Candidatura do PCP. O discurso de João Ferreira
Num mundo onde se tenha acabado a esperança, como retratou Saramago no seu “Ensaio sobre a cegueira”, deixamos de olhar para o futuro, deixamos de o ver. “A cegueira também é isto”.
João Ferreira começou o discurso a recordar um destacado militante do PCP, José Saramago, para alertar para a necessidade de olhar para o futuro. Cita depois depois Castrim, para dizer que o futuro lhe sopra ao ouvido através da esperança. O curioso de iniciar o discurso, de uma forma mais poética, a falar no futuro para o qual aponta a sua candidatura, é que João Ferreira representa também esse futuro no partido. Aos 41 anos João Ferreira é tido como uma das hipóteses para suceder a Jerónimo de Sousa no cargo de secretário-geral do partido, o que poderá acontecer já em novembro no Congresso. É tão evidente que é hipótese para a liderança que foi confrontado com essa questão pelos jornalistas, mas recusou comentar para não “desvalorizar esta campanha eleitoral”.
Nesta eleição dirijo-me a todos e a cada um, independentemente das escolhas eleitorais que fizeram no passado”.
O PCP é, tradicionalmente, um partido com eleitorado fiel, sem grandes oscilações na matriz ideológica do eleitorado. Está longe de ser um partido catch all, que possa beber ao centro. Mas João Ferreira vem que quer o voto de todos à esquerda (aqui incluindo o centro-esquerda) que defenderem os mesmos valores que a candidatura. Ou seja: não exclui militantes do PS (ou mesmo do Bloco) que não se revejam nas candidaturas protagonizadas pelos militantes dos respetivos partidos. E até já tem exemplos disso nos poucos dias que passaram desde o anúncio da candidatura. Isabel Moreira, deputada socialista, foi uma das primeiras a manifestar a intenção de votar em João Ferreira. Para o candidato, não há votos maus vindos da área da esquerda: “Esta é uma candidatura feita pela positiva, dirigida a todos”.
O medo é exacerbado e manipulado para restringir direitos e liberdades. A pretexto do combate ao vírus e da garantia de uma alegada segurança, impuseram-nos estados de emergência que nada tinham a ver com a observância de normas que a população já cumpria (e continuou a cumprir depois de abandonados), mas que visavam restringir o processo e a luta, contra os abusos, os aproveitamentos, o oportunismo dos que querem continuar a enriquecer à custa da exploração dos trabalhadores e do saque dos recursos ao Estado.”
Esta é uma crítica em género três em um. De uma assentada, João Ferreira crítica o Bloco de Esquerda, o “Bloco Central” e Marcelo Rebelo de Sousa, colando-os tendo em consideração a postura que tiveram perante a pandemia da Covid-19. Embora com uma indireta muito dirigida aos bloquistas. Na edição desta quinta-feira do jornal Avante um dos membros do Comité Central do partido já tinha deixado fortes críticas à ação do Bloco de Esquerda. Gustavo Carneiro critica o BE num artigo intitulado de “Os ausentes”. “Naqueles que foram os meses mais duros de que há memória em termos de ataque aos direitos laborais e sociais, o BE optou por dar para o peditório dos que queriam ver confinada a luta”, lê-se na edição desta semana do jornal do partido. E é também essa a ideia que João Ferreira quer passar: quem aprovou o estado de emergência contribuiu para o interesse dos grandes grupos económicos e para o enfraquecimento da classe trabalhadora. O PCP cavalga aqui o voto de protesto e anti-sistema que pode estar desiludido com o Bloco de Esquerda por ter votado a favor dos três estados de emergência no Parlamento durante o período difícil da pandemia. Os comunistas querem também aqui lembrar que não abdicaram do 1º de Maio na Alameda nem da Festa do Avante, priorizando a rua e a luta, mesmo perante o risco para a saúde da pandemia de Covid-19.
A crise aumenta a violência do sistema. Instigam-se divisões e conflitos no seio da população, voltando trabalhadores contra trabalhadores, cidadãos contra cidadãos. O racismo, a xenofobia, a extrema-direita e o fascismo são normalizados e mesmo abertamente promovidos, a partir de alguns dos principais centros de poder económico e seus prolongamentos políticos e mediáticos”.
Não se referindo diretamente a um dos seus concorrentes na corrida à presidência, João Ferreira dirigia-se aqui também a André Ventura. Além de criticar o Chega, o candidato do PCP critica quem contribui para a “normalização” de André Ventura, que considera ser uma estratégia do “poder económico”. Não concretiza, mas teoriza sobre um apoio oculto vindo do grande capital que ajuda André Ventura.
É o continuado desinvestimento nas funções sociais do Estado, em confronto aberto com a Constituição que as determina. A falta de investimento no Serviço Nacional de Saúde e o desvio de recursos públicos para sustentar os grupos económicos privados que lucram com a doença”.
Além do ataque aos “grandes grupos económicos”, uma das críticas comuns do PCP, o candidato quis também fazer uma chamada de atenção para as PPP. Depois de aprovada a nova Lei de Bases da Saúde falta ainda a regulamentação relativa às Parcerias-Público-Privadas na Saúde. Num ataque ao setor privado na saúde, o PCP aproveita a candidatura à Presidência da República para voltar a recordar o problema da existência desses “grupos económicos privados que lucram com a doença” e que “desviam recursos públicos”.
É a submissão do país a políticas e decisões da União Europeia contrárias ao interesse nacional, determinadas pelos interesses das principais potências europeias, agravando desigualdades e assimetrias, promovendo a divergência, em lugar da prometida convergência, económica e social”
Ainda que ocupe um dos lugares no parlamento europeu e seja vice-presidente do Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde, João Ferreira mostra-se — em coerência com a opinião do partido — eurocético. Pelo menos da atual União Europeia. Aos jornalistas, no final da apresentação, João Ferreira clarificava que um Presidente da República tem que ter “outro entendimento” dos desígnios da União Europeia. Uma das bandeiras de sempre do PCP é a recuperação da soberania nacional em vários setores (como a agricultura) que dependem atualmente de imposições/regras comunitárias.
É notório que o atual Presidente da República está empenhado numa rearrumação de forças políticas, assente no branqueamento da política de direita e dos seus executores, promovendo a sua reabilitação, na forma da chamada política de “bloco central”, formal ou informalmente assumida, que marcou o país nas últimas décadas”.
A primeira vez que o PCP deixou clara esta crítica a Marcelo Rebelo de Sousa foi no discurso de encerramento de Jerónimo de Sousa na Festa do Avante. O PCP acusa o Presidente da República de promover um “branqueamento” do PSD e de ajudar à política do “Bloco Central” que tem marcado a governação do país “nas últimas décadas”. Num ataque mais cerrado ao Presidente em funções, João Ferreira acusou ainda Marcelo de não estar “verdadeiramente comprometido com o juramento” que fez de defender os valores da Constituição. “Não há diversões mediáticas que iludam as escolhas feitas, neste domínio, pelo atual Presidente [da República]”, diz João Ferreira afirmando que Marcelo devia estar “comprometido com os interesses do povo e não com os interesses dos grandes grupos económicos e financeiros que têm determinado o rumo do país”. O objetivo é tornar Marcelo no candidato das elites económicas e, ao mesmo tempo, criticar a forma como Marcelo se move no meio mediático.
O Presidente da República não é governo. Mas pode e deve atuar, no quadro das funções que lhe estão atribuídas, usando os seus poderes para impulsionar um sentido de mudança, de desenvolvimento, de progresso e justiça social, no curso da vida nacional”.
João Ferreira diz que o Presidente da República “não se pode resignar perante um país com o futuro comprometido e sem esperança” e onde fará uso do “direito de veto”m do “recurso ao Tribunal Constitucional” ou do “direito de enviar mensagens à Assembleia da República”. O candidato do PCP não esconde assim que quer aumentar a influência do Presidente na governação, numa abordagem em que seria reforçado o semi-presidencialismo. Ao mesmo tempo está a dizer que será mais interventivo que Marcelo e que tem um entendimento diferente da função presidencial.