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Nenhum dos relatórios das duas ecografias feitas com o obstetra aponta qualquer malformação. Pelo contrário: tudo é identificado como "aparentemente normal"
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Nenhum dos relatórios das duas ecografias feitas com o obstetra aponta qualquer malformação. Pelo contrário: tudo é identificado como "aparentemente normal"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Nenhum dos relatórios das duas ecografias feitas com o obstetra aponta qualquer malformação. Pelo contrário: tudo é identificado como "aparentemente normal"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Malformações genitais, espinha bífida e só um rim. Diana é outro caso do médico de Setúbal

A mãe de Diana fez duas ecografias com o médico Artur Carvalho: "Tudo perfeito". A menina nasceu com duas vaginas, dois retos, dois úteros, espinha bífida e só um rim. Já vai para a sexta cirurgia.

Vanessa Ferreira acordou, depois do parto, num corredor do Hospital Garcia de Orta, sem saber onde estava Diana. “Ouvi alguém lá muito ao fundo a dizer: ‘A sua filha nasceu com um problema, mas vamos trocar o turno e já lhe dizemos’. Comecei aos gritos. Para já, estava transtornada da anestesia e depois não via ninguém. Só médicos a passar no corredor de um lado para o outro”. Já lá vão mais de três anos, mas a jovem mãe, à data com 20 anos, lembra-se como se fosse hoje do desespero daquelas horas.

Os familiares já sabiam que “problema” era esse. Eram, na verdade, vários problemas. “Já tinha todos cá fora para me preparar. Foi a minha família que me disse, mas não me conseguiram explicar logo tudo”, conta ao Observador. O “tudo” era “muita coisa”. Diana, que tinha nascido com 34 semanas e um dia, só tinha um rim. A bexiga tinha “dimensões maiores e um formato diferente”. E tinha a espinha bífida. “Ao nascer, disseram-me que ela nunca ia andar”, acrescenta.

E o “tudo” não ficava por aqui. Diana “não tinha perfuração anal” e tinha “duas vaginas funcionantes e dois retos”. Sofria ainda de uma malformação uterina: um útero didelfo, isto é, um útero duplo. Vanessa Ferreira admite que “estava a contar com uma filha perfeita”. Até ao parto, todas as ecografias que fez lhe indicavam isso mesmo. Na passada quinta-feira, quando viu passar na televisão a notícia de um bebé que nascera em Setúbal com malformações, não queria acreditar. “Fui buscar as ecografias para confirmar”, relata. E lá estava: o nome do médico que acompanhou o bebé Rodrigo, de que falavam as notícias, era o mesmo que lhe tinha feito duas ecografias — Artur de Carvalho.

O obstetra Artur de Carvalho fez duas ecografias a Vanessa Ferreira, na Clínica Padre Cruz, no Pragal, em Almada

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Obstetras ouvidos pelo Observador admitem a hipótese de não ter sido possível detetar as malformações genitais com que a bebé nasceu, mas são claros no que diz respeito à ausência de um rim e à espinha bífida. “É obrigatório ser diagnosticado”, disse o Presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia, Luís Graça.

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Além de todas as complicações clínicas, as malformações genitais acabariam ainda por trazer problemas no registo da criança. “Quando ela nasceu, não a consegui registar logo: não me conseguiam dizer se era um menino, se uma menina“. Diana foi submetida a um exame. Através ele, os médicos conseguiram perceber que era uma menina. Só depois de feito esse exame é que Vanessa Ferreira conseguiu, passadas duas semanas, registar a filha.

Três dias depois do parto, quando a mãe finalmente conheceu a filha — que entretanto tinha sido submetida a uma cirurgia —, ficou “em choque” porque “nunca tinha visto uma criança assim” e acabou por desmaiar. “Só pensei: ‘É esta a minha filha?’ Era tão pequena. Vê-la ali com um saco. Foi difícil aceitar. Fui acompanhada por um psicólogo porque achava que a Diana ia morrer”, conta ao Observador.

“Deu-me uma ecografia gravada em CD que era para outra mãe”

Vanessa Ferreira engravidou com 19 anos e foi mãe aos 20. “Não estava a contar com a gravidez”, confessa: “Mas, quando soube, aceitei”. Decidiu que seria mãe solteira e dirigiu-se ao seu médico de família, que a mandou fazer as ecografias na Clínica Padre Cruz, no Pragal, em Almada, que tem acordo com o Serviço Nacional de Saúde. Ali, fez as duas primeiras ecografias com o obstetra Artur de Carvalho, que lhe disse “sempre que estava tudo normal, tudo perfeito”. “Não é que ele falasse muito nas ecografias”, aponta, explicando que era ela que ia fazendo perguntas para tentar perceber se estava tudo bem. Ele lá lhe confirmava, mas tinha por hábito dizer: “Depois vai ver no relatório”.

Diana nasceu às 34 semanas e um dia, a 10 de janeiro de 2016, no Hospital Garcia de Orta

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Nos dois relatórios da ecografia a que o Observador teve acesso estava, de facto, “sempre tudo normal”. Em ambos, numa lista dos órgãos do feto — onde o médico assinala com um “N” se determinado órgão está “aparentemente normal”, com um “A” se está “anormal” ou com”NV” se foi “não visualizado” —, o obstetra Artur de Carvalho marcou como “aparentemente normal” todas as partes do corpo listadas. Mesmo aquelas em que Diana tinha problemas, como os rins, por exemplo, como viria a comprovar-se mais tarde.

Na segunda ecografia, o médico perguntou-lhe se queria saber o sexo do bebé. “Tem aqui uma menina”, anunciou e depois escreveu no relatório. Na verdade, nada nos relatórios previa que não pudesse “contar com uma filha perfeita”, lembra a mãe. O cenário era ideal: tudo estava normal. Mais: “Não se detetam anomalias morfológicas”, lê-se ainda no relatório da ecografia realizada às 21 semanas.

A esta distância, a mãe de Diana tem até dúvidas de que as ecografias que o obstetra Artur de Carvalho lhe entregou sejam as da sua filha. “Na última ecografia, ele estava com um problema técnico. No final, deu-me uma ecografia gravada em CD que era para a outra mãe que tinha sido consultada antes de mim”, conta, explicando que só percebeu porque não tinha pedido a ecografia em CD. “Só depois é que me entregou a minha ecografia”.

O cenário era ideal: tudo estava normal. Mais: "Não se detetam anomalias morfológicas", lê-se ainda no relatório da ecografia realizada às 21 semanas.

Especialistas dizem que ausência de rim e espinha bífida deviam ter sido detetada

Admitindo que uma boa parte dos problemas de Diana podiam não ter sido detetados nas ecografias, e ressalvando que não conhece o caso em específico, o Presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia, Luís Graça, é bastante claro no que diz respeito à ausência de um rim e à espinha bífida: “É obrigatório ser diagnosticado”. O mesmo afirma o obstetra Carlos Veríssimo: “A falta de um rim é detetável”.

Quando à ausência da perfuração anal, reconhece que “é difícil pela ecografia fazer esse diagnóstico, apesar de ser possível fazer-se um diagnóstico indireto“, diz o obstetra Luís Graça ao Observador, explicando que o facto de “o intestino estar mais dilatado” pode ser um indício de que não há essa perfuração. Também isso não foi identificado — ou, pelo menos, não consta dos relatórios de Artur de Carvalho.

No que diz respeito à existência de duas vaginas e dois retos, os especialistas reconhecem que essas malformações seriam mais difíceis de detetar. Por exemplo, muitas vezes, quando não há malformações associadas, o útero didelfo só é “diagnosticado mais tarde”, alerta o obstetra Luís Graça.

Vanessa Ferreira chega a ter dúvidas sobre se as ecografias que lhe foram dadas são mesmo as da sua gravidez

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O obstetra Carlos Veríssimo explica que detetar as malformações genitais dependeria de estarem “reunidas as condições ideias para realização de exame”. “No caso de a mãe ser muito gorda ou ter pouco líquido, não seria possível detetar”, explica. O Presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia apontou ainda ao Observador que “muitas vezes, as malformações do aparelho urinário estão associadas a malformações aparelho genital” — daí que não seja de estranhar que Diana não tivessem um rim, além das malformações no aparelho genital.

Três anos, cinco cirurgias. Diana vai ser operada, novamente, no próximo ano

Os relatórios feitos pelo obstetra também indicavam que o líquido amniótico estava “normal”. Mas a jovem começou a perder líquido por volta das 30 semanas. Foi internada no Garcia de Orta. “Fiz lá ecografias, mas também nunca ninguém me disse nada“, denuncia. “A doutora que me viu na urgência foi a única a dar o alerta. Percebeu, através da análise ao líquido, que alguma coisa estava mal. Ninguém fez caso do que ela disse. Lembro-me muito dessa médica porque foi a única que me disse que realmente se estava ali a passar alguma coisa”, recorda.

"A doutora que me viu na urgência foi a única a dar o alerta. Percebeu que alguma coisa estava mal. Ninguém fez caso do que ela disse. Lembro-me muito dessa médica"
Vanessa Ferreira, mãe de Diana

Depois do internamento, a jovem acabou por voltar para casa e passou o Natal com a família, mas, pouco depois, estava de regresso às urgências do Garcia de Orta, novamente a perder líquido amniótico. Acabou por ter a filha no próprio dia, 10 de janeiro de 2016. O parto teve logo complicações. Teve de levar uma anestesia geral, mesmo depois de levar sete epidurais, porque “nenhuma funcionava”. A cesariana foi feita com a mãe a dormir. Ao acordar, Vanessa Ferreira assinou um termo de responsabilidade antes sequer de a conhecer para lhe poderem realizar uma colostomia. “Disseram-me que ela não ia durar muito. Foi operada logo”, conta.

Só dois anos depois é que Diana foi transferida para o Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. “No Garcia de Orta, foram arrastando até eu me fartar e a minha filha já estar com o único rim que tinha muito doente. Fiz uma reclamação. Só diziam que não tinham um caso semelhante e não podia fazer nada. Levei a minha filha duas vezes para o hospital nos braços já a perder sentidos e não faziam nada”, conta ao Observador. Desde que passou a ser acompanhada no Dona Estefânia, só este ano, Diana já fez mais quatro cirurgias, além da que fez assim que nasceu: “Duas operações de reconstrução interna, uma para encerrar a colostomia e uma de correção de refluxo”.

Diana tem agora três anos e vai ser submetida à sua sexta cirurgia no próximo ano

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A criança vai fazer uma cirurgia “relacionada com o nervo da medula que ficou preso e que lhe provocou uma escoliose”. Atualmente, a menina de três anos “atrapalha-se a andar por causa de espinha bífida e a bexiga ainda não funciona como deve ser”. Tem de fazer tratamentos de três em três horas e “toma medicamentos diariamente”, conta a mãe ao Observador, acrescentando que, por isso, teve dificuldade em arranjar uma escola para a filha. A menina está num colégio privado “porque mais nenhum sítio a aceitava”.

Quando a filha nasceu, Vanessa Ferreira ainda procurou uma advogada. “Ela disse-me que era uma perda de tempo apresentar queixa contra o médico. Na altura, pensei que isto tinha de acontecer alguém e foi a mim. Já não podia fazer nada, mas sempre culpei o médico”, conta. A mãe admite que, na altura, talvez pela idade, era ingénua: “A minha família dizia-me: ‘Não tinha de acontecer a ti. Foi um erro médico, tens de dizer a alguém”. Só disse agora e, três anos depois, vai apresentar queixa contra o obstetra.

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