as sondagens previam, tendo em conta que o número de votos brancos e nulos desceu face a 2017. Mas Macron também não pode ignorar que teve na noite deste domingo menos dois milhões de votos face há cinco anos, enquanto a adversária aumentou em quase três milhões, segundo as estimativas de Mathieu Gallard, da Ipsos.
A tendência de crescimento da União Nacional e de Marine Le Pen — que procuram apresentar-se cada vez mais como “moderados” — continua, apesar de ainda não ser suficiente para derrotar um candidato centrista. Com Le Pen à frente do partido, a ex-FN tem conseguido melhorar sempre o seu anterior resultado em presidenciais. Em 2012, Marine conquistou 18% logo na primeira volta das presidenciais — o mesmo resultado de Jean-Marie contra Jacques Chirac. Falhou a passagem à segunda volta. Na eleição seguinte (2017), porém, teve 21% na primeira volta e chegou aos 34% no confronto final contra Macron. Agora, em 2022, teve 23% na primeira volta. Este domingo, alcançou uns 43% que há vinte anos pareciam impensáveis para a candidatura do seu pai.
A “cólera” que França — e a Europa — não podem ignorar
O contexto de governação é também agora muito mais complicado do que aquele que Emmanuel Macron tinha pela frente em 2017. Nos últimos cinco anos, enfrentou múltiplas crises: os Coletes Amarelos cimentaram a perceção do Presidente como distante do eleitor comum e cavaram o fosso entre comunidades urbanas e rurais; a Covid-19 e o movimento anti-vacinas trouxeram novas dores de cabeça; a guerra na Ucrânia traz um contexto internacional mais complicado no plano europeu, de equilíbrios delicados com uma Alemanha hesitante perante a Rússia.
E, perante uma nova presidência de cinco anos que o próprio Macron prevê que sejam difíceis, o candidato do En Marche! decidiu não ignorar os eleitores de Le Pen na noite eleitoral: “A cólera que os levou a votar neste projeto terá também uma resposta”, garantiu, depois de ter pedido aos apoiantes que não vaiassem o nome de Le Pen. “O voto de hoje faz com que tenhamos de considerar todas as dificuldades de todas as vidas e responder com eficácia a todos os que votaram e àquilo que expressaram.”
Macron deixou a difícil promessa de responder a esse descontentamento, mas não é o único que tem dificuldades pela frente. O crescimento da extrema-direita francesa — porque, sim, Le Pen não ganhou, mas cresceu — é a lança na Europa de todo o movimento populista e anti-sistema. Um cenário algo diferente do da Alemanha, por exemplo, onde a Alternativa para a Alemanha (AfD) não vai além dos 10%, ou de Itália, onde Mario Draghi reduziu o peso da Liga de Matteo Salvini e do Movimento 5 Estrelas. Mas a líder da União Nacional já concorreu a três eleições presidenciais consecutivas, onde tem vindo a consolidar o seu perfil político. Vai moderando o discurso de eleição para eleição e torna a União Nacional um partido cada vez mais clean. O resultado? Somou sempre mais votos, de eleição para eleição.
Não que isso signifique uma transformação profunda no seu programa. Além de continuar a propor uma política anti-imigração e anti-Islão clara, a União Nacional já não defende um referendo à presença na União Europeia, mas continua a propor uma “Aliança Europeia das Nações” onde as soberanias nacionais tenham mais peso. Em concreto, Le Pen defende que a Constituição francesa se sobreponha aos tratados europeus — ao mesmo tempo que quer promover referendos nacionais que poderiam alterar o esqueleto da Constituição francesa, como o da “prioridade nacional” (dando prioridade a cidadãos franceses no acesso a apoios sociais e cuidados de saúde, por exemplo). Na prática, o projeto de governação de Le Pen poderia abrir um diferendo claro com Bruxelas, à semelhança daqueles que os governos da Hungria e da Polónia já têm.
En Marche! parte em vantagem para as legislativas, mas União Nacional quer ser a sua oposição
Emmanuel Macron fez de “barragem” à extrema-direita francesa, sim, por agora. Mas enfrenta já o primeiro desafio em junho, quando os franceses forem votar a nova composição da Assembleia Nacional a 12 e 19 de junho. Le Pen já definiu o rumo: aposta todas as fichas em fazer oposição ao Presidente e esperar que o resultado nas presidenciais leve a uma vaga de fundo que se transfira para as legislativas. “Vou liderar esta luta ao lado de Jordan Bardella, com todos aqueles que se opuseram a Emmanuel Macron, todos aqueles que têm a nação ligada ao seu corpo. Queremos unir todos aqueles que, independentemente do seu background, queiram unir as suas forças contra Emmanuel Macron”, prometeu a candidata, referindo-se ao seu “delfim” de 25 anos, que preside atualmente ao partido.
Abertura a quem se queira juntar, sim, ma non troppo. Apenas se for a União Nacional e Marine Le Pen a liderar essa oposição a Macron. Foi outra das conclusões claras da noite deste domingo, quando Éric Zemmour apelou no seu discurso a que haja uma “união” daquilo a que chamou “bloco nacional”, para combater o bloco centrista que apoiará Macron e o bloco da esquerda, que se unirá em torno de Jean-Luc Mélenchon. A resposta chegou pronta ainda na noite eleitoral, pela voz do braço direito de Le Pen: “Não vamos fazer uma aliança com o Reconquista [partido de Zemmour]”, garantiu Bardella ao Figaro. “Pelo contrário, neste pólo popular que estamos a construir com gente fora da UN, há gente que beneficia mais de ter o nosso apoio.”
O mês e meio que falta para as eleições será marcado pelas jogadas de bastidores e trocas de favores para cimentar as alianças que vão determinar os candidatos às legislativas. À direita, porém, Le Pen pensa que estas presidenciais provaram que Zemmour foi um epifenómeno e que foi ela a consolidar-se como verdadeira líder da extrema-direita francesa e como líder da oposição a Macron.
Os resultados, para já, dão-lhe razão — pelo menos em relação à primeira parte. As legislativas ditarão se a União Nacional é capaz de dar o salto, numa Assembleia Nacional onde atualmente tem apenas oito deputados, ou se ficará pelo caminho. Ao L’Express, o politólogo Bernard Sananès refletia no final da noite eleitoral que o Presidente beneficia daquilo que historicamente se chama “o fator maioritário”: quando as legislativas são depois das presidenciais, os franceses costumam conceder ao Presidente uma maioria próxima da sua força política. “Isto é ainda mais verdade porque os eleitores dos candidatos derrotados [nas presidenciais] estão mais desmobilizados do que os do vencedor”, explica.
Foi isso que Le Pen tentou contrariar com o seu discurso, onde garantiu que não foi sepultada. A História nas legislativas francesas está do lado de Macron; mas na História política francesa, a extrema-direita também nunca tinha tido mais de 40% dos votos numa eleição presidencial. Até esta noite.