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D. R.

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Manel Cruz: "Senti-me muitas vezes infeliz com o sucesso"

Será eternamente o "Manel dos Ornatos", banda que mesmo após o seu fim, em 2002, continua a influenciar gerações. Nesta entrevista de vida, Manel Cruz diz-se apenas um "gajo normal".

O encontro para a entrevista (que começou ao início da tarde e se prolongou até já anoitecer) é à entrada de um velho shopping da Rua do Heroísmo, o Stop, o emblemático Stop – há muito “viveiro” de músicos e nada ou quase nada shopping, tendo a maioria das lojas virado sala de ensaios. É por lá que Manel Cruz (no seu estúdio, o Bandido) está longas horas de volta de ensaios e gravação de novas canções. O próximo disco a solo está concluído e sairá em breve. Um disco para o qual, agora mais do que no passado, se “obrigou” a compor, desafiando a “falácia” da espontaneidade com trabalho, obsessão e, sobretudo, a paixão que recuperou à música nos últimos tempos: “estou a voltar a desfrutar”, garante.

Pouco se alterou em Manel desde 1991, altura em que com os amigos do liceu Soares dos Reis criou um monstro: os Ornatos Violeta. A barba (mais até do que o cabelo, naquela década longo e hoje rapado) é certamente mais grisalha. Afinal, tem hoje 43 anos – mas envelhecer só é “triste” porque o torna “transparente” às mulheres, graceja. É-lhe ainda magro o rosto como é o corpo, ainda são esverdeados os olhos, atentos, nunca perdendo Manel (apesar do tanto sucesso que alcançou) o trato modesto e sempre íntimo. Sobre nada se recusaria conversar Manel Cruz: nem o fim abrupto da dos Ornatos, um fim que “digeriu” aos poucos; nem o tanto medo que sentia do “poder” que a música lhe trouxe, tendo mesmo pensado em afastar-se dela para voltar à primeira paixão, desenhar. Os “putos” (e tem hoje três) herdariam do pai as paixões todas, a da música tocada e a do traço no papel.

Serenou as inseguranças. Aceitou que está “de certa maneira condenado a viver as coisas sem as poder tocar” — ou a tocá-las em “retroativos”, à medida que as conseguir ir agarrando ao longo dos anos. Mas tem ainda, felizmente, uma “inquietude” crónica: a de se encantar sempre com alguma coisa. E quando se encanta, escreve-a. E canta-a.

João Seguro/Observador

És músico e é como músico que melhor te conhecemos. Mas és também ilustrador. O que é que te surgiu primeiro na vida enquanto paixão: a música ou o desenho?
Foi o desenho. O desenho foi a minha primeira paixão. E surgiu mesmo muito cedo. O primeiro desenho que me lembro de ter feito… [pausa] tinha dois anos. E foi um desenho feito numa altura em que me tinha chateado com a minha mãe. Então, desenhei-a nua. [Risos] Entreguei-lhe o desenho e expliquei que era a “mamã nua por mal”. E a minha mãe até escreveu isso no desenho. Ainda o tenho, com os escritos dela. E, pronto, desenhar era uma maneira de comunicar para mim. Era uma ferramenta. Lembro-me bem de ser uma coisa muito fixe. Agora tenho três putos e os três desenham. Um dos gémeos desenha muito, muito, muito bem.

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Mas influenciaste isso?
Não. Mas é engraçado: revejo muito nele aquilo que eu fazia. Ele vê um desenho animado na televisão, ou folheia um livro de banda desenhada qualquer, e replica as coisas que observa. É uma coisa muito natural nele, não tenho que lhe ensinar nada. Aliás, eu recatei-me muito na questão de lhes mostrar coisas minhas, desenhos meus. Porque não queria ser uma influência. Não queria “intimidar”. Quando uma criança vê algo desenhado por um adulto, que tem muitos e muitos anos disto em cima, olha e pensa que tem que desenhar assim. Não tem. Isso é um bloqueio. E até acho que os desenhos que eles fazem têm muito mais graça do que os meus, porque são mais livres. Então, demorei muito até lhes mostrar coisas minhas. Mas hoje faço muitos desenhos com eles. Em grupo. E é muito engraçado.

Mais tarde, e sobretudo após surgirem os Ornatos Violeta, a música torna-se a tua primeira “ocupação”. Mas a ilustração é algo que nunca abandonaste completamente. Continua a dar-te prazer desenhar?
Sim, sim. Continua a dar-me muito prazer desenhar. E tenho sempre aquela coisa: “Um dia vou fazer uma exposição”, “um dia vou fazer um livro”. Mas não acontece…

Porquê?
O teu tempo não dá para tudo. E acabo sempre por ter outras prioridades. Mas as coisas acabam por ter sempre um papel na mesma, embora não seja um papel — como é que hei-de dizer? — de “divulgação”. Nem tudo o que um gajo faz é para ser necessariamente divulgado. Mas acho que já fui mais angustiado em relação a isso do que sou hoje. Acho que aquilo cumpre o seu papel na mesma, independentemente de resultar numa exposição ou em livro. É claro que um artista tem sempre vontade de partilhar as coisas que faz. Mas a verdade é que aquilo acabou sempre por existir na mesma. É pessoal. Mas existe.

Na infância, na adolescência, o desenho também foi, de certa forma, um escape teu? Algo que usavas quase de forma catártica?
Completamente. Acho que é mesmo isso. A questão da ambição só veio depois. A questão mais “social”, de perceberes o poder que tens ao possuir determinadas capacidades, veio depois. No início era mesmo uma questão catártica, sim. Até mesmo do ponto de vista sexual, por exemplo. Antes de eu pensar sequer em masturbar-me – e saber o que é que isso era –, o desenho já era uma forma de conviver com esse impulso no início da adolescência.

Então?
Desenhava mulheres a despirem-se. E isso exercia sobre mim um efeito que nem eu sabia. A perda dessa inocência vem depois, não é? No início, mais até do que tentar controlar os impulsos, tu és consequência desses impulsos. E era muito uma cena catártica para mim, sim. Se estava aborrecido, chateado, desenhava. E aquilo tinha – e continua a ter — um efeito relaxante que poucas coisa têm. É engraçado: quem trabalha com a criação, muitas vezes nem está atento às conversas que se passam em volta. Às vezes és assaltado por um pensamento, ou alguém diz uma coisa engraçada e que te faz pensar, e perdes o resto da conversa. Às vezes nem é uma questão de te estares a borrifar para o que os outros estão a dizer; és vítima desse assalto. Mas, curiosamente, quando estou a desenhar, tenho uma atenção às conversas que estão em volta que não tenho de outra forma. É impressionante. Um exemplo: imagina que estou de férias, estou uma semana num sítio, estou a desenhar e o pessoal está a conversar. Ouço tudo, tudo, tudo. E tenho um entendimento sobre as conversas que não teria de outra maneira. Ainda hoje estava a pensar nisso… [Pausa] Não sou mesmo um gajo que consegue ter duas conversas ao mesmo tempo. Mas se estiver a desenhar, a minha atenção está completamente focada e consigo. E absorvo isso para os desenhos. É fixe.

Nasceste em São João da Madeira. Com que idade é que foste para o Porto?
Com dois anos. Embora tivesse mantido sempre muita relação com o pessoal de São João da Madeira: tinha lá os meus tios, primos, os padrinhos, amigos. No verão o campo de férias era lá. No Porto, com os tais dois anos, vim logo para Baixa, para a zona do Bolhão.

"Às vezes penso: quando morrer, todo este material que tenho no estúdio podia ser uma mais-valia para eles [filhos] se por acaso viessem a ser músicos. Mas se não quiserem, também podem vender esta merda toda e ‘tá resolvido. [Risos] O que quero é que sejam putos felizes. Acho que às vezes os pais querem tanto o sucesso dos filhos que acabam por não se aperceber que a felicidade está no livre-arbítrio deles e no incutir da confiança. Não têm que corresponder a uma vontade dos pais."

Rua da Firmeza…
Rua da Firmeza.

Quando eras miúdo, eras mais introspetivo — até por causa do desenho, onde te “refugiavas” tanta vez — ou normalíssimo?
Normalíssimo…

Portanto, jogavas futebol na Rua da Firmeza e, como qualquer puto da tua geração, eras viciado no ZX Spectrum?
[Risos] Completamente! Nunca fui muito das miúdas, por exemplo. Quer dizer, pelo menos exteriormente não fui. Cá dentro, claro que sim, era taradão como os outros. [Risos] Mas, sim, sempre fui um gajo de ter amigos. Embora, sim, tivesse um lado mais introspetivo que me roubava muito tempo ao exterior. Porque era mesmo “colado” no desenho. Era um bocado nerd do desenho.

E melómano, eras?
Sempre gostei muito de música. Mas nunca fui – e ainda não sou – aquele gajo que sabia quem era o vocalista desta ou daquela banda, o guitarrista desta ou daquela banda. A música até foi mais uma espécie de banda sonora enquanto estava a desenhar. Mas a minha mãe cantava comigo no carro, por exemplo. Sempre gostei disso. Não fazia a mínima ideia que iria ser músico algum dia. Mas claro que ouvia os discos dos meus irmãos, dos meus pais.

O que é que se ouvia em tua casa durante a infância?
Oh pá, em casa… e tentando lembrar-me dos discos que havia lá em casa… [pausa] os meus pais tinham desde Chico Buarque a Sérgio Godinho, tinham muita música clássica, Jacques Brel também. A minha irmã é a mais velha, o meu irmão o do meio e eu sou o mais novo dos três. Com a minha irmã, lembro-me de ouvir Echo & the Bunnymen, Cure, Housemartins, Beatles, Simon & Garfunkel. Sempre ouvi tudo. Mas não cresci com aquela cena de ter um pai que é grande apreciador de música e, portanto, me incutia mais este género do que aquele. Isso não.

E hoje, enquanto pai: também existe esse ecletismo lá em casa?
Completamente. Há tempos, um dos putos mais novos – os gémeos estão com oito anos e o mais velho dez – pediu-me: “Oh pai, bota um rock…” Acho que meti Velvet Underground ou qualquer coisa assim. E ele: “Não, uma coisa mais ‘pesada’…” Então, meti os Senser. E ele pôs-se aos saltos no sofá, a curtir como o carago com os Senser. [Risos] É curioso: nunca ouvi música pesada quando era mais puto. Depois, claro, na adolescência lembro-me perfeitamente de começar a ouvir os Faith No More, os Clawfinger, e curtir muito aquilo. Mas na minha casa era tudo mais “melódico”. E as canções que hoje faço acho que resultam um bocadinho desse ambiente que tive em casa.

Gostavas que algum deles seguisse um percurso musical ou no desenho, por exemplo?
[Pausa] Sabes o que é que eu penso? Penso: quando morrer, todo este material que tenho no estúdio [Bandido] e o carago, isto podia ser uma mais-valia para eles se por acaso viessem a ser músicos. Mas se não quiserem, também podem vender isto tudo e pronto, ‘tá resolvido. [Risos] Digo isto mesmo, mesmo, mesmo sinceramente: o que quero é que sejam putos felizes. Esta merda pode ser um cliché, mas é mesmo verdade. Hoje em dia há cenas muito fatelas. Por exemplo: há aí um concurso americano em que as mães vão cantar com as filhas e não-sei-quê. Acho aquilo hediondo. Acho mesmo. Acho que às vezes os pais querem tanto o sucesso dos filhos que acabam por não se aperceber que a felicidade está no livre-arbítrio deles e no incutir da confiança. Eles não têm que corresponder a uma vontade dos pais. Percebes? Está tudo retorcido.

“Não sou gajo de chorar em funerais. Não me apercebo que aquilo está de facto a acontecer. São coisas que vais digerindo ao longo do tempo. E com o tempo fui digerindo também a coisa dos Ornatos"

D. R.

Às vezes os pais estão a “projetar” nos filhos aquilo que eles quiseram ser e nunca foram…
Exatamente. Fico mesmo contente quando sinto que os meus putos são apenas putos. Putos normais, com amigos. Mas acho que fui capaz de desmistificar muito cedo esta coisa da fama junto deles. E isso é porreiro. Nunca tive a tentação de desejar que eles venham a ser muito famosos. Nem eles têm.

Mas eles ganharam cedo a consciência de que o pai era músico e famoso? É que certamente vais com eles na rua e as pessoas abordam-te, pedem autógrafos, tiram fotografias…
Por acaso não. Eles ganharam essa consciência tarde. Felizmente ganharam. Por exemplo: demorei algum tempo até lhes mostrar música minha. Deixei que eles, a pouco e pouco, se apercebessem disso, que algum puto na escola lhes dissesse “O teu pai é músico…” Às vezes sinto que é estranho para eles quando alguém me aborda na rua. E dizem: “Tu és famoso!” E acho que é fixe desmistificar logo isso. Então, respondo: “Não confundam isto com o ter amigos. As pessoas são simpáticas, é fixe, mas são simpáticas porque gostam da minha música. Não é assim que se fazem amigos na vida…” É normal que eles queiram ser o melhor músico do mundo ou o melhor jogador de futebol do mundo. Qual é o puto que não quer? Eu também fui puto. Faz parte. Mas aquilo que cheguei a ver como um medo, agora vejo como uma oportunidade de lhes explicar que o sucesso não vai definir a tua felicidade. Até porque já me senti muitas vezes infeliz com o sucesso.

Disseste que lhes mostraste algumas canções tuas. São coisas mais recentes ou do tempo dos Ornatos Violeta, por exemplo?
É curioso, Ornatos nem conhecem assim tanto. Mas vão conhecendo. Hoje é mais descontraído: vou para casa com alguma música nova, meto e eles dançam. Às vezes gostam mais, às vezes menos.

Mas são “críticos”, é?
[Risos] Sim, sim. Acho que sim, acho que são críticos. Mas até gostam. Para eles é apenas o pai a cantar. Mas ainda não me disseram “não gosto desta”. Talvez ainda não sejam tão críticos assim – mas espero que venham a ser.

E inclinação para a música, demonstram?
Sim, sim. Já tenho um a aprender bateria, por exemplo. Mas os outros dois também estão a aprender música.

Por vontade deles ou vontade tua?
Por vontade deles. Oh pá, eles queriam e, então, falei com amigos meus para lhes darem umas aulas. Mas tinha algum receio da parte académica da coisa. E expliquei-lhes: “Vão experimentar. Se gostarem, gostam; se não gostarem, não gostam”. E procurei professores que não tivessem uma abordagem muito “rígida” ao ensino da música.

Isso sempre foi algo que tu, enquanto criança, não gostavas: a rigidez do ensino.
É verdade, é verdade. Na escola já tens essa abordagem – que acaba por ser um pouco inevitável. O sistema de ensino não contempla a abordagem, diferente, de cada um de nós ao mundo. Talvez seja utópico dizer que cada criança tem uma maneira de estar diferente e não-sei-quê. Mas é verdade. E acredito que dentro da abordagem “inevitável” e rígida – na matemática, na geografia – é possível, ao mesmo tempo, ter uma abordagem diferente, por exemplo, no ensino da música. Portanto, se possível, quero tentar dar-lhes a sensação de que podem pegar naquilo da maneira que quiserem Percebes? É possível olhares para uma matéria e teres a abordagem que tu queres àquilo. “Aprender” não é só aquilo que te enfiam pela cabeça; é sobretudo a maneira como te relacionas com as coisas. É teres a capacidade de descobrir algo. Na música tentei isso. O Edgar, por exemplo, queria aprender bateria e foi aprender – e deu-se logo bem com a cena. O Agostinho é bom na matemática. E o Tomé é mais da “lua” – é o tal que desenha bem. Então, ao Agostinho o professor explicou a relação das notas e mostrou-lhe a pauta. E ele disse logo: “Estou a perceber, quero aprender a escrever…” Com o Tomé foi diferente o método: o professor fez um desenho e, depois, musicaram o desenho. Portanto, em putos que até vêm da mesma família, que têm os mesmos estímulos, a abordagem foi completamente diferente.

"Quando surgem os Ornatos Violeta, eu e o Kinörm acho que éramos talvez os piores -- 'piores' no sentido de não tocarmos mesmo instrumento nenhum. O Peixe já sabia tocar uns acordes de guitarra. O Prata também já tinha uma relação fixe com o baixo. E o Elísio era o melhor de todos nós. E eu aprendi os primeiros acordes de guitarra com o Peixinho. Oh pá, éramos uns amadores do carago. [Risos] Mas fazíamos logo canções. Coisas muito ingénuas…"

No liceu, curiosamente, acabas por estudar numa escola que tem uma metodologia de ensino, nem de propósito, menos “rígida”.
Sim, na [Escola Artística de] Soares dos Reis. Acho que sempre houve na Soares dos Reis um entendimento do que é o ensino diferente das escolas “normais”. Há uma desdramatização da falta de aquisição de conhecimento. Eu passei montes de vezes à tangente – e acho, sinceramente, que passei porque desenhava bem. Os professores tinham consciência que vais aprendendo na vida toda. Claro que tentavam, como todos, que eu adquirisse conhecimento e reprovavam pessoas. Cheguei a ter muitas negativas. Mas acabei por passar sempre. E acho que essa leveza com que a escola via o ensino foi muito positiva. Toda a gente que conheço saiu daquela escola com uma sensação muito fixe.

É na Soares dos Reis que surgem, pela primeira vez, os Ornatos Violeta. Certo? É do liceu que a maioria de vocês se conhece.
A primeira banda que tivemos chamava-se Suores dos Reis. Foi a primeira abordagem ao que seriam os Ornatos. O Nuno Prata, o Kinörm e o Peixe eram todos colegas de turma. Eu era de outra turma. Mas depois fui colega deles, noutro ano. Entretanto, e ainda na banda Suores dos Reis, tínhamos o Joel e o Rui Ricardo – que também eram do liceu. Mas depois, nos Ornatos, acabei por ser só eu, o Nuno Prata, o Kinörm e o Peixinho. E mais tarde veio o Elísio [Donas] — que não era da Soares dos Reis.

Vocês, ou a maioria de vocês, pouco ou nada sabiam tocar instrumentos, certo?
Nada! [Risos] Eu e o Kinörm acho que éramos talvez os piores — “piores” no sentido de não tocarmos mesmo instrumento nenhum. O Peixe já sabia tocar uns acordes de guitarra. O Prata também já tinha uma relação fixe com o baixo. E o Elísio era o melhor de todos nós. Aprendi os primeiros acordes de guitarra com o Peixinho.

E lembras-te dos primeiros ensaios dos Ornatos?
Sim, sim. Oh pá, éramos uns amadores do carago. [Risos] Mas fazíamos logo canções. Coisas muito ingénuas…

“Coisas” que faziam no ensaio? Ou tu já escrevias umas letras?
Eh pá, variava. Tanto podia levar uma música ou outra, como nos surgia alguma cena em ambiente de banda. Mas acho que as primeiras coisas de Ornatos — embora eu já estivesse a fazer umas canções, coisas ainda muito embrionárias — surgiram na sala de ensaios. A canção “Destino”, por exemplo. [Canta] “O meu destino é feito / o meu destino é certo. Não caiu na água / porque não chego perto.” O “Rock das Sapatilhas” também surge num ensaio. Sabes: nós gostávamos todos dos Violent Femmes — que tinham músicas muito díspares –, eram a nossa grande influência na altura. Então, também fazíamos coisas muito diferentes umas das outras. Valia tudo…

A propósito de influências: as tuas influências, para além dos Violent Femmes, eram também os cantautores em português que há pouco referiste: o Chico Buarque, o Sérgio Godinho? Pergunto isto porque sempre escreveste as canções — até numa linguagem muito “própria” — em português.
Acho que em mim as influências musicais eram variadas. Desde música francesa, inglesa. Música brasileira. E portuguesa, claro. E acho que isso definiu um bocado a questão do cantar sempre em português. Podia cantar em qualquer língua, estava habituado a ouvir canções em qualquer língua, mas de todas a que tinha mais “lógica” era o português – cantar e escrever em português.

Mas já escrevias antes dos Ornatos…
Sim, já. Escrevia poesia sobretudo.

"Eu e o Kinörm éramos os piores porque não tocávamos instrumento nenhum. O Peixe tocava uns acordes de guitarra. E o Prata tinha uma relação fixe com o baixo. O Elísio era o melhor de todos nós"

D. R.

E assumes-te logo como vocalista?
Não… Não punha a hipótese de ser cantor. Não punha mesmo. Punha a hipótese de participar na banda e fazer coisas. No início era o guitarra-ritmo – e durante algum tempo fui o guitarra-ritmo. Curiosamente, fui eu que fiz audições para os vocalistas, que andei exaustivamente – e à força toda – a tentar arranjar um vocalista para os Ornatos. E saía sempre furado, nunca conseguia arranjar. Então, cheguei-me à frente porque não encontrávamos nenhum. Mas nem sequer pensava no que é que era ser um vocalista. Se era fixe para ter gajas ou não. [Risos] O que te quero dizer é: era vocalista pura e simplesmente por causa da magia que é estar numa banda. Quer estivesse a ser guitarra-ritmo, quer estivesse a ser vocalista, estava a participar naquilo. E era o que me agradava. Depois comecei a cantar e percebi, de facto, o gozo que era fazer isso.

Os primeiros concertos presumo que tenham sido em salas mínimas e quase só com amigos vossos na plateia.
Sim… [Risos]

Ainda te lembras do primeiro?
Lembro-me do primeiro, sim, no café Sinatra’s, na Rua da Firmeza – e quase só tínhamos amigos nossos lá. No dia seguinte tocaram lá os Cosmic City Blues, lembro-me bem. Na altura eu ainda era o guitarra-ritmo e o vocalista foi o Ricardo.

Timidez, havia? No começo…
Não. Acho que nunca fui tímido na banda. Mesmo quando comecei a cantar, não tinha timidez. Até cantava na cara das pessoas. [Risos] Não tinha medo desse poder.

"Não punha a hipótese de ser cantor. Durante algum tempo fui o guitarra-ritmo. Curiosamente, fui eu que fiz audições para os vocalistas, que andei exaustivamente – e à força toda – a tentar arranjar um vocalista. E saía sempre furado. Então, cheguei-me à frente porque não encontrávamos nenhum. Mas nem sequer pensava no que é que era ser um vocalista. Se era fixe para ter gajas ou não. [Risos] Mas depois comecei a cantar e percebi, de facto, o gozo que era fazer isso."

Nessa altura havia uma certa inconsciência, talvez.
Exatamente. Mas depois, quando começas a ter expectativas e a perceber que tens um determinado poder, quando começas a entrar em confronto com a tua própria maneira de ser, isso assusta-te um bocado. Hoje em dia acho que vivo mais em paz com isso. É uma escolha que se faz. De uma forma ou de outra, com trambolhões ou não, acabas por escolher como lidar melhor com esse poder que a música traz. Há alturas em que pensas que podes abdicar desse poder e continuar a fazer o que fazes. Mas não podes. Tu vais sempre ter esse poder.

Ou seja, o que te assustava não era tanto o poder de influenciar os outros através da tua música mas, sim, o vires a ser “corrompido” por esse poder. O dinheiro, o estrelato, as expectativas, o peso das expectativas…
É isso. É exatamente isso. Há um paralelo bom para explicar isto que é o da bebedeira: tu queres continuar a beber mas não queres ficar bêbado nunca. Mas tu continuas a ser “impuro” como os outros. Então, é muito mais fácil embarcar nessa bebedeira. É tentador embarcar. Tudo te empurra para aí. Isto foi algo que me demorou muitos anos a perceber – e ainda hoje não percebo bem. Não me fez bem. [Pausa] Não me fez bem. No início custou-me muito esse poder. E deprimia-me. E quanto mais conhecido era, mais estranheza causava nas pessoas que conhecia, mais as afastava. Mas a tua própria cabeça às vezes também inventa coisas… Sempre fui fucking mental! [Risos] O problema é que isto tudo aconteceu comigo ainda na altura da adolescência – que é quando te estás a formar como pessoa. Portanto, houve ali uma série de labirintos, difíceis. E pensei que era eu que era muito complicado…

Hoje faz sentido teres pensado assim?
Hoje faz sentido, sim. E hoje já me desculpabilizo por me ter atribuído tanta importância em determinadas coisas. Porque, de facto, tudo te empurra para aí. É difícil tu muitas vezes não seres um egocêntrico da merda. Eu fui.

Mas os artistas são um bocadinho egocêntricos. Estão voltados para dentro enquanto criam. Caso contrário não seriam artistas: trabalhavam numa repartição pública qualquer…
[Risos] É isso. E é difícil não seres vítima disso. Mas tens que saber gerir. Eh pá, são ossos do ofício, pronto. Todas as profissões os têm. Há profissões que têm responsabilidade diferentes: não podes beber, não podes fumar, não podes fazer nada, porque tens a responsabilidade de ensinar alguém ou de salvar a vida de alguém. As vezes as pessoas diziam-me: “Isso são merdas da tua cabeça, Manel…”. Não são. Enquanto músico eu tinha uma função na sociedade. Tinha um exemplo a dar. E isto não é uma coisa pretensiosa ou arrogante da minha parte. Tu tens o teu exemplo a dar. E se fazes uma determinada coisa, quer tu queiras quer não, estás a dar um exemplo à sociedade. Bom ou mau. A questão é: ou te demoves ou andas em desculpas. Tens que agarrar o touro pelos cornos e dizer “não”. Percebes? Lembro-me de dizer ao meu puto: “Não podes atirar com a colher de pau ao teu irmão!” E ele respondeu-me: “Mas tu também deste um soco no armário…” “Pronto, então o que o pai fez é o que tu não podes fazer…” O exemplo não é o que tu dizes; é o que tu fazes.

Voltando aos Ornatos. Entre o começo da banda e o primeiro álbum, o Cão, ainda passaram alguns anos. Foi-vos difícil “furar”?
Acho que não foi difícil: levou tempo. Mas também acho que até acabou por ser fácil “furar”. Agora, não acho que fossemos o paradigma dos gajos convictos na sua cena e confiantes na sua cena. Mas éramos muito, muito amigos — e isso foi o que nos afirmou. No entanto, do ponto de vista “estratégico”, de ter consciência do exterior, éramos muito, muito ingénuos também. Por exemplo: assinámos um contrato pela Polygram e fomos gravar com o Mário Barreiros. O Barreiros era muito bom e um gajo muito experiente. Como tal, acabou por nos influenciar muito. Em algumas coisas mal e noutras bem – sendo a responsabilidade única e exclusivamente nossa. Houve coisas que se perderam quando gravámos o Cão. E houve coisas que se perderam para trás – tínhamos um grande espólio de coisas que fazíamos e nunca foram gravadas. Aos poucos, houve alguma inocência que se perdeu — como se perde sempre. Mas, ao mesmo tempo, acho que – havendo essa coesão tão grande entre todos – o que nós éramos acabava sempre por passar, de uma maneira ou de outra. E acho que foi isso que, com o tempo, acabou por nos afirmar no panorama da música – um panorama que tende a ser um bocadinho mais “formatador”. Percebes? E acho que nós acabámos por ser “egocêntricos” o suficiente para nos afirmar. Vejo isso como uma teimosia boa. Uma “teimosia” que derivava da curte que sentíamos e não queríamos perder.

Mas vocês, enquanto banda, e mesmo sendo amigos, também discutiam muito…
Sim, sempre tivemos grandes discussões enquanto banda. É normal. E é importante haver numa banda lugar à discussão. E discordar. Mas resolve-se na sala de ensaios. No entanto, ao mesmo tempo, também havia muita cumplicidade. O Mário Barreiros chegou a dizer-nos que o Kinörm era um “problema” na bateria. Mas não havia a hipótese de o Kinörm não ser o baterista de Ornatos.

Mais importante do que ser bom ou mau baterista, muito virtuoso ou pouco, o importante era a “química” que existia entre todos. É isto?
Completamente! Era impensável o Kinörm não fazer parte dos Ornatos. Aquilo não tinha a ver com música; tinha a ver com família. E entendimento. Eh pá, com quem é que eu ia ter aquela cena de estar a tocar guitarra e ter o Kinörm à minha frente a roer as unhas e a dizer: “Hey, ‘tá do caralho, Manel!” [Risos] Com quem é que eu ia ter isso?! Isso era a cena mais incrível.

Quando terminaram, terminaram no auge. Mas apenas com dois álbuns gravados: o Cão e O Monstro Precisa de Amigos. Soube a pouco…
Era a altura de acabar… [Pausa] Agora, mentiria se te dissesse que não achava que aquilo ia fazer para sempre parte do espólio da música portuguesa. Claro que faria. Mas não tinha consciência que… [pausa] oh pá, que nasceriam pessoas depois de os Ornatos acabarem que nos quereriam ver tocar. Ou que alguém chamou Raquel à filha por causa de uma música dos Ornatos. São coisas incríveis mas que não imaginas logo quando acaba.

Hoje tentas explorar outros registos, diferentes de Ornatos, com os projetos mais recentes a solo. Mas olhando para trás, as canções dos Ornatos continuam a fazer sentido? Orgulhas-te? Ou és daqueles músicos que não suportam ouvir as próprias canções na rádio e estão sempre insatisfeitos com o que fizeram no passado?
[Risos] Ainda consigo ouvir algumas. Mas há algumas que me custam um bocado. Por exemplo, no “Tempo de Nascer”, embora ache uma música fixe, odeio ouvir-me. Mas depois há músicas, como a “Notícias do Fundo”, que adoro, adoro mesmo. Como adoro a “Deixa Morrer” ou a “Para Nunca Mais Mentir”, todas as músicas em que canto de uma forma mais “normal” e não tinha a expectativa de ser outra coisa que não era. Percebes? São as músicas com as quais eu continuo a identificar-me mais.

Mas não gostas muito, por exemplo, quando fazem versões tuas? Sobretudo em concursos de talentos…
Tento separar as coisas. A Mila [Dores] fez uma versão da “Notícias do Fundo” e gostei muito. Quando o Filipe [Pinto] fez a versão da “Ouvi Dizer” num programa [Ídolos], achei que ele a cantou muitíssimo bem. Isso para mim é uma coisa. Depois, tudo o resto eu vejo de outra maneira. Vejo os concursos de talentos como um monte de gajos a pegar num programa de televisão para ter audiências – e pegam num formato que, a meu ver, não é pedagógico nem positivo. Por mais que acredite que haja gente bem intencionada naquilo, acho que o formato não é um formato bom.

A primavera trará novo álbum de Manel Cruz, que já não edita desde que os Supernada lançaram “Nada é possível” em 2012 . Consigo em palco vão estar Nico, António Serginho e Eduardo Silva

D. R.

É uma “trituradora”.
Sim. Sim, sim. Não é bom. A perspetiva que mostram do que é que o futuro de uma pessoa enquanto músico é uma ilusão. E é o mero entretenimento à custa dessa ilusão. Tenho um certo receio quando vejo uma pessoa num concurso desses. E penso: “Oh pá, o mais provável é que daqui a uns tempos vás andar aí numa fase bem fodida da tua vida por causa disto…” Felizmente nalguns casos não aconteceu isso. Houve pessoas que passaram por esses concursos e que vieram a dar em alguma coisa. Mas não vieram a dar em alguma coisa porque passaram nesses concursos; vieram porque já tinham alguma coisa. Porque também há muitos exemplos de pessoas que passaram e que, depois, acabaram por não fazer mais nada. É a tal questão pedagógica de que falava. Acho que a sociedade se desresponsabiliza muito facilmente. É conveniente…

Naquele momento interessa…
Naquele momento interessa. E depois não. “Eh pá, ó Manel, estás a ser mais papista do que o Papa; isto é entretenimento…” [Risos] Certo. Mas, então, em que é que ficamos? É muito importante rir, é muito importante um gajo entreter-se e levar uma vida levezinha. Tudo bem. Mas, então, depois não venham cá dizer que o mundo está mal e que já não há valores. Porque as oportunidades que as pessoas têm para transmitir esses valores estão a ser desperdiçadas. Não é triste; é o que é. Não podemos fazer uma revolução num dia. Tudo bem. Mas acho que podemos fazer pequenas coisas que, mesmo que ninguém repare naquele instante, são importantes depois. E mudam.

Acredito que para ti faz mais sentido haver putos a ensaiar – e a descobrirem-se como músicos – aqui ao lado do teu estúdio, no Stop, do que na televisão, num programa assim. É curioso: muitos têm agora a idade que tu tinhas quando começaste a tocar no liceu. Às vezes pedem-te conselhos?
As vezes converso com eles, sim. Vamos conversando e eles vão percebendo o que é que penso, vou percebendo o que é que pensam. Sabes: lembro-me que no início dos Supernada, em 2002, os gajos eram muito mais novos do que eu e faziam-me perguntas sobre como é que era isto da música. Bem, não era nenhum expert no assunto. Mas a verdade é que, para mim, a música era uma coisa mais trivial e normal do que o que eles pudessem crer. Pode até haver essa mitificação – e entendo-a. Mas não há segredos. Agora, é normal que um puto imagine como é que é e não é. Eu também sempre tive os meus ídolos. E conseguia fazer esse paralelo.

Foi uma decisão fácil voltar a ter uma banda depois dos Ornatos?
Depois do fim de Ornatos, tinha mesmo decidido deixar de fazer música — pelo menos nesta perspectivada de trabalhar na música a tempo inteiro — e queria atirar-me ao desenho e só ao desenho. Foi o Ruca que me “resgatou” – e logo para duas bandas na mesma semana: Pluto e Supernada. Era um puto [Ruca] com uma intensidade a viver a música muito grande. E levou a dele avante. [Risos] Então, acabei por seguir com as bandas e, ao mesmo tempo, resolvi começar a desenvolver um bocado mais, sozinho, as músicas que tinha guardadas há anos — músicas que tinham sido um bocado preteridas pelos Ornatos.

O público entendeu logo no início que Pluto e Supernada não seriam uma “continuação” de Ornatos Violeta? Tu próprio não querias que fossem.
Percebeu. Mas acho que nem era preciso. Era impossível competir com Ornatos. E isso já nos descansava: não tínhamos a ambição de vir a bater como os Ornatos bateram. Era algo que já estava resolvido à partida. Estás a entender? Não tínhamos essa pretensão. E não sentíamos que os outros tinham essa pretensão. Embora soubessemos que as coisas que viéssemos a fazer seriam sempre avaliadas à luz dos Ornatos, também sabíamos de antemão que não teria aquele mediatismo. Embora isso seja relativo, claro.

Voltando atrás. Não percebi uma coisa: as canções que foste compondo e deixando para trás, eram canções para ti, a solo, ou eram para os Ornatos?
[Pausa] Não te sei dizer. Era um quadro. Uma pintura. Era um objeto. Era música-concreta. “Se não for tocável não importa.” Era um objeto para ouvir. Resolver tocar aquilo foi outra etapa, uma decisão posterior: “Eh pá, vou tentar por isto em disco…” Mas não sentir a necessidade de ter de tocar aquelas músicas ao vivo foi um conforto também. Fiz aquilo que quis em muito tempo.

Escrever canções é uma “necessidade”, que flui, ou obrigas-te a escrevê-las?
Curiosamente, neste disco mais recente obriguei-me.

E antes não…
Antes não. Se me “obrigasse”, até seria mais a minha motivação de fazer música que me obrigava. Percebes? Aqui, a motivação estava – como é que hei-de dizer isto? – do avesso. Estava em litígio. Existia mas existia em conflito: “Ou acabo ou continuo”. Então, fui tentar fazer música de novo. E obriguei-me. “Obriguei-me” no sentido em que vinha para o estúdio todos os dias e todos os dias me obriguei a cagar uma música. [Risos] Fosse boa ou não fosse, eu tinha que a acabar num dia. E fiz muita merda…

"O [produtor] Mário Barreiros chegou a dizer-nos que o Kinörm era um 'problema' na bateria. Mas não púnhamos a hipótese de o Kinörm não ser o baterista de Ornatos. Era impensável. Aquilo não tinha a ver com música; tinha a ver com família. E entendimento. Eh pá, com quem é que eu ia ter aquela cena de estar a tocar guitarra e ter o Kinörm à minha frente a roer as unhas e a dizer: 'Hey, 'tá do caralho, Manel!' [Risos] Com quem é que eu ia ter essa merda?! Isso era a cena mais incrível."

Portanto, atiraste muita coisa para o lixo, é isso?
Sim, sempre atirei muita coisa para o lixo. Curiosamente, nessa altura acabo por conhecer o Rodrigo Amarante e desabafei com ele. Ele estava a lançar o Cavalo — um disco com o qual me passei e fiquei com um bocadinho de inveja. E dizia-lhe: “Fogo, eh pá, estou num momento mesmo peúga, não sei onde é que posso ir buscar as coisas…”

O processo de criação é isso: teres bloqueios e descobrir como sair deles…
Completamente. Sabes: nunca entendo os bloqueios como bloqueios artísticos, de criação. Entendo-os sempre como o fim desta merda! [Risos] Tu nunca pensas “isto vai passar”. Tu achas que acabou a cena, pronto. E ele [Rodrigo Amarante] disse-me: “As primeiras vinte e cinco canções do Cavalo mandei para o lixo…” Depois de também mandar uma quantas para o lixo, as coisas mudaram quando fiz uma música de que gostava e pensei: “Ainda é possível…” É tão simples quanto isso. Se foi possível fazer aquela, conseguia fazer mais e mais. Depois, é um contágio. Começas a tirar prazer outra vez das coisas. Mas muitas vezes tens que provocar esse prazer.

Mas uma boa música não depende de ser espontânea ou trabalhada até à exaustão, certo?
Claro, claro. Claro. É isso. Acho que é um equivoco, uma falácia, a questão da espontaneidade e da genuinidade. Pode acontecer. E acontece. Mas acho é que é uma falácia pensar que esse é o caminho, o único caminho. Não há espontaneidade quando fazes uma música. O que há é espontaneidade num momentozinho, um momentozinho em que relaxaste, “gritaste” e foi o suficiente para desbloquear a música. A grande falácia é achar que podemos teorizar acerca do processo. “Esta música é melhor porque me saiu da alma…” Dizer isso é uma anedota. É claro que pode haver gente para quem isso seja verdade. Mas não imagino um artista sem um caixote do lixo enorme. [Longa pausa] Estou aqui com merdas mas às vezes sai-me alguma coisa e penso: “Foda-se, mas como é que isto me saiu?!” Até parece que quando é genuíno é menos teu. [Risos] Porque foi tão fácil… Normalmente, quando sentes que é muito teu é quando andaste a resolver, a resolver, a resolver. Estás durante um mês inteiro de volta daquilo, está uma “pastelada” do carago, mas lá resolves e parece-te que foi natural – mas não foi. Por outro lado, há músicas que te saem numa hora e soam-te a forçado. Percebes? Acho que não há uma regra.

Tal como também não existe uma “regra” para que a letra tenha que surgir primeiro do que a melodia ou o contrário. Certo? Mas às vezes a própria letra já transporta uma melodia com ela…
Também não, também não. Vou-te dar um exemplo. Conheces uma gaja. Não interessa onde, ou como é que conheces. “Oh pá, deu-me pica porque é gira, porque é fixe…” Mas tens mesmo a certeza se sabes porque é que te picou? Lembra-te alguém? Ou houve um gesto qualquer, alguma coisa que te disse? Um gajo tende sempre a achar que consegue perceber. Mas não consegue. Aquilo é magia. E não podes pensar muito. Não deves. Deixa-te ir. Aceita. Na escrita de uma música é igual.

Mas a maioria das tuas canções são muito pessoais – e até podiam não ser, atenção. Tudo é influência? As relações familiares, amorosas. Às vezes até a ausência de relação…
Completamente. Sou uma nódoa a geografia, sou uma nódoa a história, sou uma nódoa em política, matemática, sou uma nódoa na maior parte das ciências. Uma “nódoa” no sentido da aprendizagem pelas regras. Mas sempre fui muito um gajo que teve a sua maneira particular de observar as coisas, o mundo. E escrevo-as.

Mas isso só é possível vivendo. Um gajo fechado em casa, “medroso”, não escreve assim…
Sim, sim. Acima de tudo tens que observar muito. E fazeres a tua leitura do que observas. E a tua leitura é a tua escrita. Não estou a dizer que tu escreves assim ou de forma diferente por viveres ao invés de leres. Ou leres ao invés de viveres. Percebes? Não tem a ver com ler. Ou viver. Acho que tem a ver com a maneira como tu lês e vives. Podemos ler o mesmo livro e vamos fazer leituras distintas…

João Seguro/Observador

Porque vivemos coisas diferentes.
Porque vivemos coisas diferentes! Tu provavelmente vais sugar o livro, o que o livro te está a dizer. Eu provavelmente vou ler e vai ser vivido de outra maneira. Na música é a mesma coisa: escrevo o que observo. Mas é curioso, acho que há muita gente que sabe muito, tem uma cultura enorme, e quando mais cultura tem, mais consciência tem de que pode aprender com pessoas que não têm essa cultura toda. Assim como acho que há muita gente que não tem cultura e que acha sempre que os gajos com muita cultura são uns snobs do carago. [Risos] Acho que, acima de tudo, quando sentes uma vontade de não teres respostas mas, sim, perguntas, a aprendizagem é mais fixe.

Mas a sensibilidade é fundamental na escrita de músicas…
E acho que é nessa questão da sensibilidade que a coisa faz a viragem. Acho que é mesmo isso. É onde tudo muda. Podes dizer-me a maneira como pensas, posso dizer-te a maneira como eu penso, mas ninguém sabe a maneira como nós sentimos por dentro. E isso faz toda a diferença.

Houve um período, longo, após o final dos Ornatos em que deixou de ser bom para ti fazer música, creio. Hoje voltou a ser? Voltaste a desfrutar?
Sim… [Pausa] Estou a voltar a desfrutar. E nestes últimos concertos senti muito isso. Estou a voltar a curtir tocar ao vivo. E desdramatizei. Lá está: aceitei o poder – relativo – que tenho. Não posso achar que não tenho um poder ou achar que não posso assumir esse poder. Assumo-o. Mas não posso dar tanta importância. Não sou ninguém para estar a achar que sou mais puro do que ninguém. Às vezes és tão purista que te dás demasiada importância. Tens que errar como os outros erram. Tens que prevaricar como os outro prevaricam. E apanhares as tuas bebedeiras. Mas a idade também te traz isso: não teres tanto medo de “ser”. É uma perda de inocência… [pausa] mas também acho que te protege de ti próprio. És como os outros. E isso é bom: ser como os outros.

Tu não és um gajo com saudades do passado, por exemplo?
[Pausa] Não. Tenho nostalgia de certas coisas mas não tenho saudades nenhumas do passado. Nenhumas. É completamente verdade. Acho sempre que “agora é que é”. Adoro envelhecer – embora deteste a ideia da morte. Mas a cena de envelhecer, e ser “transparente” para as gajas, também é triste para carago. [Risos] Estou com 43 anos. Sei que com 60 vou ter problemas de saúde e essas tretas todas.

Sentes que foi tudo muito veloz, demasiado veloz?
Acho que sim, acho que sim. E quanto mais faço mais rápido a cena passa.

Quando houve a reunião dos Ornatos Violeta, em 2012, houve momentos em que no concerto quase não conseguias “existir”. O público cantava a música inteira. Isso foi… estranho?
Entendo a pergunta. Nunca gostei de ir a concertos e estar o pessoal todo a cantar. Como espectador nunca fiz isso. Sempre gostei de ir ouvir os cantores. Agora, confesso: naqueles concertos dos Ornatos senti isso como uma coisa mesmo, mesmo especial. Aquilo não era nosso. A música não era nossa. E isto não é uma merda só bonita de se dizer. Foi mesmo o que senti. Eu estava com medo daquilo. Muito medo. E ter as pessoas a cantar foi a acalmia de que precisei. Sentia-me protegido. E essa sensação de proteção não é só porque a coisa estava a ter sucesso e as pessoas queriam cantar. As pessoas sentiram que foram elas que nos puseram naquele concerto. Percebes? Nós não íamos fazer aquilo se não fosse por isso. Não íamos mesmo. Fizemos aquilo quando passou a ser mesmo inequívoco que as pessoas queriam ouvir-nos. Às vezes diziam-me na rua: “O pessoal quer que voltem a tocar e não-sei-quê…” Mas quando aquilo estava escarrapachado na cara, quando ficou escarrapachado que queriam mesmo, foi “manteiguinha” para nós. [Risos] Ouvir aquelas pessoas todas a cantar… oh pá, foi fantástico, foi uma festa de toda a gente. Foi mesmo.

Mas esperavas isso?
Não estava à espera. Não dormi na noite anterior a Paredes de Coura, por exemplo. Não dormi mesmo. Mas as coisas fluíram. E desfrutei de tudo de uma maneira “leve”. Percebes? Mas a leveza — que foi positiva — não me permitiu muito “ver de fora”. Se estivesse a ver de fora, poderia estar mais emocionado talvez. A minha emoção foi digerida ao longo do tempo. Não sou gajo de chorar nos funerais e assim. Oh pá, para mim um funeral é sempre uma merda irreal. Não sou aquele gajo que no momento do funeral se apercebe que aquilo está de facto a acontecer. O meu tio faleceu. E só com o passar do tempo é que chorei. Por causa de cenas triviais. Ele dizia-me: “Manel, por causa das hemorroidas lava sempre o cu com água fria…” E sempre que lavo o cu com água fria lembro-me dele. Eh pá, isto parece uma coisa feia de se dizer. Mas isto acontece-te e dizes: “Este gajo faz-me mesmo aqui falta!” São coisas que vais digerindo ao longo do tempo. E ao longo do tempo fui digerindo também a coisa dos Ornatos. E chegaram-me a dizer: “Tu no concerto não choraste! Porquê?”

Pergunto-te isso: porquê?
[Risos] Pois. E é estranho, não é? É uma luta muito grande entre… entre… Como é que hei-de explicar isto que nem eu sei explicar muito bem? Foi uma defesa. É teres a consciência da efemeridade das coisas e teres, sempre, uma dúvida residual que te defende. E é quase como uma consciencialização de que tu estás de certa maneira condenado a viver as coisas sem as poder tocar. Ao mesmo tempo, em retroativos — digamos assim –, vais buscar essas coisas à tua medida, à medida que tu és capaz de ir agarrando com o tempo.

Ainda sentes inseguranças em relação à música? Ao que queres da música.
Sim. Sempre foi muito duro. Mas acima de tudo tenho a ideia, hoje, de que as pessoas não gostam mais de ti porque tu fazes bem o que fazes. As pessoas gostam de ti se tu fores fixe para elas e elas forem fixes para ti, se estabelecerem uma ligação qualquer. Isso foi algo que na minha vida sempre me assombrou um bocadinho. Se calhar por alguma incapacidade de estar ligado ao mundo da maneira mais… [pausa] normal – sempre fui um bocado da “lua”. E ao sentir o feedback positivo das pessoas ao que eu fazia, confundia isso com afeto. Mas fui descontraindo. E hoje isso faz com que os medos não sejam tão avassaladores.

"Estou a voltar a desfrutar. Estou a voltar a curtir tocar ao vivo. Aceitei o poder – relativo – que tenho. Mas não posso dar tanta importância. Não sou ninguém para estar a achar que sou mais puro do que ninguém. Às vezes és tão purista que te dás demasiada importância. Tens que errar como os outros erram. Tens que prevaricar como os outro prevaricam. E apanhares as tuas bebedeiras. Mas a idade também te traz isso: não teres tanto medo de 'ser'. És como os outros. E isso é bom: ser como os outros."

Tens projetos no presente, a solo. Vais também apresentar um álbum novo em breve. Sabes o que é que queres fazer? Ou deixas fluir?
Eu tenho sempre coisas projetadas. Mas não a muito longo prazo. Sei o que quero fazer. Acho que tenho uma inquietude crónica: vou-me sempre encantar com alguma coisa. E cansar-me também – seja da estética, seja do discurso. Há uma frase muito fixe do Paul Valéry: “Nem sempre sou da minha opinião”. Há gajos que têm o condão de escrever frases com que podes explicar aquilo que pensas… Acho que é exatamente isso: nem sempre sou da minha opinião. Sou assim. Hoje penso isto, amanhã outra coisa. Se calhar até sou mais estático do que o que imagino. Mas pelo menos tenho esse impulso de achar que não. Acho sempre que aquilo que eu queria fazer já não vai representar o que sinto.

Última pergunta. Dizes-te um “gajo normal”. Nunca te sentes um ídolo?
[Pausa] Eh pá, acho que sim. Eu próprio também tive os meus ídolos. E consigo fazer o paralelo: “Se este gajo admira tanto o meu trabalho e sou um gajo normal, então o gajo que eu admiro também deve ser…” Mas não sinto que seja idolatrado; há admiração talvez. E isso é fixe, dá-me confiança. Porque acredito que o que estou a fazer faz mais sentido. Sabes: às vezes aceito ir a escolas falar com os putos. Mas não por achar que tenho alguma coisa a ensinar-lhes. Vou porque tenho a atenção deles e – isto pode até parecer um bocadinho perverso – tento desmistificar certas merdas que acho que são sobrestimadas na nossa sociedade. Podia dizer-lhes que isto [música] é só para alguns, que é inspiração e não-sei-quê e o carago, mas tenho a oportunidade de dizer que isto tem muito a ver com trabalho, com obsessão, com paixão — que é o mais importante. Seria hipócrita se te dissesse que não tenho a consciência de que sou admirado por algumas pessoas. Mas isso também é uma coisa de que tenho algum medo. É uma responsabilidade grande. Acho que sou mais um gajo a influenciar pessoas. Mas todos nos influenciamos mutuamente, certo? O que quero é tentar aproveitar isso para fazer coisas fixes.

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